Quem você vai ser quando a crise passar?

Quem você vai ser quando a crise passar?

A primeira premissa deste texto é de que a crise vai passar. Não todas as crises (já vivemos tantas...), mas especificamente esta, que nos levou a uma situação inédita na nossa história de enfrentamento de uma pandemia e de severo isolamento social. A segunda premissa é de que, passada esta crise, não seremos mais os mesmos. Com maior ou menor intensidade, alguma coisa terá mudado em cada um de nós.

Comecemos com as formas como nos divertíamos: serão elas as mesmas? Ou, passada a crise, vamos preferir evitar aglomerações, privilegiando a diversão fácil e barata dos streamings e deliveries, mesmo que na companhia de (poucos) amigos? Inovação nunca foi algo tão presente em nossas vidas, e as antigas aulas de línguas, dança, artesanato, yoga etc. simplesmente se tornaram virtuais e talvez continuem assim por um bom tempo. Tudo isso porque as máquinas passaram a ser o nosso anteparo, física e mentalmente.

E a maneira como nos relacionamos com a tecnologia no trabalho? Será que voltaremos a ter as costumeiras reuniões presenciais ou vamos aderir de vez ao Zoom? Estar com clientes e colegas “olho no olho” vai ser realmente fundamental ou nos valeremos de todas as ferramentas disponíveis que dispensam o contato físico? Vai fazer sentido gastar tempo e dinheiro com deslocamentos, se podemos estar “presentes”, mesmo que remotamente?

Claro que voltaremos à nossa rotina de casa-trabalho-casa, mas garanto que os céticos em relação ao home office saem dessa revendo seus conceitos. E aqueles, empresas e indivíduos, que já o apoiavam certamente adotarão a prática com mais intensidade. O que, por sua vez, interferirá na nossa vida familiar, já que teremos a opção de estar mais tempo em casa do que fora dela (diferentemente do que ocorria antes).

Não acho que são só os aspectos práticos da nossa vida que irão mudar. A situação que ora vivemos nos forçou a exercitar a compaixão com muito mais intensidade. Poucos foram aqueles que não se solidarizaram com os afetados pela doença ou pela paralisação da economia. Muitos continuaram a pagar por serviços que não consumiram simplesmente para ajudar aqueles que tão poucas opções têm. Outros colaboraram de outras formas, inclusive com doações e trabalho voluntário. Iniciativas como essas não foram poucas e o sentimento que as impulsionou não vai desaparecer de uma hora para outra.

E quanto às nossas certezas e convicções? Passar por uma crise mundial dessas proporções nos aproxima do imponderável de uma forma que, tenho certeza, a maioria de nós nunca viveu. E não tem para onde correr ou fugir: pegar um avião e atravessar oceanos só vai agravar o nosso risco de saúde.

Não temos controle de absolutamente nada. Eu não controlo nada, você não controla nada, ninguém no mundo controla nada, nem (e especialmente) os mais poderosos que, salvo raras e honrosas exceções, deveriam ter as respostas e ações, mas tão pouco sabem ou agem.

É bem verdade que as condições de enfrentamento da doença e do isolamento social são bem diferentes entre as pessoas, uns muito mais vulneráveis que outros. E é aí que o abismo social em que vivemos e com o qual nos acostumamos fica ainda mais evidente e machuca como nunca. Mais um indício de que sairemos diferentes dessa.

A colaboração se tornou um mantra entre nós. Seja na vida pessoal, seja na vida profissional, estamos muito mais disponíveis para ajudar, apoiar, ou mesmo para simplesmente olhar os outros. Quase todas as reuniões (virtuais) começam com algo como “espero que estejam todos bem”, e terminam com “cuidem-se e fiquem seguros”. Duvido que estivéssemos tão preocupados uns com os outros antes...

Por fim, acho que revisitaremos a nossa capacidade de planejar e antever o futuro. Viveremos com mais intensidade o hoje, porque teremos experimentado a sensação aguda de imprevisibilidade do futuro. Ainda que como “futuro” consideremos as próximas semanas ou meses.

Isso é necessariamente ruim? De maneira nenhuma. A economia sofrerá, mas o céu estará mais limpo e a poluição no mundo terá diminuído. Seremos todos mais resilientes, porque fomos obrigados a nos adaptar e superar situação extremamente adversa. E, mais do que nunca, saberemos valorizar as pequenas conquistas da vida: ir à padaria tomar um sorvete, visitar um amigo, receber gente em casa, correr na rua, viajar para a praia. Tudo isso sem viver a culpa e o medo de romper com o isolamento social e ficar doente.

Sou otimista, antevejo transformações desejáveis e oportunas, e realmente acredito que a experiência que estamos vivendo nos traz a singular oportunidade de sairmos dessa melhores do que entramos. Como pessoas e também profissionalmente. Afinal, sensibilidade, resiliência, empatia e capacidade de superação são características muito benvindas a todo e qualquer profissional. Cada um decidirá quem vai ser quando a crise passar. Difícil imaginar que seremos os mesmos. Felizmente!

Carolina Secches (she/ela)

Advogada auxiliando investidores estrangeiros investindo no Brasil

4 a

Ótimo texto, Glaucia. Parabéns! Concordo 100%.

Excelente! 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

Dalton Romano

MBA Software Engineer | Tech Lead | Full Stack

4 a

Que ótimo texto, compactuo totalmente com ele.

cristiane tacla

Psicóloga clínica de crianças, adolescentes e adultos.

4 a

Tentaremos ser uma versão melhor de nós mesmos!

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