Reconhecimento (Parte 1)
“O reconhecimento é como um falso coelho numa caçada: sempre perseguido pelos cães, jamais preso em suas mandíbulas”. (Zygmunt Bauman, A Arte da Vida, Editora Zahar, pág. 59)
O tema do reconhecimento é um dos que mais tem me fascinado nos meus estudos recentes, ao ponto de colocá-lo como o principal tópico nas minhas investigações filosóficas. Dá para fazer uma série de associações interessantes entre o mundo do trabalho e os desafios corporativos de hoje em dia com a gênese desse conceito na história da filosofia e nos seus desdobramentos contemporâneos na experiência do desrespeito social, na questão da identidade e nos modos possíveis de pensar o outro. Por isso achei relevante compartilhar esse novo artigo em partes.
A consciência, enquanto saber que circula intersubjetivamente, é relacional. Hegel fala de um “nós que é eu e um eu que é nós”, gerando um processo de formação baseado na interdependência entre singular e plural ou, em outras palavras, em um reconhecimento social. A formação do eu do sujeito se realiza através da gradual internalização de um comportamento social e, somente através dessa experiência social de “2 consciências”, conhecida como dialética do senhor e do escravo, que chegamos a um estágio de reconhecimento recíproco. As relações intersubjetivas são, então, relações de dominação e servidão. A consciência em si, fundamentada na imediaticidade e certeza do objeto, fica vulnerável, “treme a morte”, se aceita alienar na medida que deixa de ser em si para ser para si. É o momento em que ela é escrava, apropriada por uma outra consciência de si e, ao mesmo tempo, senhora “para si” que se serve de outra consciência para existir.
Ou seja, ela só será subjetivamente vivenciada para si através de outra consciência, estará sempre pulsando uma indeterminação, em um movimento contínuo de formação em direção ao seu próprio fundamento. No limite, afirmar a formação da existência envolve aceitar a própria morte, pura negatividade, na medida que o ser em si se submete a algo que não se conhece e que está fora de si. É o primado do reconhecimento frente ao conhecimento.
Impossível não mencionar também, já de entrada, Axel Honneth, filósofo alemão contemporâneo e Diretor do Instituto de Pesquisa Social, instituição na qual surgiu a Escola de Frankfurt, que no seu “Luta por Reconhecimento” analisa a dependência individual de experiências de reconhecimento social e os consequentes conflitos morais e sociais que confrontamos nessa busca de filiação às diferentes pessoas ou grupos. “O eu busca o nós da vida comum em grupo, porque, mesmo depois de amadurecido, ele ainda depende de formas de reconhecimento social que possuam o denso caráter da motivação direta e da confirmação”.
Existir, portanto, é reconhecer a mim mesmo a partir do outro, além de pertencer a uma sociedade / empresa onde eu me reconheço como parte de algo através do outro. Eu dependo do outro e o outro depende de mim, essa interdependência do eu e do outro gera as mais variadas tensões de intersubjetividade e reconhecimento.
Trazendo para uma leitura mais “empresarial”, lidamos com um” aqui e agora” que vai se diluindo mediante as estratégias e prioridades do negócio. Um “aqui e agora” que permeia uma série de anseios, desejos e preferências de pessoas que tem sua reputação baseada na percepção do outro, da forma como o outro te enxerga (visão externa).
A relação entre expectativa demais de reconhecimento por um lado e ansiedade por outro, desperta o ciclo negativo que muitas vezes afeta a produtividade e eficiência. As empresas buscam constantemente alternativas para gerar lucro e se reinventar, desafiando o ser humano nas suas próprias angústias de crescimento. Na sociedade líquida e caótica, não há mais limites insuperáveis.
Segundo Lacan, a ansiedade não aparece simplesmente como perda, mas sim como proximidade do objeto de desejo. Ansiedade é prazer demais, precisamente o resultado do “seja você mesmo”. E é desejar excessivamente que traz a falsa noção de realização e uma ânsia furiosa pelo prazer.
