Quando a vida é muito
Tem uma palavra que eu adoro em inglês: overwhelming. Uma situação overwhelming é uma situação com a qual você perde a capacidade de lidar, de tão intensa e/ou complexa que ela é, que não lhe dá tempo de elaborar uma reação compatível com o desafio.
E a vida pode ser assim, a vida pode às vezes nos engolir, como um buraco negro a que os astros, os planetas e as estrelas não têm como resistir. A palavra “whelm” significa, inclusive, ser submergido em ou engolido por água.
Há uma série nova na Apple TV+ chama da “The Me You Can’t See” (o eu que você não consegue ver) que trata de problemas de saúde mental, como depressão, bipolaridade, transtorno obsessivo compulsivo e burnout. Eu estou assistindo aos poucos e estou gostando muito, mas já recebi de pessoas queridas qualificações como “muito pesada” ou “sensacionalista”, já que traz o testemunho de muitas pessoas famosas.
O que estou tirando da série, por outro lado, é: 1) problemas de saúde mental decorrem de uma mente que prende a pessoa em pensamentos destrutivos sem que a pessoa tenha consciência, ou, mesmo se tiver, saiba como evita-los; 2) todo mundo é próximo a alguém que sofre de algum problema de saúde mental e todo mundo conhece alguém que já pensou em suicido, então culturalmente a gente deveria perder a vergonha de falar sobre problemas de saúde mental, já que é tão normal; 3) todos deveríamos tomar consciência de que estigmatizar quem sofre desses problemas é estigmatizar uma grande parte da população; 4) falar abertamente sobre os sofrimentos que a mente nos impõe é um caminho para a aceitação e, senão para a cura, pelo menos para uma convivência menos sofrida com esses problemas; e principalmente 5) ninguém merece sofrer sozinho e nem sentir que precisa sofrer sozinho, assim compete ao próximo estender a mão ao sinal de que alguma coisa não vai bem.
De qualquer forma, o que noto dos depoimentos da série é que geralmente o gatilho para os problemas de saúde mental são situações reais e concretas nas vidas das pessoas, que lhes são overwhelming, com as quais elas perdem a capacidade de lidar.
E a pandemia tem nos colocado acho que com mais frequência nessas situações overwhelming, porque tudo ficou meio que muito intenso, inclusive aspectos muito paradoxais das nossas vidas: o contato social intenso com um grupo bem restrito de pessoas em função do confinamento; a solidão com o distanciamento social; o multitasking com o home office e o home schooling; o trabalho, com as facilidades de o MUNDO virtual entrar nas nossas vidas sem qualquer necessidade de deslocamento (inclusive para almoçar ou ir ao banheiro); maior rendimento com a maior autonomia e gerenciamento do próprio tempo; maior exaustão com a maior autonomia e gerenciamento do próprio tempo; sem contar a perda de renda sofrida pela maior parte da população com as redução da mobilidade, das atividades econômicas e dos hábitos de consumo; mas principalmente a perda de pessoas amadas. Esse último aspecto pode facilmente fazer qualquer pessoa perder o prumo e o rumo.
Eu tenho uma relação muito dicotômica com o overwhelming. Tem algo sobre essa intensidade e falta de controle de que eu gosto muito, que é muito vida. Que eu acho que é muito paixão também. Você vai vivendo e respondendo à medida em que as questões vão se colocando, sem limites, e de alguma forma aproveitando e ficando no presente porque nem dá muito tempo de pensar e planejar o que vem na sequência.
Por outro lado, viver assim, com tanta coisa com que lidar o tempo todo não é algo que se caracterize como relaxante. A gente tem sempre ou a impressão de estar cansado ou, no mínimo, sem um segundo a perder, por mais recompensador que seja ver os resultados dos esforços. Talvez seja isso que nos faça seguir em frente, surfando as baterias de ondas, do jeito em que forem se apresentando: uma confiança na experiência, de que a gente vai dar conta, e de que o esforço se paga sempre de alguma forma, e às vezes de formas antes inimagináveis.
