Quando tudo é prática, ainda há espaço para o ato de pensar?
Estava aqui, imersa nas minhas leituras, refletindo sobre esses caminhos que a gente inventa pra pensar e construir o mundo que a gente quer ver e viver. A causa das mirabolações que ocuparam minha cabeça e deram origem a este texto foi uma série de atividades que fizemos no último final de semana, nas aulas da pós em Design Estratégico da Unisinos. A proposta era imaginar como seria o ensino superior em 2035. Esse tema já tem mexido comigo há um tempo. Embora tenha ficado afastada da academia por alguns anos, as questões relacionadas à educação sempre despertaram minha curiosidade, sobretudo com a descentralização que vimos na última década. O crescimento do mercado de infoprodutos, dos cursos livres, cada vez mais voltados à prática, trouxe uma tendência clara: uma tecnicização crescente dos saberes.
No ano passado, comecei a esboçar um texto que provocava uma questão importante: será que estamos deixando de formar seres pensantes? Essa pressão do mercado, que insiste na aplicabilidade imediata, não está nos limitando de forma preocupante? Penso bastante sobre isso. O quanto essas faculdades e cursos, que focam quase exclusivamente na prática, não estão deixando de lado algo essencial que só a teoria pode oferecer.
Aqui, não me refiro à teoria enquanto algo puramente acadêmico, distante, que fica na gaveta, mas àquela que provoca reflexão, que tensiona os saberes e nos ensina a pensar. Muitas vezes, é no campo filosófico que encontramos o espaço para desenvolver uma visão mais crítica e analítica do mundo. Essa base é o que nos permite aplicar a prática de maneira mais consciente, com uma perspectiva mais estratégica e significativa.
É interessante observar como o ensino superior mudou nos últimos anos. Vimos uma descentralização, que permitiu que o acesso à faculdade saísse de polos elitizados e alcançasse mais pessoas. Isso, por si só, é uma grande mudança — bastante positiva, também. Quem antes não tinha condições de pagar uma PUC ou não possuía acesso à formação necessária para competir no ingresso de uma UFRGS, por exemplo, passou a contar com outras alternativas, seja através de programas como Sisu, ProUni, Fies, ou com o movimento de interiorização das universidades federais ou ainda com o surgimento de opções mais acessíveis no mercado de educação. Eu mesma estudei num campus da UFSM em uma pequena cidade do interior, algo novo na época, mas que já mostrava esse esforço de democratização do ensino superior.
Além disso, vimos o crescimento das universidades a distância, que trouxeram oportunidades para pessoas que, de outra forma, não teriam acesso à graduação. Com a pandemia, muitos cursos presenciais migraram para o digital, e esse modelo só se fortaleceu. Cursos semipresenciais também ganharam mais espaço. Mais ou menos na mesma época, houve o boom dos infoprodutos. De repente, todos estavam vendendo conhecimento, e isso ajudou a consolidar uma narrativa que coloca o ensino tradicional, e em especial o universitário, em xeque. O argumento mais comum é o de que a universidade oferece muita teoria e pouca prática, enquanto os cursos focados em ferramentas ou em demandas de mercado seriam mais diretos e, portanto, mais úteis.
Mas será que dominar apenas a técnica, as ferramentas e a prática imediata realmente nos capacita a entregar algo de valor — para o mercado, mas principalmente para a sociedade? Será que estamos formando pessoas preparadas para ter impacto e construir um futuro mais significativo?
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Uma coisa que me preocupa é o fato de que, ao formar uma grande massa de técnicos e operadores de ferramentas, deixamos a profundidade e a crítica nas mãos de poucos. Aqueles que têm acesso à reflexão mais teórica, ao pensamento analítico e crítico, continuam sendo os mesmos que já tinham privilégios. Será que estamos realmente dando às pessoas o insumo necessário para criar futuros que façam sentido? Ou estamos apenas alimentando um sistema que forma especialistas em seguir fórmulas prontas?
No dia a dia do trabalho, percebo que muitos profissionais, embora tecnicamente competentes, têm dificuldade de entender o contexto mais amplo do que fazem. Falta a habilidade de conectar o conhecimento técnico a outras variáveis, de entender o impacto real do próprio trabalho. Isso afeta o mercado, essa entidade, de formas que muitas vezes não são percebidas.
Estamos ampliando o acesso à educação, mas ainda formando pessoas que, por questões estruturais, não têm as ferramentas críticas necessárias para construir algo diferente. Nesse exercício de imaginar a universidade do futuro, nos perguntamos: será que o mercado vai prevalecer, com cursos cada vez mais curtos e práticos? Ou será que poderemos construir uma educação transdisciplinar e continuada, que não se limite a demandas específicas de trabalho?
A segunda opção me parece utópica, ainda mais considerando o cenário atual. É difícil acreditar que conseguiremos algo assim para todos. Provavelmente, teremos ainda menos pessoas com acesso à educação de qualidade no futuro. A tendência tecnicista, por outro lado, parece cada vez mais forte. Talvez, em 2035, as duas modalidades coexistam, mas já sabemos quem e quantos terão acesso a cada uma delas.
Mesmo assim, cabe a nós repensar como estudamos e ensinamos. Precisamos construir um futuro que faça sentido para o máximo de pessoas, contemplando diferentes realidades. Um futuro onde formamos sujeitos que, mais do que simplesmente responder às exigências imediatas do mercado, consigam interpretar e atuar sobre a complexidade do mundo. Pessoas capazes de, verdadeiramente, captar as sutilezas que moldam nossa realidade.
Profissional de marketing, especialista em conteúdo e gestão de redes sociais, diretora da Ancorar Digital. Sommelier de cervejas e sócia da Cabocla Cervejas Artesanais e do Terreiro Bar Ancestral.
2 mperfeito! as adversidades da vida pedem por profissionais que são capazes de se adaptar, enxergar contextos e fazer projeções coerentes com a realidade, essas questões não estão em manuais ou em cursos rápidos. estão nas trocas, nas horas de estudo, conversas e tempo para digerir e aplicar os conhecimentos, sem falar nos erros e tentativas frustradas.
Creative Strategist
2 mPerfeito, amiga! Já tivemos um sem fim de papos sobre isso, e acho que o boom de gurus de tudo que é coisa e a venda de infoprodutos do tipo “100 ideias de conteúdo para qualquer área” não só alimentam isso aí como são resultado desse ensino que parece que muito oferece soluções mágicas e pouco faz as pessoas pensarem de fato sobre o que aquilo ali significa no trabalho delas. E com as pessoas usando AI como busca de respostas prontas em vez de ferramentas de contexto, as mentes só vão definhando mais e mais, perdendo totalmente o hábito de pensar. Amei te ler por aqui!