RECOMEÇAR

RECOMEÇAR

Filha, agora eu entendi tudo. Como você trabalha feliz!

Quando ouvi essa frase, dita por meu pai, um sorriso surgiu em meu rosto. Como se, naquele instante, todo o esforço para proporcionar a mim uma educação de qualidade tivesse alcançado retorno e reconhecimento.

Apesar de terem nascido em um contexto de restrições econômicas, meus pais investiram seus ganhos e economias para que eu e meus dois irmãos pudéssemos estudar em uma escola americana internacional, a Pan American Christian Academy - PACA, uma escola pequena, mas com forte senso de comunidade, onde alunos de diferentes países aprendiam a arte do convívio. Sempre gostei de estudar e de aprender, organizava grupos com facilidade pelo meu bom relacionamento com as pessoas e era vista como uma aluna referência, disposta a apoiar as amigas que pediam ajuda e a superar as metas que eu determinava para mim mesma.

Uma delas foi entrar em uma faculdade pública para evitar preocupação financeira. Orientada por minha vocação para comunicar, iniciei a minha formação em Comunicação Social com foco em Relações Públicas, na Universidade de São Paulo - USP, ao mesmo tempo em que comecei a dar aulas de inglês para executivos em empresas. Ainda durante a minha formação, fiz estágios na Câmara Americana de Comércio, na Microsoft e na área de Marketing da Reckitt Benckiser, onde me apaixonei pela possibilidade de unir visão de mercado, estratégia, gestão de negócios e de marca e comunicação. Logo que me formei, a empresa me ofereceu a possibilidade de uma experiência internacional. Passei um ano em Londres, voltei para o Brasil e naturalmente continuei fortalecendo a minha carreira como executiva.

A curiosidade por atuar em um novo mercado e a vontade de seguir evoluindo me levaram a aceitar um novo desafio, como gerente de produto para a Nivea, marca pela qual até hoje guardo um bonito valor afetivo.

Carreira e maternidade

Um ano depois, entre metas a cumprir e a vida frenética de quem está construindo carreira, eu havia me casado e já trazia comigo o sonho de ser mãe.

Apesar do desejo, no momento planejado, a gravidez não aconteceu.

Se eu havia alcançado todas as metas que havia determinado, se meu sentimento era de conquista para tudo o que havia planejado, como eu não conseguia engravidar?

Hoje percebo que, na época, talvez eu não soubesse diferenciar meta de sonho, colocando essas naturezas distintas em um mesmo balaio, preso à ideia de controle, sucesso e submissão ao que esperam de nós.

Passei dois anos às voltas com tentativas de gestação e investigação da causa que me levava a esperar a maternidade. No trabalho, tudo seguia seu curso. Eu me desafiava, crescia, abria novos caminhos, mudava de área. Me dedicava ao desenvolvimento do meu time, colocando em prática o quanto eu gostava de apoiar pessoas. Sem esquecer a mulher que desejava ser mãe, optei pela realização de um tratamento e enfim engravidei.

No sétimo mês, passei a vivenciar uma gravidez de risco que me levou a ficar de repouso em casa por praticamente 9 semanas. De forma repentina, interrompi a entrega de valor no círculo social de meu trabalho, me desconectei de pessoas que eu gostava e passei a enfrentar o medo da perda e a sensação de dependência, já que todo o cuidado com o meu corpo demandava ajuda.

Pietro chegou

Tornei-me mãe aos 34 anos de idade. O nascimento de meu filho trouxe alegria junto a um turbilhão de emoções e sentimentos, ansiedade, dificuldade de amamentar e cobranças que passei a impor a mim mesma. Talvez por pressão social, muito do que se vive na maternidade não é dito. Entrei em um processo de depressão pós parto que só foi descoberto depois de quatro meses.

Estávamos, eu e meu marido, em uma fase difícil e desestruturada onde eu não acreditava que voltaria a ser quem eu era e começava a pensar no término de minha licença, questionando a minha capacidade de voltar a trabalhar. Passei a me cuidar com ajuda terapêutica e psiquiátrica.

