Psicanálise: por que pode ajudar algumas pessoas?
No mundo da psicoterapia e dos serviços de saúde mental é comum escutar termos como “abordagem”, “psicologia”, “psiquiatria”, “diagnóstico”, “transtorno”, “psicanálise”, entre muitos outros. Particularmente, queria esclarecer numa forma simples como é que a psicanálise entende o seu trabalho, esclarecendo de passagem algumas diferenças chave com a psicologia (psicoterapia) e a psiquiatria. Já no título estou sugerindo que a psicanálise não pode ajudar tudo mundo: algumas pessoas não veem necessidade de emergir como sujeitos e se autorizar eles próprios a lidarem com a posição que ocupam no mundo, ora como homens, ora como mulheres, ora como pessoas racializadas, ora como indivíduos vitimizados, etc., sem ser na visão externa a eles do dever-ser ou do dever-fazer.
Acabei de usar o termo “sujeito” como se fosse diferente de “pessoa”, até porque é, já que as pessoas são essa totalidade que aparece na frente dos outros, se apresenta com um nome, e com uma pertença sexual, religiosa, grupal, moral e cultural determinada. Também é diferente de “indivíduo”, que para a ciência (medicina e psicologia) é o caso classificável em grupos de fenômenos estandardizados e o caso numérico que soma ou subtrai nas estatísticas sociais. Já “sujeito” é um fenómeno único e irrepetível que chega a ser isso ao “decidir” como irá agir e contornar muitas coisas que só apareceram na sua vida porque ocupou lugares muito específicos na realidade cultural e simbólica onde vive: o sujeito decide algo e as escolhas sempre têm custos.
O que é a psicanálise?
Como a palavra diz, a psicanálise é uma análise da psique. “Análise”, por sua vez, significa que algo está sendo separado nas suas partes, e que essas partes podem ser observadas e “estudadas” separadamente. Neste caso, “partes” da “psique”, que por sua vez significa mente. Segundo isso, a mente humana (não se faz psicanálise com outras espécies animais) está dividida em partes. O termo “anatomia”, por exemplo, também tem ana, que em latim significa literalmente “separação” das partes. Neste ponto, quem conhece sobre teoria psicanalítica já sabe sobre quais seriam essas “partes” da mente (entendendo que a sua manifestação não é material, como na anatomia).
A parte da mente com a qual a psicanálise lida principalmente é o inconsciente. Outras partes muito explicadas na teoria psicanalítica seriam a consciência, o ego, o superego, o id, e o pré-consciente. Na prática, é possível “ver aparecer”, digamos assim, essas partes todas. O material concreto com o qual essas partes aparecem é a fala: as palavras, a linguagem, a forma de conectar as coisas, de criar sentido e efeitos, igual eu fiz no título; a forma de colocar as ideias. No fundo a psicanálise trabalha é com as ideias dos sujeitos (das pessoas, digamos), mas elas só podem ser externadas e materializadas através da fala. Um dos principais psicanalistas teóricos dizia que o inconsciente se estrutura como uma linguagem: Significa que o inconsciente é um conjunto de ideias que aparece com uma linguagem própria que precisa ser “lida” através das palavras e colocações.
O inconsciente, por sua vez, que seria mais ou menos a totalidade de interpretações, olhares e conflitos emocionais e morais individuais contra o “dever ser” e o “dever fazer” cultural e familiar, não se apresenta com frases diretas, já que muito raramente alguém diz literalmente, por exemplo: “tenho sentimentos negativos/moralmente inaceitáveis por X, mas segundo as minhas crenças culturais, com as quais não concordo, era para eu tratar de uma forma que eu não sinto e, até por isso, tenho medo do que de verdade sinto e até faço de conta que sinto o contrário”. O inconsciente se utiliza da fala como um código e como performance. Ele tem sua própria forma de “expressividade”, digamos assim, e na clínica, o/a psicanalista precisa da habilidade para identificar rastros do seu aparecimento. O/a psicanalista, precisa ter a habilidade de ajudar aos sujeitos a nomear o que sentem e a colocar em palavras o que de verdade pensam sobre o que é considerado ideal.
