Recordar é viver
Banquetes à base de ratos do campo para passar a perna a amigos, meias roubadas às miúdas com quem trabalhava e fugas à autoridade por malícia nenhuma. Estas eram as peripécias e patifarias que o meu avô me contava em miúdo.
Era homem do campo, espertalhão amador, músico de festarolas e cantor das horas vagas. Mas acima de tudo, era um contador de estórias nato. Gostava de recordar e recontar memórias e façanhas da sua vida, muitas vezes com um pouco de invenção à mistura. Mentiras que vão surgindo a cada nova versão do conto para dar mais tempero à estória e que, por isso mesmo, eram automaticamente perdoadas.
Dos muitos dias que passei com ele, não me lembro de um em que ele não me narrasse uma aventura. Até ao dia em que ele foi diagnosticado com Alzheimer.
Nos anos seguintes vi um homem vibrante e cheio de vida evaporar-se lentamente, deixando para trás uma casca vazia. Um velho que antes recordava comigo os seus tempos de juventude deixou de se lembrar de mim e, com o tempo, até dele próprio. Eventualmente deixou de conseguir formar uma frase com princípio, meio e fim, perdendo-se no nevoeiro de vazios que morava na sua cabeça.
Mas algo nele nunca mudou. Até ao último dia em que o vi com vida, nos dias bons ele assobiava e cantarolava alegremente pedaços das suas músicas preferidas. Nos dias maus, murmurava os fados e as canções mais melancólicas que antes conhecia tão bem.
É algo comum aos pacientes com Alzheimer. Apesar das memórias dos acontecimentos desaparecerem, as emoções ligadas a esses acontecimentos continuam presentes. Um paciente de Alzheimer pode não se lembrar de alguém que o visitou, mas essa visita tem um impacto emocional que perdura. Se a visita for animada, os pacientes tendem a ficar mais bem dispostos durante as seguintes horas, mesmo que não saibam porquê. E o oposto verifica-se também. As lembranças perdem-se, mas os laços não tanto.
A conclusão dos neurologistas é a de que a memória emocional é mais forte e perdura mais que a memória factual. A conclusão mais directa é outra.
Sem as nossas estórias não somos ninguém. Mas sem as nossas emoções, somos ainda menos que isso.
A lógica não interessa muito às pessoas. Já a emoção bate qualquer argumento. E é disso que as marcas não se podem esquecer.
Quando queremos vender um produto a alguém, podemos mostrar-lhe benefícios reais e até óbvios do mesmo a torto e a direito. Argumentar até cair para o lado. Mas nada disso tem valor se não fizermos as pessoas sentir. Estamos construídos biológica e psicologicamente para que assim seja.
Vemos muita comunicação feita de vantagens em bullet points sem que haja uma que acerte no alvo. Vemos spots de TV que falam só para a carteira em vez de falar para o coração, como se o público fosse feito de robôs que pensam com pura lógica matemática. E é verdade que para comunicar com emoção em vez de checklists temos de nos tornar mais vulneráveis. E isso, tanto para as marcas como para as pessoas, é assustador. Mas a vida, quando vale a pena ser vivida, é feita de riscos.
Afinal de contas, não nos podemos esquecer que os anúncios que nos ficaram na memória foram aqueles que nos fizeram sentir algo.
E sim, eu sei que tudo são recordações. Mas como diz o outro…
Mais disto no Pubsicólogo.