Retorno ao trabalho e separação

Quando retornei da licença maternidade, todos os dias eu pensava em pedir demissão por me sentir incapaz de voltar ao meu desempenho anterior. O que me impulsionou a não desistir, além da minha fé, foram familiares e amigos de trabalho que sempre me fizeram acreditar que eu superaria aquele momento. Aos poucos, fui me reestabelecendo e me reintegrando profissionalmente. Porém, o mesmo não aconteceu em meu casamento. Eu e meu marido nos separamos quando Pietro tinha um ano e quatro meses de idade.

Continuei seguindo a minha trajetória profissional da Nívea, cumprindo o meu nono ano de dedicação à empresa. Nesse momento, eu acreditava que meu movimento natural seria seguir carreira internacional. Mas sabia que isso não seria possível. Divorciada, mãe de um menino de dois anos, com guarda compartilhada, eu me sentia responsável por meu filho e com a necessidade de estar atenta a ele.

 

Será que vou ficar obsoleta?

Apesar das mudanças que me conduziram a renovações dentro da Nivea, havia a vontade de algo mais, um chamado de mudança orientado ao meu crescimento profissional. Foi então que surgiu a oportunidade de assumir uma posição global, sem sair do Brasil, em uma empresa de tecnologia: a Motorola.

Achei que meu filho, apenas com dois anos, fosse pequeno demais para sentir possíveis ausências realizadas durante períodos em que ele estivesse com o pai. Mas logo surgiu o dilema de conciliar a maternidade com uma posição que exigia inúmeras viagens internacionais. Foram dois anos em trânsito pelos Estados Unidos, China, Índia e países da Europa. Um momento rico pela diversidade de mercados que eu estava vivenciando, com o desafio de gerenciar um time espalhado pelo mundo, com os mais variados fusos horários. Era como se eu passasse o meu tempo em um desses fusos ou em um avião.

Se por um lado o contexto internacional era familiar, por minha formação em uma escola americana, por outro, uma empresa de tecnologia estruturada em engenharia de produto e de vendas, com alta pressão por resultados e acúmulo de trabalho devido a reestruturações, me desafiava a encarar o constante enfrentamento de questões culturais e políticas.

O que eu não esperava é que, após um período de férias em que levei Pietro para conhecer a Disney, eu seria demitida, como consequência do acirramento de questões de poder que estavam fora do meu controle.

Eu, a melhor aluna por muitos anos, oradora da turma com as médias mais altas, respeitada e admirada por professores e colegas, convidada a uma experiência internacional já no início de carreira, com rápido crescimento em minha escalada corporativa, bem avaliada tecnicamente e como líder, geradora de resultados em mercados e contextos altamente desafiadores, vi tudo ser resumido a uma única palavra: desempregada.

E agora?

Fui informada sobre o meu desligamento no dia em que retornei das férias.  Saí da empresa no período da manhã sem me despedir de ninguém e às 14h eu estava na escola do meu filho para cantar parabéns pelo seu aniversário. Fingi que nada havia acontecido engolindo o choro.

Eu nunca poderia imaginar que passaria por um processo de demissão aos 38 anos de idade. Fui feliz como executiva. Mas vivi o período de maior desconexão com meus valores, distante de um perfil de liderança capaz de nutrir ambientes verdadeiramente saudáveis.

Busquei, na paixão pelos estudos, a mola propulsora para iniciar uma nova etapa.

Qual o próximo movimento?

Comecei a me capacitar para uma necessária transição e um novo ciclo de carreira. Minha agenda não ficava vazia. Busquei conhecimento, conteúdo e relações em seminários e workshops, dois treinamentos de curta duração na escola de negócios criativos digitais Hyper Island, curso de inovação na Berkeley Haas School of Business, University of California - EUA e Programa de Transformação Digital na Fundação Dom Cabral, em Nova Lima, no estado de Minas Gerais.

Passei a me conectar com o ecossistema de transformação e inovação. Durante três meses, atuei como facilitadora na Hyper Island, passei a ser chamada para participar de projetos do Distrito, hub de inovação que fomenta a conexão entre start ups e grandes corporações, comecei a desenvolver projetos independentes.  Não era apenas um novo momento que eu iniciava, mas também um novo jeito de trabalhar, de forma colaborativa e em rede.

Nesse período, reencontrei a minha atual sócia, Andrea Dietrich, que conheci em 2014 em viagem de trabalho. Ela havia iniciado uma nova trajetória empreendedora e estava com a consultoria dela, trabalhando em parceria com uma aceleradora de start ups chamada Organica. 