A tarefa ou o método do/a psicanalista
A psicanálise é uma arte de enxergar o inconsciente quando aparece. O/a psicanalista ajuda no “deciframento” do sentido e da importância das colocações que o desmascaram: até porque é a sua “natureza” ficar oculto, fora da consciência. Na teoria psicanalítica, se explica a importância dos formatos do aparecimento do inconsciente como oportunidades para vasculhar o que há por trás das colocações no humor (piadas, deboche), sonhos, atos falhos (fazer algo muito específico que a pessoa não teve intenção de fazer, e que parece um acidente pelo menos estranho), ou nos lapsos ou equívocos na fala (dizer uma palavra ou frase muito específica sem ter tido a intenção, sem que seja um acidente, mas se parecendo muito no som a uma outra coisa que a pessoa não teria tido a coragem de dizer diretamente se fosse perguntada sobre um assunto conflitante). Por último, nas repetições sob a forma de “temas” que aparecem insistentemente, tanto na fala quanto no pensamento e nas ações, por vezes de forma um pouco diferente.
As pessoas repetem comportamentos problemáticos para elas próprias, ou pelo menos acham estranho que há coisas que se repetem nas suas vidas e que trazem problemas dos quais já estão ficando cansadas: é aí quando elas começam a sofrer. Aliás, é o sofrimento ao notar que existe algo problemático que se repete o que leva uma pessoa a procurar ajuda em saúde mental. Existem múltiplas situações nas quais alguém pode sofrer emocionalmente com um evento inesperado; acontece que as pessoas ficam tristes com uma perda, preocupadas por um risco agudo para a vida, irritadas por terem que gastar um dinheiro que não têm, ou confusas com algo novo e incompreensível que chegou na vida, por exemplo, mas raramente alguém procura psicoterapia ou se dispõe a pagar sessões de psicanálise por isso. Temos a tendência a querer superar uma dor emocional de forma rápida, e quando os eventos comuns da vida o permitem, é isso que acontece sempre. O problema é quando o mesmo sofrimento volta e se torna enigmático.
A psicanálise trabalha com o sujeito atravessado por um enigma sobre a repetição de seu sofrimento típico, ou seja, da sua forma específica de sofrer ao longo da vida, ou pelo menos de algum tempo, longo o suficiente para ser problemático. Em outas palavras, o paciente não sabe expressamente o que o coloca a sofrer, mas sabe que há algo, e com a ajuda do/a psicanalista, ele pode descobrir que só ele tem acesso: através da forma como fala sobre ele para alguém que saiba escutar ao inconsciente e seus aparecimentos chave. É interessante salientar nesse ponto que não é o/a psicanalista que “sabe” o que coloca ao paciente a sofrer do seu jeito típico; ele/ela só “sabe” quando algo que foi reprimido com insistência, por não ser aceitável no contexto da vida do seu paciente, aparece por fim, e faz perguntas sobre isso.
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Exemplo de intervenção psicanalítica
Um sujeito X foi estuprada pelo pai durante a infância, e sofreu a inação da mãe, numa família tradicional e “ideal” até porque fez questão de obedecer às expectativas sociais sobre constituição familiar e papéis de homens e mulheres nela; já na idade adulta, este sujeito fala a cada vez que pode que “ama” à mãe, mas também que “não entende” por que briga com ela e fica irritada por coisas pequenas que acontecem entre elas duas, e também com as pessoas da família que formou ao crescer e casar, igual a sua mãe fez. Durante um processo de psicanálise, ela, o sujeito, pode descobrir que não concorda com os mandatos morais sociais de ter que amar sempre à mãe, sem questioná-la, que a mãe dela não fez tudo o que podia para protegê-la do pai criminoso; de repente, a paciente chega a entender que sempre disfarçou a enorme ferida e raiva que isso tudo lhe causou com atos e palavras de devoção à mãe e à própria família, onde inclusive talvez também hajam outros criminosos similares que ela não afastou ainda da sua vida e da vida das próprias filhas.
Nesse exemplo é possível ver vários tipos de repetição. A arte da intervenção do/a psicanalista neste caso tem a ver, entre outras, com colocar essa paciente a desenvolver as referências sobre a humilhação e a raiva que já sentiu, nomear essas coisas com a ajuda da maior quantidade de detalhe possível, e a falar sobre aqueles pontos nos quais o que ela diz pensar em termos do dever-ser e o dever-fazer não se sustentam na lógica do acontecido. Essa paciente hipotética pode acabar por descobrir por que o que ela já sentiu faz mais sentido. Com isso, ela talvez possa se permitir encontrar uma forma nova de se posicionar a respeito dos fatos passados e dos papeis que ocupa no presente, admitindo que foi vítima e não só do pai, também não só de pessoas, e entendendo que agora que é mãe, pode ter ação.
