“Quando se acredita é impossível não florescer” – Um artigo sobre a vida
Tive uma experiência que me fez refletir sobre muitas coisas: Identidade, Família, Escolhas, como Reconstruir a Vida e até Adoção. Quando cheguei à ação social da Inoar Cosméticos na Casa Florescer, em São Paulo, senti que teria uma tarde diferente. E tive. Começou com a calorosa recepção da Lorraine, uma trans de 40 anos, ao me mostrar a casa. Muito simpática, foi contando sobre a rotina, o quanto aquele local é importante e como ações de valorização da autoestima fazem a diferença.
Ao observar cada mulher ali presente, fiquei imaginando o que devem viver, e ao ver as marcas nos rostos, o que passaram. E foi com a Camila, uma senhora trans que chegou há dois meses em São Paulo, vinda do interior do estado, com uma “amiga” que a abandonou no terminal rodoviário e roubou as suas malas, que meus olhos se encherem de lágrimas. Ela nunca tinha morado em uma cidade grande, viveu 18 anos com um parceiro que a trancava em casa e não permitia que ela encontrasse a sua família – “Família, para mim, sempre foi primeiro lugar”, me disse com os olhos marejados. Resolveu ir embora porque, mesmo ele tendo que manter uma distância mínima de 300 metros, ela temia pelo pior.
Ela viveu uma relação abusiva por muitos anos. De repente, tomou a decisão mais importante da sua vida: reconstruir, e foi enganada por uma “amiga”. Perdeu o pouco que trouxe. Sobrou o celular, seu elo para estar perto das pessoas que mais ama: os seus irmãos, com quem falava todos os dias. Só que até isso tiraram dela, foi roubado. Mas não ia desistir, embora fosse tudo muito difícil, estava disposta a reconstruir sua vida, ter um trabalho e uma casa. “Não posso voltar, tenho medo dele”.
Além da Camila, outras duas trans me chamaram atenção, ambas pareciam ter 20 e poucos anos. Uma negra com um olhar marcante, forte, linda. Fiquei pensando em algumas amigas que trabalham em revistas femininas e com um desejo enorme de mandar uma mensagem assim: “Achei a modelo do seu próximo editorial”. Não tive oportunidade de conversar com ela; aliás, a achei até intimidadora de tamanha força no olhar. Só observei. Já a outra, também cheia de atitude, quando teve a chance de falar, reforçou a importância de respeitarmos as identidades: “Somos ELA”.
Foi uma tarde excepcional. Muitos sorrisos, risadas, alegria, envolveram o evento, mas como conseguiam ser tão fortes vivendo a discriminação, o preconceito, o desprezo da sociedade? Muitas vezes, reclamamos de coisas tão pequenas, as tornamos tão grandes que viram um furacão em nossas vidas. Não estou menosprezando os nossos problemas, mas pensando o quanto poderíamos sofrer menos por coisas que não são tão importantes. Ao mesmo tempo, como poderíamos ajudar mais quem precisa?
Na hora de ir embora, fiquei com medo de andar no Bom Retiro sozinha. Na ida para a Casa Florescer vi tantas pessoas à beira do abismo, tanto que os meus sentimentos se misturaram entre dó e medo. Perguntei se naquele horário era tranquilo fazer o trajeto da casa até a estação Armênia do metrô. A resposta foi sim, mas a insegurança na minha voz deve ter transparecido. Eu fiz este mesmo trajeto na ida, mas me senti com medo na volta. O que era um receio, virou a oportunidade para conhecer mais a Lorraine, escolhida para me acompanhar no percurso – a mesma que me recebeu quando cheguei.
Fomos conversando sobre o evento, a importância dele e a vida. Poucos passos depois, não resisti e perguntei se poderia ser indiscreta. Ela disse que sim: “Quando você se descobriu mulher e como veio parar aqui?”. Ela sorriu e me contou: “Sou adotiva. Quando tinha 8 anos me apaixonei por um menino de 16 anos e sabia que eu era mulher. Aos 14 anos, me pai acabou me colocando para fora de casa. Fui para a rua. Conheci um senhor de 71 anos e fui viver com ele, na verdade realizar as fantasias dele. Quando não fazia como pedia, ele me batia muito. Depois de 2 anos, ele faleceu e eu fui viver na prostituição, comecei a usar drogas”. A rua virou a sua casa por escolha. “Não tinha sentido ir para casa ficar assistindo televisão e fazer o jantar”.
Quando falou sobre a decisão do pai, fiquei mexida, pensei na mãe. “E sua mãe? Deve ter sido muito difícil?”. “Foi, ainda é difícil. Fica pior nesta época, pois eu faço aniversário no mesmo dia que meu pai e fico pensando que agora [ela faz aniversário dia 19 de dezembro] toda a minha família está reunida, menos eu.” O sentimento de exclusão me deu um nó na garganta. Enquanto a Camila agradecia pela família que tinha, pelos irmãos que tentavam a proteger; Lorraine, estava fora daquele núcleo, não foi aceita por ser quem é.
Não soube o que dizer, nem como consolar. Mas ela estava feliz, pela primeira vez, como me disse: sem usar drogas e disposta a recomeçar. Desejei um ano novo de recomeços e reconstrução. Dei um abraço, agradeci a companhia e a conversa. Aprendi muito sobre humanidade, amor, doação e, principalmente, como não sabemos nada sobre a dor alheia. A poucos dias do Natal, agradeço a Inoar pela oportunidade de vivenciar esta experiência e poder conhecer estas histórias.
Daniele Flöter Rassi
Mais de 15 anos à frente da área de negócios no segmento B2B especialista em engajamento de clientes através da Tecnologia. Plataformas customizadas, promocionais, ChatBot,sms.
6 aParabéns a Lorraine. Que continue na luta