Relatos do Caminho de Santiago

Era meu 6o dia de caminhada. De Logroño, comecei minha jornada a Nájera, pela primeira vez caminhando sozinho rumo a Compostela. Caminhar sozinho é muito mais difícil, e chegar a Nájera mostrou-se a etapa fisicamente mais difícil de todo o Caminho. Eu iria pela primeira vez, andar margeando uma autopista, o que não é tão espiritual assim. Guarde esse fato: há seis dias eu andava pelos bosques de Navarra em completa integração com as lendas que por ali circulam, e agora, teria que andar ao lado dessa autopista antes de retomar o antigo traçado do caminho sem caminhões e carros, um breve incômodo.

Chegando a Ventosa depois de 17 Km, meus pés estavam arrebentados. Tinha a sensação que eles estavam tão sensíveis que eu conseguia contar quantas pedrinhas meu tênis estava pisando naquele momento. E no banco daquela vila, sentei e pensei: hoje não chego ao meu destino planejado, hoje não durmo em Nájera.

Foram 30 minutos de auto massagem, creme anti-inflamatório, cânfora, para tentar encarar mais um trecho dos 30 Km daquele dia. Retomar o andar depois de uma parada dessas é dolorido. Logo, comecei a me perguntar: mas afinal…o que vim fazer aqui? Qual é o propósito dessa peregrinação? O que levarei ao final dessa jornada? Qual é o propósito???

Entrei em conversa interna, um monólogo. Eu estava pra perdoar as últimas sagas corporativas e tóxicas que eu havia vivido nos últimos dois anos? Estava lá pra perdoar o Osvaldo e a Michele pelo que eles haviam armado? Estava lá pra pensar o que eu faria da minha vida depois da peregrinação? O que eu faria depois desse interlúdio, um sabático? Era essa a pergunta?

Fez-se o silêncio interno. E logo, começou o diálogo interno, agora entre nós. Meu último relacionamento havia me cobrado uma taxa de energia muito grande. Minhas semanas preenchidas de trabalho e alegria, acompanhado, eram solapadas pelos meus fins de semanas sozinho. Era difícil pra mim viver com esses altos e baixos de euforia e tristeza. E pensei: “Combater a solidão, nos fins de semana, está me consumindo vida…”. Era automático creditar a culpa desse dreno ao mecanismo dessa última relação, era a auto-desculpa para não tratar o assunto. Mas logo, me lembrei que o sentimento de solidão era anterior a isso. Lembrei que no meu primeiro casamento, também me sentia sozinho em momentos de incompreensão, onde eu me recolhia e me isolava no meio de todos.

Mas então, lembrei do sentimento antes do meu primeiro casamento, de quantas vezes havia me sentido sozinho rodeado de pessoas… e aí a ficha caiu: “Caramba, já faz muito tempo que estou convivendo com isso!”. E desisti de tentar encontrar evidências mais antigas desse sentimento, pois vi que já era tempo demais. Aquilo era algo a ser trabalhado, algo a ser entendido, algo a ser solucionado, dissolvido. Se têm algo que gostaria de levar do Caminho, era sair curado desse sentimento de SOLIDÃO, que me espreitava a tanto tempo.

Preciso contar sobre o caminhar. A velocidade normal de caminhada, num bom ritmo, ao passo marcado do cajado, é de 4 km/h. Pra acelerar o passo a um ritmo puxado, se anda a 5 km/h. Isso quer dizer, que se você avista uma pessoa caminhando à sua frente a 1 km (10 quadras), e decidir alcançá-la, você tem que acelerar a 5km/h durante uma hora para fazê-lo. Conheci uma única pessoa em todo o caminho, um escocês, que conseguia manter o ritmo do dia em 6 km/h. Meu espírito corporativo competitivo estava a mil, minhas férias forçadas haviam começado há dez dias, e simplesmente ter como objetivo ultrapassar pessoas, mesmo a uma hora de passo apertado, era um prazeroso objetivo. Obviamente, o contrário também era válido, e ser ultrapassado por alguém me dava a frustração do perdedor, de ser deixado pra trás, de não ter sido bom o suficiente no propósito do andar, do incompetente. Não me julguem os que souberem disso, não me transformei numa pessoa melhor nas corporações, que fique registrado.