E falo isso, sobre o que recebemos em troca do esforço assumir formas que também podem ser imprevisíveis, porque nem sempre é o acerto ou o sucesso, às vezes é o aprendizado, muitas vezes são outras pessoas (porque dificilmente fazemos ou conquistamos algo sozinhos). Para mim acho que é mesmo a qualidade das experiências que importa, e não me abalam muito a pressão e a urgência, e tampouco o resultado se o esforço foi envidado de forma diligente, mas sim valorizo muito como trabalhamos juntos, de forma construtiva, comprometida e colaborativa, mesmo em circunstâncias adversas.
Ocorre que trabalho não é tudo na vida. E que nem todo mundo é assim como eu, que gosta do “tudo junto e misturado” – já falei por aqui algumas vezes que essa frase do Richard Branson me representa:
E, para as pessoas que como eu optaram por constituir família, é muito importante ter atenção àqueles que estão em nosso entorno. Porque essa vida meio imprevisível afeta a previsibilidade e a compartimentalização que esses podem considerar importantes em suas vidas.
O jeito com que consegui acomodar isso na minha vida é deixando os finais de semana à mercê dos meus filhos. Na vida sem pandemia, eles não me cobravam a ausência durante a semana. Eu dava um jeito de leva-los à escola pela manhã, de almoçar com eles às quartas-feiras e de jantar com eles às sextas – com algumas chamadas pelo FaceTime ao longo da semana, em caso de necessidades específicas. E nos finais de semana, passávamos o tempo todo juntos, fazendo programas diferentes.
Mas a pandemia embaralhou tudo. Por um lado, estou com eles o dia inteiro, o que eu realmente considero um privilégio apesar de ser um tanto irritante porque crianças tumultuam os nossos dias de trabalho. Mas meus finais de semana têm sido muito consumidos pelo trabalho, o que começou de forma excepcional, mas que corre o risco de virar regra, se não impusermos limites.
Esta semana que passou foi muito puxada, com muitos compromissos públicos em horário muito cedo e dias muito longos, com muitas coisas urgentes e relevantes para encaminhar. E nesta semana foi também o aniversário da minha filha caçula, ela fez 8 anos. Então ainda tivemos que pensar em como viabilizar uma comemoração comedida em tempos de isolamento.
O aniversário dela caiu na quarta-feira, mesmo dia em que eu participei de um evento internacional e em que tive que fechar um texto com uma grande equipe numa reunião que durou algumas horas da tarde. Assim, não deu outra: lá fui eu para o parabéns da minha filha de look de webinar e fone de ouvido de academia para poder participar da reunião pelo celular, falando de máscara porque estávamos em espaço público.
Essa foto desperta em mim um sentimento ambivalente, porque muita gente disse que ficou com um coração meio partido de me ver participando do aniversário da minha filha sem poder largar uma reunião. Mas, de alguma forma, ela registra para mim um sentimento de alegria, de que eu consegui conciliar os meus papeis, de que eu não precisei de abrir mão de um para viver o outro, o que eu considero um privilegio. Daí, ao longo da semana eu consegui registrar mais um momento como esse - a foto da capa deste texto. Passei o dia inteiro numa reunião e tive a oportunidade de dar colo à minha filha em meio aos dramas infantis. Quando na vida eu sonhei que conseguiria trabalhar assim? Só essa pandemia doida para nos propiciar vivencias assim antes tão inimagináveis. E como eu me sinto grata por poder viver meus dois papeis ao mesmo tempo.
Porque, de fato, quase não havia essa mistura de mãe e profissional antes. Porque os ambientes eram muito separados. Tanto é que, nesta semana mesmo, eu estava pensando que essa pandemia também propiciou aos meus filhos saber no que consiste o trabalho da mãe deles. O que é trabalhar com “as energias”. Com o que eu passo o meu tempo no trabalho. Eles sabiam que eram muitas reuniões, inclusive essa era uma brincadeira recorrente nos nossos jantares – brincar de reunião, com cada um escolhendo um item da pauta e todos opinando sobre tudo. Mas acho que agora ficou muito mais concreto. Tanto é que perguntei à minha filha, do alto dos seus 8 anos, o que ela gostaria fazer quando crescer, se seria algo como a mamãe, e ela disse que gostaria de ser astrofísica, para poder ficar observando os planetas. Mas a gente ficou se questionando o que mesmo será que os astrofísicos fazem ao longo dos seus dias de trabalho – então, se algum leitor souber e quiser matar a nossa curiosidade, agradeço o feedback ;)
Falando em filhos, para concluir, eu não posso deixar de falar sobre impor limites. Eu não tenho problemas nenhum na minha vida em impor limites para os meus filhos e em falar não, por mais desgastante que isso seja. E hoje vejo o quanto isso é importante também nas nossas vidas profissionais em que anda tudo muito junto e misturado, com a gente gostando (como eu) ou não. Quando o limite era bastante delimitado pela separação espacial e horária entre o que era trabalho e o que não era, não havia muita necessidade em sinalizarmos esse limite. Mas agora vejo que tanto os profissionais quanto os seus líderes precisam saber comunicar melhor os seus limites, em prol da manutenção da produtividade do trabalho que, por sua vez, depende muito da motivação e da capacidade de engajamento de todos.
