A receita para fechar uma ferida
Assim que eu cheguei na praia corri para a janela ver se o meu vizinho João estava por ali também. Eles moravam em outra cidade, mas passavam as férias na mesma cidade que nós.
Eu conheci o João quando ainda éramos bem pequenos. Nossas famílias eram vizinhas em uma casa de veraneio no interior de Santa Catarina e, por termos idades bem parecidas cultivávamos os mesmos hábitos durante as férias. Mesmos horários de ir para a praia, de dormir, de comer e de brincar. Isso facilitava muito para as mães.
Em especial no verão anterior estivemos muito próximos. Já fazíamos algumas coisas por nossa conta e éramos unha e carne. Eu vivia na casa dele e ele na minha.
Trocávamos confidências, e principalmente, surfávamos juntos todos os dias.
Nesse ano cheguei antes, e como sua família não tinha chego ainda, fiquei ansiosamente esperando. Quando o carro deles encostou saltei do sofá e esperei o João correr para a nossa porta, mas ele não veio.
Imaginei que talvez estivesse envolvido com o descarregar do carro, arrumar e limpar a casa, e então decidi esperar até o dia seguinte para ir visitá-lo. Eu não via a hora de ir surfar com ele.
No dia seguinte, acordei, preparei todos os meus equipamentos e fui bater na porta deles. A mãe dele atendeu e ficou bem feliz em me ver. Conversamos um pouco e perguntei se o João já tinha acordado, e ela me respondeu:
- Acordou sim. Mas o Felipe passou aqui e eles sairam para sufar.
Aquela resposta me machucou um pouco. Felipe era o vizinho da casa do outro lado, mais velho que nós e já tinha um carro, o que permitia ir para outras praias surfar. Senti um ciúme fraterno por João não ter ao menos batido lá em casa para me chamar. Muitas coisas passaram na minha cabeça, entre elas, a que preferi aceitar é que talvez ele não soubesse que eu estava por ali.
Quando ele voltasse poderíamos colocar o papo em dia e começar a nossa rotina de verão.
O dia passou e ele não bateu lá em casa. No outro dia pela manhã, acordei, olhei pela janela, e novamente ele estava colocando as pranchas no carro do Felipe e saindo para surfar. Aquilo foi me machucando e a cada dia minha ferida crescia. A ponto de mal conseguir curtir os meus momentos de surf e o meu verão.
Quase uma semana depois cruzei com ele. Ele me abraçou de uma forma carinhosa, me contou sobre como estava aproveitando as ondas de outros locais, perguntou de mim e disse para marcarmos de surfar. Não falei com ele sobre a minha dor, mas me animei com a possibilidade de tudo voltar ao normal.
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Mas não voltou. No dia seguinte ele saiu para surfar e nem deu atenção para mim.
Eu senti bastante aquela situação. Corria para a janela quando ouvia o barulho das pranchas. Também escutava eles conversando na volta de suas aventuras e confesso que por vezes torci para que as histórias das ondas que eles tivessem pego no dia fossem ruins. Mas nunca eram. Eles estavam se divertindo muito, e sem mim.
Eu também tentei outras estratégias. Passava em frente a sua casa com minha prancha para mostrar que estava indo surfar, deixava a minha prancha para fora tentando mostrar que eu tinha surfado. Tudo isso para tentar despertar nele a vontade de ir surfar comigo. Mas nada trouxe o verão passado de volta.
Passei algum tempo ruminando esse assunto, sem conseguir realmente tocar o meu verão em frente. Não conseguia extrair emoções positivas de todas as coisas boas e deliciosas que aconteciam ao meu redor. Coisas que sempre amei. Minha energia estava travada naquele sentimento que misturava uma mágoa de ter sido abandonado pelo amigo, e uma dificuldade em perdoar o que ele havia feito. E aquilo era um pensamento constante.
Enquanto eu dedicava meu tempo tentando reverter aquela situação, que não dependia de mim, a ferida só aumentava. Isso só começou a mudar quando eu tomei a decisão de mudar o meu foco, aceitar o que estava acontecendo e fazer o que realmente estava ao meu alcance.
Passei a tentar me divertir mais nos meus passeios e sessões de surf. Também passei a conversar mais com as outras crianças que surfavam e que volta e meia passaram a ser meus companheiros de atividades. Também comecei a aceitar que naquele momento só poderia surfar ali perto de casa, pois, ainda não tinha idade para ter um carro como o Felipe. E parei de olhar pela janela ou passar em frente à sua casa quando não precisava.
Aquela ferida aberta semanas antes, não fechou rapidamente. Mas a minha decisão de parar de olhar somente para ela, fez com que ela parasse de crescer e saísse de uma espiral de chateação e tristeza. Ao contrário disso, as “novidades” que fui percebendo ao meu redor, criaram um ciclo de crescimento e pouco a pouco eu recuperei a minha alegria, minha capacidade de me divertir surfando e a aproveitar todos os momentos bons que aquele verão estava me proporcionando.
Esse sentimento nem de longe foi algo só meu. Em minhas mentorias e sessões de coaching me deparo diariamente com pessoas que atravessam essa mesma espiral negativa, na qual estão presas a uma situação geralmente criada por outra pessoa e não conseguem se libertar. Em muitos casos levando as pessoas à depressão.
Mudar o foco não significa esquecer a ferida, nem deixar de tentar compreender uma situação ruim pela qual passamos e nem muito menos aceitar uma injustiça com você. Signigica sim quebrar esse ciclo negativo que te leva para baixo. Representa ainda olhar para o que te cerca e encontrar as coisas que te fazem bem, e compreender que as emoções positivas na nossa vida são contagiantes entre sim.
E à medida que acessamos elas, começam a colorir o nosso dia a dia, fazendo com que as nossas feridas passem a ser não o único pedaço da nossa vida, mas apenas mais um componente da nossa história.
Você já passou por alguma situação assim?