Relacionamentos “tóxicos”: quando são sintoma?

Relacionamentos “tóxicos”: quando são sintoma?

Com o título, eu já sugiro que só às vezes os relacionamentos que trazem sofrimento e desgaste são verdadeiramente um problema que adiante ser trazido para a consulta com o/a psi. Vamos concordar que o adjetivo “tóxico” possa fazer referência a algo que produz efeitos de mal-estar, por exemplo corporal, que quem vive sente que precisa eliminar logo da sua vida. Porém, as pessoas só procuram ajuda profissional de um psi quando estão sofrendo e querem entender como parar, aliás, intuindo que há algo que elas poderiam fazer, e algo que elas ainda não entenderam. Quando as pessoas sentem que elas não entendem o que está acontecendo, e sentem coisas contraditórias, é porque para além das dificuldades que a vida traz, há algo difícil de isolar para depois eliminar. Não se trata simplesmente de que existe uma pessoa “ruim” que inferniza a vida da outra e, até por isso, precisa ser afastada: muitas vezes a “vítima” não “quer”.

Se fala com frequência que todo relacionamento tem altos e baixos ou momentos difíceis, por exemplo, e isso até é real, na medida na qual a vida e as relações humanas em si, já são assim. As pessoas ficam velhas, cansadas, doentes, com problemas financeiros, acontecem acidentes, alguém muda de opinião, de visão da vida, de país, e enfim, muitas coisas podem sair do controle no cotidiano, mas não é disso que estamos falando aqui quando se fala de sofrimento decorrente de um relacionamento que possa ser considerado como “tóxico”.

Quando há problemas que se intensificam com o tempo, que nunca terminam, ou que se repetem em situações que começam a ser a cada vez mais fáceis de identificar, mas que não permitem que a pessoa que sofre veja um possível final real ao problema, nem alguma forma de controlar o que inicia aquela discussão típica, aquele soco, grito, choro ou comentário de manipulação, aquele estupro, ou aquela mentira ou traição, então provavelmente se trate de um relacionamento gerador de mal-estar e sofrimento crônico e difícil de eliminar da vida para valer.

Acontece que as pessoas têm “razões” que elas valorizam como importantes ou necessárias nas suas vidas para formarem uma dupla “romântica” com alguém, uma família com um casamento, ou pelo menos para “terem alguém” especial e estável. Acontece também que, devido à insistência em manter um relacionamento pelo qual já se sonhou tanto, ou pelo menos se investiu tanto tempo e energia, as pessoas começam a ter a tendência de relevar detalhes dolorosos e constrangedores vindos da conduta da outra pessoa da dupla. Para relevar algo que doe ou que constrange, começa a ser necessário aplicar algum raciocínio artificial que justifique condutas destrutivas da outra pessoa; mas esse raciocínio, que não seria o mesmo que tudo mundo teria se fosse perguntado pela opinião, infelizmente acaba por invisibilizar a responsabilidade de quem tem condutas consideradas como “tóxicas”. Justificando ao outro “tóxico”, corre-se o risco de invisibilizar o fato de que esse outro ESCOLHEU agir assim: dizer esse palavrão, essa mentira, forçar esse coito, deixar as responsabilidades do cuidado do lar e/ou dos filhos só para a outra pessoa (geralmente a mulher), etc.

Quando as justificativas que já foram usadas por algum tempo começam a não bater muito bem com a lógica ou com alguns fatos, é porque já existem consequências precisamente no tipo e na forma de sofrimento que agora já ficou tão difícil eliminar da própria vida. Sugiro neste ponto chamar isso de “sintoma”, ou seja, aquela evidência de que existe um problema: do mesmo jeito que a dor de estômago pode ser sintoma de intoxicação alimentar. Em outras palavras, o que fica realmente difícil de eliminar nem sequer é aquela outra pessoa que inferniza a nossa vida (embora em muitos casos seja também um problema fazer isso por medo à vingança violenta), mas aquela a nossa forma de sofrer por ter apego a uma forma de pensar que justifica ações do outro em nome da manutenção de um relacionamento.

O elemento “tóxico” em algumas relações humanas não dá para simplesmente retirá-lo e pronto, do mesmo jeito que alguém poderia fazer com um veneno ou um alérgeno, que saem do corpo com ajuda de muita água, de alguns remédios específicos, de descanso, e algumas eliminações urgentes. Nem a força de vontade nem o planejamento de alguma ação irão nos colocar em segurança diante de uma tendência pessoal que por vezes temos, de querermos manter relações nas nossas vidas, independentemente de elas afetarem a nossa dignidade, liberdade e saúde. O que poderia ajudar, provavelmente seja o trabalho com as crenças pessoais, e isso não é um remédio de ação rápida que tudo mundo aguente tomar.


