Quando foi mesmo que resolvemos nos dividir?

Quando foi mesmo que resolvemos nos dividir?

Todos vimos nessa semana o caso da jovem Thauane Cordeiro, diagnosticada com leucemia e que resolveu usar um turbante com estampas africana para cobrir a ausência de cabelos, efeito colateral do agressivo tratamento, na esperança de continuar viva. Ela acabou sendo abordada por uma jovem negra, alegando que não tinha o direito de usar um turbante, em uma reação de uma aclamada proteção cultural afro, raça que Thauane não parecia pertencer.

Não quero aqui entrar em méritos históricos da questão da 'apropriação cultural', defendida como uma espécie de contra-reação ao racismo. Mas esse caso me fez lembrar do documentário The altruism revolution (disponível no Netflix) que debate sobre os fundamentos da mente humana e nossa essência de sermos empáticos e, ao mesmo tempo, sedentos por nos unirmos em pequenos grupos de semelhantes.

O documentário conta a história de uma pesquisa conduzida por Dr. Richard Davidson - aclamado neurocientista e uma das 100 pessoas mais influentes do mundo - que estudou as reações de bebês quando são deparados em uma situação onde um bicho de pelúcia, interpretando um opressor, faz uma espécie de bullying em um outro bichinho menor e claramente em desvantagem. Depois do pequeno teatro, os bebês de alguns meses de vida são incitados a escolher um dos dois bichinhos para brincar. Adivinhe qual foi a escolha, em 80% das vezes? Sim! Os bebês quase sempre escolheram o "bonzinho" da história. Esse experimento foi repetido inúmeras vezes, com bichos de pelúcia de diferentes tamanhos, cores e formatos para não deixar dúvidas: o ser humano nasceu e é, por essência, empático e fundamentalmente altruísta. Isso explica o por quê de em situações de acidentes e desastres, anônimos se arriscarem para ajudar desconhecidos, mesmo que essa reação vá em contrário ao nosso instinto mais natural: o da sobrevivência.

Então, os pesquisadores ampliaram o estudo para incluir, antes do teatro do bullying entre os bichanos, um pequeno experimento de identificação. Basicamente, o bebê teve que escolher entre dois tipos de doces. Após fazer a escolha, os bichinhos de pelúcia também escolhem, cada um, um pote de doce. Exatamente a mesma escolha que o bebê teve que fazer minutos antes. Depois, inicia-se o teatro onde o mais forte, que por sinal havia escolhido o mesmo doce que o bebê observador, oprime o menor. Após assistir ao teatrinho, o bebê novamente precisa escolher entre um dos dois bichinhos para brincar. E advinha o que aconteceu? A grande maioria escolheu o bichinho 'do mal', não obstante ele tenha acabado de "bolinar" um coleguinha. O bebê se sentiu compelido a escolher aquele que tinha os mesmos gostos que ele, não importa o caráter. Ou seja, ignoraram a sua empatia natural, quando uma semelhança o agrupa em um chamado círculo moral, instantaneamente, com outra criatura. Daí me pergunto: quando foi que resolvemos ajustar as engrenagens da nossa mente para nos diferenciarmos dos outros e nos unirmos em grupos?

Mas isso acaba por explicar muita coisa. Explica por que tão facilmente julgamos militantes de um determinado Partido por seus atos, mesmo que os nossos partidários tenham cometidos os mesmos delitos e são, fundamentalmente, igualmente corruptos - e vice-versa. Explica por que curtimos um comentário extremista no Facebook só por que, à despeito dos fatos e racionalidade, ele se assemelha com o modo como pensamos. Dois pesos e duas medidas. Hipocrisia. Ao nos agruparmos, nos tornamos apáticos.

E isso me chocou sobre a realidade em que - e eu me incluo nisso - vivemos. Perdemos o mais puro e belo instinto de nos colocarmos no lugar da outra pessoa, tão natural que temos, quando nos unimos em grupos e somos obrigados a diferenciar o "nós" do "eles". Trocamos a empatia pela hipocrisia.

Quando uma estudante resolve colocar um turbante para parecer menos doente, ativistas são incapazes de sentir compaixão pela situação de doença para pregar o seu tão aclamado - e justo - ativismo racial; apenas pelo fato dela não pertencer ao mesmo grupo. Por não partilharem a mesma cor de pele.

Sei que o mundo nunca foi um lugar de igualdades aonde ainda, infelizmente, persistem o racismo, homofobia, intolerância religiosa, machismo e tantos outros males que herdamos de nossos antepassados e que já deveríamos ter nos livrado há muito tempo. A luta contra a 'apropriação cultural' é apenas uma delas. Sei também que, no fundo, tudo não passa de uma reação espontânea de proteger o seu grupo e não cabe ao meu limitado, porém curioso intelecto julgar. Nunca senti na pele os terríveis desagrados do racismo, homofobia, machismo ou qualquer outro. Meu gênero, minha aparência e orientação sexual sempre me fizeram pertencer à classe dominante (em número ou poder), mas oxalá (eu) nunca opressor. Também sei que, na maioria das vezes, os extremistas são minorias e servem como âncoras puxando os mais moderados para a causa. Mas para mim, isso tudo, nem de longe deveria ser superior ao fato de que nascemos e somos empáticos. Sofremos com a dor do próximo do mesmo jeito que celebramos as vitórias!

Aqui, não posso deixar de pensar em grandes líderes como Nelson Mandela que, apesar de ter sofrido o racismo na pele, ver seu povo morrer pela intolerância e ser preso por 27 anos por um crime que nunca cometeu; Madiba, ao ascender ao poder como Presidente da África do Sul, não resolveu pôr um fim no apartheid com uma contra-reação protetiva e isolacionista em seu próprio círculo moral. Ao invés, Madiba manteve grande parte do estafe branco que trabalhava em seu gabinete; rejeitou uma nova bandeira ao país que incitava a supremacia negra e celebrou, em seus primeiros meses como Presidente, a vitória do time nacional em um esporte historicamente praticado pelos brancos e que era usado para demonstrar a força e supremacia da raça branca durante o apartheid: o Rugby. Ao invés de dividir para proteger, Madiba resolveu unir.

Isso me leva a concluir esse artigo de uma forma bem diferente do que estou acostumado, com uma pergunta ao invés de resposta. Talvez porque eu ainda não a tenha. Afinal, o que podemos fazer para ampliarmos nosso círculo moral, para englobar literalmente toda a raça humana, todos os seres-vivos no mesmo grupo, nos permitindo sentir empatia por qualquer criatura, não importa suas escolhas ou grupo social? Se você amigo leitor, tiver uma ideia, adoraria ouvi-la em um comentário abaixo.

Como podemos ser mais Mandela?

Nós não temos vários planetas para continuar assim.

P.S.: Sei que este tema pode ser bastante controverso e despertar as mais diversas paixões em você, leitor. Antes, pense que eu compartilho de suas frustrações e também gostaria de viver em um mundo fundamentalmente igual e justo. Lembre-se que nem eu mesmo cheguei a uma conclusão aqui. Abraços e que você tenha um excelente dia!

ADOREI, mas acredito que o fato de sermos parte da ''classe dominante '', nos deixa um pouco cegos.. imagina o efeito em quem não tem, usualmente, empatia como característica própria?! Beijo trombas!

Natália Pavani Pessiquelli

Psicologia | Recursos Humanos | Recrutamento & Seleção | R&S | Analista de RH | Desenvolvimento Organizacional | DHO | Recruiter | Business Partner | BP | Talent Acquisition | HR Analyst | Human Resources Analyst

7 a

ótima reflexão!

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