Ventosa já estava há alguns Km atrás e eu caminhava no bosque. Eu já estava craque em encontrar boas fotos, e minha mão mecanicamente treinada pra “sacar”a câmera fotográfica e já prepará-la pra foto, dura segundo e pouco. Eu me minha câmera já estávamos orgânicos. Então, vi a auto estrada…

O caminho andava à esquerda daquela autopista, separada por uma mureta e arame. O barulho da rodovia era desagradável. Dava pra sentir o tremor do peso dos caminhões passando, do seu diesel queimando, de seus pneus desgastando. Não tinha nada a ver com os bosques de Navarra. Não titubeei em usar meu ipod pela primeira vez desde o início da jornada, e minha trilha começou: “Shine on you crazy diamond”.. Virei meu rosto pra paisagem oposta à rodovia, e por algum momento, fui feliz.

Foi no meio da música que percebi, absorto em meus perguntares, que eu havia sido alcançado por um peregrino. Como não me dei conta? Droga, relaxei o ritmo, já não estava rendendo, se for assim, não vou chegar a Nájera… não vou chegar a lugar algum nunca. E apertei o passo. Não vou ser ultrapassado, e dá-lhe cajado a marcar passo.

Mas não adiantava acelerar, eu não havia percebido o peregrino chegar, e ele já estava ali. Era questão de um a dois minutos, e ele ia me ultrapassar. É ritualístico o cumprimento no Caminho: você cruza outro peregrino e sempre deseja-lhe: “Buen Camino!”. Eu já estava com o meu pronto no céu da boca. E pensei:”Deve ser alemão. É injusto, eles são mais fortes que nós, e caminham a vida toda, nós latinos não.”.”Bom, pode ser um francês, os franceses são bons de caminhada também”.”Injusto igual!”. Meu prazo havia se esgotado. Eu já sentia o barulho das pedrinhas andando quase no meu ritmo, logo atrás de mim, e já descompassando. Mantive meu orgulho ao continuar olhando pra frente, mas meus olhos já queriam olhar por cima do ombro, pra finalmente consentir: Buen Camino…

E foi aí que aconteceu.

Não sei como explicar exatamente. Eu senti algo que equivalia a. Era como um colocar de mão no meu ombro direito. Era como um pensamento, invadindo a conversa dessa papagaiada de não ser ultrapassado dentro da minha cabeça. Um pensamento alheio, desconectado do monólogo, uma segunda voz, que me disse: “Olhe aquilo…”

Meus olhos foram a um km de distância, na rodovia, pra onde a voz parecia querer apontar, sem parar de caminhar. Três caminhões, duas carretas brancas, uma azul logo atrás. Vinham no meu sentido contrário. Meus olhos fixos no azul… elas levaram alguns segundos pra chegar aonde eu estava. Dispensei o olhar da primeira carreta. Dispensei a segunda. Meus olhos estavam grudados a aquela carreta azul. Ela estava chegando e eu estava no meio das minhas passadas. Meus olhos a acompanharam. Meu pescoço foi acompanhando sua passagem pela minha frente. Minha boca soltou um suspiro. A carreta carregava, impressa em sua lateral e em letras garrafais, enormes, o meu sobrenome. IORIO.

Aquilo era tão inesperadamente surreal que minha mão foi automática para a câmera. E quando ela já a sacava do estojo, a minha segunda voz me disse: “você sabe que não vai dar tempo de armar e fotografar”. E a mão guardou a câmera, e o caminhão se foi.

Agora eu estava ali, parado, embasbacado, e olhando pra trás, porque o caminhão me virou… e o peregrino… não havia mais ninguém ali. Só o caminho, e eu.

Foi um segundo eterno de confusão mental enquanto eu retomava o passo, desconcertado, tentando me concatenar ao cajado. Foi como um tapa na cara. “Mas o que foi isso???”. E a segunda voz, falou, em um tom tão acolhedor.. “Você nunca esteve sozinho. E esta imagem é um presente pra você lembrar, pelo resto da sua vida, que você nunca estará sozinho.”.

Segui meu passo, meus olhos se encheram de lágrimas. Sorri. E balbuciei em voz audível: “Entendi….”. “Obrigado”. Eu estava embriagado de felicidade, com todos os pêlos em pé, inundado por uma torrente no meu sangue indicando que estava na presença de algo sublime. Eu estava internamente sublimando.

E foi ali, no sexto dia a Nájera, que eu soube que ela, a solidão, não iria mais me drenar, nem me tirar do caminho.. e nessa vida, dela eu estava curado.


Jocely Freitas

Coordenadora de RH | Tech Recruiter |Supervisora Administrativa | Analista de Gente e Gestão | Business Partner | Analista de Rh. IG @agendaderh

6 a

Parabéns pelo belo texto e pela caminhada , conheço apenas uma pessoa que realizou e já ouvi os relatos um encontro mágico consigo . Não importa o tempo que gaste, o importante é não parar e seguir em frente.

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