É importante que saibamos que o nosso valor não está em dizer sim a tudo e nem em sucumbir a pressões inoportunas com medo de que questionem o nosso comprometimento. Naturalmente que é necessário haver sensibilidade e percepção sobre situações excepcionais, aquelas em que temos mesmo que go the extra mile. Mas é importante deixarmos claro nossos limites sob pena de nos sentirmos abusados e de perdermos a alegria e a satisfação com o trabalho - e com a vida, já que passamos muitas horas do nossa vida trabalhando.
Assim, se queremos que a vida daqueles que nos cercam não se torne overwhelming, é importante termos atenção àquilo que é razoável de se esperar de cada um, mesmo pessoas 100% comprometidas com seus trabalhos precisam de tempo para outras coisas. Já basta a Covid-19, não precisamos de mais motivos para adoecer.
Contribuindo com o desenvolvimento da sociedade através da disponibilização de Energia Eletrica de qualidade, renovável e acessível.
3 aExcelente! Eu só não consegui ainda deixar de me sentir culpada por não estar inteira em alguns momentos em que tanto meu filho qto o trabalho demandam simultaneamente. Estar em homeoffice e homeschool tem colocado a prova, entre outras coisas, minha orientação de ser o Porto Seguro do meu filho… qdo ele me procura chorando, buscando apoio para seu momento de dificuldade, no mesmo momento em que estou conduzindo uma reunião, é muito estressante (quase overwhelming) parar a reunião e deixar todo mundo esperando 5 minutos enquanto acolho meu filho e por outro lado, findados os 5 minutos, mas não o drama dele, ter que dispensa-lo e dizer que depois continuaremos a conversar… Nossa… Definitivamente preciso desenvolver muitas habilidades ainda para lidar melhor que esse junto e misturado que a vida se tornou…
Liderança/coordenação de projetos e pessoas - Estruturação de uma Estratégia de Inovação / Fomento à Cultura de Inovação no ONS / Desenho organizacional / Sustentabilidade - Sólida formação acadêmica (DSc e MSc).
3 aAgnes, o conteúdo do texto por si só, descortina mesmo o tudo junto e misturado que vc disse que gosta, porque ao invés de vir aqui falar do mundo técnico, energia, de SEB, vc veio falar de humanidade e como cada um lida com as novidades que a pandemia nos trouxe. No meu caso, trabalhar em home office trouxe uma aproximação maravilhosa com a vida da minha filha, que está com 12 anos e um salto em qualidade de vida, porque moro em Petrópolis e meu trabalho é no Rio. Enfim, parabéns pelo texto e pela clareza na expressão das ideias, foi uma leitura prazerosa.
Vice-President - Legal and Regulatory (VP Jurídica e de Regulatório) na Compass
3 aIncrível esse depoimento! Muita sensibilidade e conteúdo, Agnes! Obrigada por dividir conosco. Me identifiquei em muitas coisas!
Especialista em Gestão e Docência no Ensino Superior
3 aExcelente reflexão!
Advogada e Professora UnB. Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional, Compliance, Anticorrupção, Acordos, Arbitragem, Societário.
3 aExcelente, Agnes! Me lembrou da frase da Shonda Rimes, no livro O ano em que disse sim, de que ela passou a dizer sim para dizer não, é que não é uma frase completa. Achei incrível. Obrigada por compartilhar seus pensamentos, mais uma vez