Como agem a psiquiatria e a psicologia?
Cada abordagem e saber sobre a saúde mental e seus problemas oferece formas muito diferentes de lidar com o sofrimento em conexão com a repetição. A medicina e a psicologia não trabalham com os conteúdos emocionais conflitantes por ser moralmente problemáticos no seu contexto e que ele acaba reprimindo no inconsciente; esses dois tipos de intervenção simplesmente apresentam um modelo que define o que seria o “bem-estar” psíquico de fora do indivíduo. Sobre esses modelos, o sujeito terá pouco para dizer ao longo das suas intervenções.
A visão médica e da psiquiatria está focada no corpo, na bioquímica neurológica, na traumatologia e na fisiologia de modo geral, e sugere tratamentos que atenuam ou fazem desaparecer a experiência emocional como ela é vivida pelo corpo e o sistema nervoso no presente, adicionando ou eliminando ações de moléculas específicas na fisiologia do medo, da agitação, do sono, do repouso, da tristeza, etc.; por vezes, também alterando a anatomia neurológica ou a fisiologia elétrica da condução dos impulsos nervosos.
A psicologia, que é a teoria científica sobre o funcionamento das funções cognitivas como o a sensação, a percepção, a consciência, pensamento, a linguagem, a memória, a atenção, a motivação e a aprendizagem, explica como, por quê, quando e para quê essas funções se ativam, e até por quê às vezes não. Ela “dialoga” com a ciência médica, mas também com outros saberes sobre a experiência humana, como a antropologia, a pedagogia, a economia, entre outras. Ela se utiliza das psicoterapias, que são métodos de intervenção com objetivos que se definem segundo o entendimento sócio-histórico presente e filosófico dos problemas do indivíduo e seu entorno social. A ideia por trás das psicoterapias é gerar bem-estar do indivíduo e do seu entorno social, por exemplo, afastando-o de riscos comportamentais, de ideias e sentimentos que o colocam a repetir situações de mal-estar, ora com dicas, com exercícios, com psicoeducação ou com acolhimento e alteração dos sistemas individuais de percepção e convencimento.
O tipo de acolhimento do/a psicanalista
Ninguém fala tanto quanto é suficiente durante as sessões até que os conteúdos inconscientes reprimidos, difíceis de aceitar, conflitantes, e relevantes para entender um sofrimento particular emerjam sem que exista uma “confiança” muito especial, ou seja, carregada de um afeto igualmente especial para a pessoa do/a psicanalista. O paciente precisa se sentir em segurança e entender que não se espera dele que seja ou faça algo específico, de forma que possa falar sobre suas posições difíceis e suas decisões ao longo da vida, por limitadas que já tenham sido.
Chegar ao ponto de falar algumas coisas que possam ser ouvidas de forma que algo possa ser feito com isso, depende de ter oportunidade suficiente. Por sua vez, isto não é possível se quem fala não acha que está sendo ouvido por alguém que tenha uma visão próxima à própria, no sentido de parecer que possa “compreender” por ter uma origem imaginariamente comum. No imaginário de quem chega como paciente, procurando ajuda para o seu sofrimento, a vida da pessoa do/a psicanalista consiste em detalhes que nunca se conhecerão, mas também em estar em posição e capacidade de entender o que esse paciente passou e como isso justifica sua queixa exatamente do jeito que é apresentada. O paciente precisa ver no outro do/a psicanalista a uma mulher ou a um homem que se pareça de alguma forma às referências próximas, a uma mãe do jeito que esse paciente entende, a uma pessoa de crença religiosa similar, etc., de forma que possa achar que está sendo ouvido da mesma estrutura de sofrimento.
Na teoria psicanalítica se fala em “transferência”: de relações, de lugares que os outros já ocuparam na relação com o sujeito. O/a psicanalista “se empresta”, empresta sua pessoa, sua forma de aparecimento na frente dos outros, sua aparência, digamos. Isto não tem muito a ver com o tipo de trato ou o estilo de comunicação, por exemplo, que o/a psicanalista tem. Quem chega a ocupar o lugar de paciente é quem estabelece esse tipo de relação. Um objetivo no processo de análise, aliás, é ajudar ao paciente a quebrar com essa relação imaginária, com essa identificação que no início permitira que houvesse uma abertura e uma espontaneidade suficiente para colocar referências ao sofrimento de base.