Fui somando possibilidades de participação em projetos de inovação, aceleração de start ups e transformação de negócios junto ao Distrito, Organica e também de forma independente, sempre seguindo a ética do trabalho em rede.  Eu me sentia valorizada por meu conhecimento e criatividade, aspectos que eu manifestava desce a infância e que foram reativados em mim.

Todos os dias eu me desafiava a realizar algo que nunca havia feito, me movimentando em mercados diversos e diferentes segmentos, unindo a minha experiência em grandes organizações com o frescor das start ups. Aos poucos, fui adquirindo uma nova identidade profissional. Ser indicada para novos projetos para os quais eu levava metodologias e facilitação de jornadas de inovação tornou-se natural.  Passei a me questionar.

Por que eu não posso ter a minha própria marca?

Dessa reflexão nasceu a minha primeira consultoria, a Zero Gravity Thinking, nome que surgiu a partir do conceito de que muitas vezes o que sabemos é o peso que nos impede de fazer algo diferente. Muita expertise pode nos impedir de inovar. Ao encontrar formas de desafiar o que já sabemos, podemos chegar a um pensamento gravidade zero. Fui fortalecendo a minha forma de trabalhar em rede.

A virada de chave

O que pulsava de forma definitiva em mim era o quanto eu gostava do que estava fazendo. O tempo fez crescer a confiança de que eu não precisava carregar um sobrenome corporativo. Nem ser sempre uma consultora a serviço de outros. Eu podia ter o meu próprio negócio, formar times e trabalhar em projetos dentro da minha própria empresa.

Percebi que a reputação que eu havia construído em vinte anos de carreira trazia segurança para que as pessoas me indicassem e me chamassem para novos trabalhos. Nessa altura, eu conseguia unir relações construídas durante toda a minha trajetória em multinacionais com o frescor das start ups, segmento mais recente para o qual eu havia passado a me dedicar. Ao mesmo tempo, comecei a ser procurada por pessoas interessadas em realizar movimentos de transição. Era 2019 e tudo seguia bem.

O inesperado

Em março de 2020, todos os projetos foram paralisados ou cancelados. A pandemia da Covid 19 suspendeu sonhos e planejamentos, surpreendeu e aniquilou certezas dentro de uma realidade para a qual ninguém estava preparado para enfrentar. Se por um lado o contexto era imobilizador, por outro, havia a vontade de prestar alguma contribuição diante de tantas dificuldades.

Ambidestria e a vontade de agir

Dessa inquietação surgiu o podcast Ambidestra, caminho que Andrea Dietrich e eu criamos para fomentar o empreendedorismo entre as mulheres e motivar ações de sobrevivência considerando, entre tantas fragilidades, o altíssimo desemprego.

Ambidestria, em biologia, refere-se à capacidade de utilizar ambas as mãos com destreza. Quando aplicada ao contexto profissional, nos abrimos para desenvolver novas habilidades. Nas organizações, sugere ser racional e também colocar em prática a criatividade, usar a mentalidade fixa somada à de crescimento, onde aprendemos com os erros e nos colocamos em processo contínuo de evolução. Encontramos, nessa atitude mental positiva e aberta à construção de novos caminhos, a inspiração que queríamos para apoiar mulheres em sua jornada de transformação. 

Em maio de 2020, iniciamos o compartilhamento de episódios semanais. A proposta inicial de ajudar as mulheres a estruturarem seus negócios evoluiu para novas temporadas, dentre as quais: Virtudes, Rituais e as nove dimensões do bem estar, EM-PACTO com empreendedoras periféricas e negócios de impacto, Radar de Inovação, Ambidestria na Prática, repertório que segue semeando muito mais do que poderíamos imaginar.

Quando o mercado começou a dar sinais de retorno, eu e Andrea passamos a realizar projetos levando o conceito da ambidestria para novas entregas. De forma natural e não planejada, o que estávamos cultivando no podcast Ambidestra se encaixava às demandas. A temporada Rituais, por exemplo, atendeu perfeitamente uma das solicitações que recebemos.