Crenças tóxicas


Não é fácil sair de um relacionamento tóxico só porque ele faz mal, já que com muita frequência as pessoas têm a ideia de que o sofrimento em si não é um problema quando se está almejando algo que a pessoa acha muito ideal e bom de se alcançar, sem importar os perrengues e as “dificuldades” para aguentar no caminho, como é o caso de um casamento, um relacionamento monogâmico, ou uma família, por exemplo. Existem expectativas culturais colocadas nas pessoas que, devido a que se originaram na família, no país, na igreja, e num momento específico da vida lembrado como positivo, passam a ser vistas como completamente “boas” e desejáveis. Em outras palavras, muitas pessoas podem achar que, só porque a avó, a autoridade religiosa, a professora da escola, ou até mesmo o presidente do país, falaram que era para não estar solteiro/a depois da casa dos 20, então o que seria “bom” mesmo nessa vida é casar antes dos 30, por exemplo. Mas seguindo essa lógica nesse exemplo, não haveria nada mais para esperar ou exigir para a própria vida, e o casamento já iria ser garantia de felicidade. Por que não é assim que funciona?

As pessoas nem sempre tiveram tempo, qualidade de vida, nem oportunidades para parar para pensar nas coisas e no estilo de vida que poderia trazer felicidade a elas e só a elas. Esse é um tema profundo, que contém muitas camadas de reflexão, mas como já disse, a vida já ofereceu essa avó ou essa pessoa entendida como autoridade moral, que por ser mais velha, rica ou poderosa, até parece que tem razão ao oferecer dicas de como viver as nossas vidas, passo-a-passos e modelos a seguir. Vamos combinar que esses pontos de referência, esses ensinamentos e expectativas não foram “pensados” para ferir ninguém, mas você acha que essas pessoas tão respeitadas sejam tão infalíveis assim, e que elas saibam de tudo o que está acontecendo nesse mundo e com você na única vida que você tem para viver?


Sintoma de algo “tóxico” como sinalizador de alerta


Como já vimos antes, podemos comparar o sofrimento crônico e incompreensível que causa um relacionamento chamado de “tóxico”, com o que acontece com o corpo quando temos uma intoxicação alimentar ou uma reação alérgica por conta da presença de um agente externo que produz mal-estar, reações imunitárias (de defesa), e coloca em risco a nossa vida, dependendo da gravidade. A alerta tem relação com o risco de morrer, ou pelo menos de ficar sofrendo permanentemente, sem que haja espaço para viver em paz.

Na linha dessa mesma analogia, é importante entender que o corpo só consegue se defender de ameaças se ele estiver preparado, bem alimentado, descansado, e enfim, com forças e energia para isso. Ativar a produção de anticorpos e a função do fígado para reduzir substâncias presentes no sangue, não é algo que acontece sem gasto energético. Superar momentos de perigo para a vida orgânica significa um grande investimento energético e bioquímico. Da mesma forma, é necessário que haja um investimento de algo no plano psíquico (emocional e intelectual), de forma que haja condições para superar riscos psicossociais, como por exemplo os riscos que impõe estar no meio de um relacionamento abusivo, violento, utilitário, humilhante e perigoso para a saúde mental (e até física).

É preciso investir esforços sim, no plano intelectual porque é urgente pensar coisas de outras perspectivas, aprender algo novo, desafiar o conforto de ideias antigas que não trazem nenhuma vantagem na vida prática, e imaginar o que poderia ser feito para encarar novas circunstâncias e desafios que irão se desdobrar de fazer escolhas diferentes. É preciso investir esforços no plano emocional porque é necessário admitir sentimentos difíceis por pessoas e lugares que não nos trazem felicidade nem dignidade, embora achemos por questões de crença e tradição que temos obrigação de “amar” e “respeitar” por cima de tudo e sem limites.

Por exemplo, é interessante analisar as últimas aspas, tanto do ponto de vista intelectual quanto do emocional, já que amar e respeitar não necessariamente têm um significado óbvio e fácil de praticar. Dependendo da perspectiva da qual já pensamos nisso, pode ser que esses dois verbos signifiquem também morrer, sofrer, perder, se humilhar e se exaurir em nome de valores tóxicos que só parecem belos quando colocados num conto de fadas ou num romance onde, no final, ninguém é uma pessoa real.

Vamos avaliar nos nossos papos as verdadeiras razões e formas mediante as quais você, pessoa única, pessoa real que pensa e sente, possa se permitir eliminar os apegos às formas de felicidade ideal e imaginária que até agora você só pagou com muito sofrimento. 

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