Assim, a empresa tem sua própria demanda por reconhecimento que, orgânica ou inorganicamente, cria modelos de relação entre consciências (agentes internos, externos e mercadológicos). Não à toa temas como ESG, diversidade e inclusão, distribuição de lucros, tem impacto direto na reputação da empresa no mercado. Porém, descendo mais para o dia a dia, dentro desse ambiente há uma série de relações intersubjetivas entre pessoas que buscam reconhecimento recíproco para si. São as consciências desejantes de promoção, mérito, bônus, treinamentos, equilíbrio entre vida profissional e pessoal, enfim, algum tipo de reconhecimento. Nesse sentido, a insatisfação e a comparação são os grandes vilões do ambiente corporativo. Esses dois instintos humanos levam o homem a constantemente fantasiar e desejar algo diferente ou mesmo se colocar totalmente para baixo.
Antigamente, em uma sociedade mais hierarquizada e baseada em comando e controle, onde qualquer erro era intolerável, a culpa de não satisfazer ou atender o outro falava mais alto. No entanto, nas novas relações de trabalho, a culpa parece ter dado lugar à ansiedade de aprovação, sendo que um número muito baixo de pessoas tem poder de controlar, de fato, o presente e também ter sua expectativa de reconhecimento correspondida. Fora que somos seres imprevisíveis e, muitas vezes, com interesses egoístas e objetivos paralelos de auto conservação e aumento de poder. Não se sabe o que o outro pensa e a aprovação / reprovação pode acontecer sem sequer você perceber.
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Li recentemente um artigo de Nairah Matsuoka, jornalista e analista da HSM, sobre a questão do reconhecimento no cenário pandêmico e de interações virtuais que estamos vivendo. Sua conclusão: “as pessoas tendem a ter um melhor desempenho quando existe uma cultura de reconhecimento. Em uma época em que os funcionários podem se sentir mais à deriva do que nunca, lembre-os de que você vê suas contribuições e que elas são importantes”. Valorizar o relacionamento, a colaboração, a troca, a conexão humana, portanto, aparecem como fundamentais para o sucesso da jornada.
Encontrei também esse texto interessante da GPTW que, em pesquisa recente, perguntou qual é a coisa mais importante que o seu chefe ou empresa faz e que gera maior impacto em você e na marca empregadora. Vejam só, 37% dos respondentes indicam que reconhecimento é o ponto mais importante para fomentar um bom ambiente de trabalho.
Agora, dentro de um ambiente corporativo e neste nosso cenário de caos e liquidez: como criar a tal cultura de reconhecimento? Para finalizar essa primeira parte sobre o tema de reconhecimento da forma mais prática possível, destaco abaixo algumas formas de mostrar reconhecimento além do ponto de vista financeiro:
E como? Dá para fazer virtual? Penso que sim, é possível fazer cafés e happy hours virtuais, mas nada substitui de fato a relação presencial e o “olho no olho”. Independentemente do modelo, o ponto chave é você ser e estar literalmente presente. Ser específico e relevante quando tiver que ser, não deixar o tempo passar, agir na hora, ter regularidade, ser coerente com os valores e estratégias corporativas e customizar de pessoa para pessoa pois, afinal, cada um tem o seu estilo e preferência.
Você concorda? Acrescentaria mais algum ponto?
Fica, portanto, uma chamada para líderes, empresas e, porque não, governos: já passou da hora de alimentar os cães e dar significado real às vidas! E a tal perseguição tem que ser contínua, espontânea e genuína. Nos “vemos” no próximo texto, com mais ideias sobre esse tema tão interessante e relevante.
1 “O eu no nós: reconhecimento como força motriz de grupos”. Artigo publicado com autorização da editora Suhrkamp, detentora dos direitos autorais. Tradução do alemão: Emil A. Sobottka. Disponível em Sociologias, Porto Alegre, ano 15, no 33, mai./ago. 2013, p. 56-80.