Estava na hora de constituir um modelo formal de sociedade. Em 2023, Charles Beck Varani se juntou a nós como sócio da Ambidestra.

Sobre empreender

Acordar para o que nos move, relembrar nossas paixões. Para empreender precisamos ter capacidade de atração de negócios baseada em algum talento que trazemos. No meu caso, me considero habilidosa em conectar ideias e conectar pessoas, compreendendo que cada conexão é uma oportunidade de encontro onde abrimos espaço para o outro e o outro para nós.

O jeito de cada um, traduzido na vontade de colocar o próprio estilo e voz no que fazemos, por sua força natural, pode nos tornar capazes de gerar demanda e fortalecer o aspecto comercial.

A disposição para relações diversas e também para ouvir quem está ao nosso lado é um bem precioso que nutre a diversidade e uma rede colaborativa.

Valorizar o que as pessoas têm de melhor, dividir conhecimento, estabelecer uma relação ética e equilibrada entre dar e receber favorecendo a energia da multiplicação são bênçãos no caminho.

Não ter medo de fazer o que nunca fizemos e ao mesmo tempo saber que podemos errar. É preciso coragem e otimismo para enxergar e explorar possibilidades. Nada é fácil. Mas os recursos que construímos ao longo dos anos tornam-se confiança e, acredite, passam a florescer. Acredite!

Amar o que faz. Uma nova vida!

Fui me tornando empreendedora sem saber ao certo quando passei a me reconhecer nesse lugar. Me revelei para mim mesma quando percebi que as coisas poderiam ser feitas do meu jeito de forma desafiadora, criativa, coletiva, experimentando a liberdade de escolher o que faz sentido com mais consciência sobre a responsabilidade pelo que fazemos. Hoje, me sinto mais presente, inclusive na relação com meu filho. E sinto orgulho de ser também uma referência inspiradora para ele.

A crença de que teríamos uma única carreira, um único grande amor, uma única fonte de felicidade definitivamente tornou-se ilusão. Vivemos e ainda viveremos inúmeras transições em nossas vidas. Como terremotos, essas travessias nos deslocam do estado de ter os pés fincados no chão ao movimento de (re)ação na ponta dos pés, mas não sem antes nos deixar soterrados pelas emoções e rupturas que o processo causou.

Estar pronta para contribuir, fomentar, gerar energia e movimento conectando ideias e pessoas, com respeito e parceria, é o que mais me deixa feliz.

Honro e agradeço meus avós, meus pais e todos que fazem parte da minha trajetória. Espero que esse texto traga inspiração e motivação para o seu enriquecimento pessoal.

A vida é rica em recomeços. Bora enxergar!


Lilian Regina Mattos da Cruz

Co-Fundadora da Ambidestra, é consultora, podcaster e mentora em inovação e especialista em estratégia de negócios e marketing. Atua em projetos de design estratégico, impulsionando organizações e líderes por meio da inovação.

Traz na bagagem mais de 20 anos como executiva em grandes indústrias de bens de consumo e tecnologia como Reckitt Benckiser, Nivea e Motorola e como empreendedora acelerando startups e suportando transformações em grandes organizações.

Alexandra Jakob Santos

Brand & Business Consultant / C-Level em Marketing / Shopper Marketing / Novos Negócios / Inovação / Desenvolvimento de novos negócios / Especialista em Varejo, Bens de Consumo e Wellness Market

9 m

Você é pura inspiração. Lembro quando identifiquei você nas redes e através conhecidos em comum. Comecei a prestar atenção no seu trabalho e tive certeza de que tinha muito a aprender contigo. Nunca me esqueço que desde o primeiro contato você foi generosa e incentivadora !! Parabéns pelo livro e pelos 5 anos da sua nova carreira !

Lilian, obrigada por nos inspirar! Vc é um exemplo! Parabéns! Já vou comprar o livro 😉

Karen Szuster

Sr Enterprise Sales Executive @ UiPath

9 m

Maravilhosa!

Parabéns Amiga, vc é uma guerreira de muita fibra, competência e resiliência. Muito sucesso pelo seu caminho

Corina Karsch

PLANNING - INNOVATION - CONSUMER & MARKET INSIGHTS + RECENTLY LONGEVITY EXPERT

9 m

Que legal Lilian!! Parabéns! Super inspirador 😍

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