A revogação da Medida Provisória do Contrato Verde e Amarelo e a impossibilidade de sua reedição imediata.
No último dia 20, foi publicada ֻa Medida Provisória nº 955 (MP 955), com o único objetivo de revogar a Medida Provisória nº 905, de 11 de novembro de 2019, que ficou conhecida como a MP do Contrato Verde e Amarelo (MP 905).
A MP 905 criava um tipo específico de contrato de trabalho a prazo determinado, destinado ao preenchimento de novos postos de trabalho por jovens de até 29 anos, sem registro anterior de vínculo de emprego em carteira e com remuneração de até um salário mínimo e meio. O contrato verde e amarelo estabelecia, ainda, a isenção aos empregadores de qualquer contribuição previdenciária e a redução dos depósitos do FGTS a um quarto do seu valor.
A MP 905 era, todavia, muito mais do que o contrato de trabalho verde e amarelo. Ela estabelecia um novo regime de fiscalização trabalhista, privilegiando a função orientadora em detrimento da punitiva, autorizava o trabalho aos domingos, permitia o armazenamento de documentos em meio eletrônico, afastava a natureza salarial da alimentação concedida por qualquer meio, estabelecia regras para pagamento de participação nos lucros e prêmios, descaracterizava como de trabalho o acidente no percurso residência-trabalho, entre outras disposições que a levaram a ser chamada de “mini reforma trabalhista”.
Sendo assim, consumada no centésimo vigésimo (e último) dia de vigência da MP 905, a revogação pela MP 955 pôs fim a uma norma que tinha “objetivo (de) estabelecer mecanismos que aumentem a empregabilidade, melhorem a inserção no mercado de trabalho”, visando, ainda, “gerar maior segurança jurídica em termos de verbas de participação nos lucros, de gorjetas e no índice de correção de débitos trabalhistas, simplificar e desburocratizar normas e racionalizar procedimentos que envolvam a fiscalização e as relações de trabalho... assim, criar oportunidades de trabalho e negócios, gerar renda, e promover a melhoria da qualidade de vida da população[1]”.
Nesse momento de calamidade pública, que ocasiona o colapso econômico ao país e um vertiginoso aumento no desemprego, as medidas previstas poderiam, de fato, facilitar a inserção no mercado de trabalho de jovens desprovidos de experiência profissional.
Todavia, o maior dano que a revogação pela MP 955 causa não se relaciona com a frustração dos objetivos da MP 905, mas com o modo de sua realização e com as suas (declaradas) intenções. Primeiramente, a revogação de uma medida provisória por outra norma do mesmo tipo é contrária ao entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que a considera desrespeito às prerrogativas do Legislativo[2].
Além disso, segundo foi noticiado[3], “a revogação da Medida Provisória 905/2019 pela Presidência da República é resultado de entendimento entre o governo e o Senado”, tendo sido afirmado pelo Presidente do Senado, Senador Davi Alcolumbre, que o Presidente Jair Bolsonaro reeditaria a MP 905 “na sequência”, quanto às “suas partes mais relevantes”.
Assim, realizada no último dia para a sua conversão em lei definitiva, a revogação teria o intuito de evitar a caducidade da MP 905 pelo exaurimento do prazo de cento e vinte dias, permitindo, com isso, a sua reedição imediata.
Entretanto, causa consternação que os Chefes do Poder Executivo e do Poder Legislativo desconheçam o teor do artigo 62, parágrafo 10, da Constituição Federal[4], bem como a interpretação dada ao dispositivo pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Depois da farra antirrepublicana da década de 1990, quando uma mesma medida provisória chegou a ser reeditada 75 (setenta e cinco) vezes pelo mandatário da ocasião, a sociedade brasileira conquistou um relevante avanço civilizatório por meio da Emenda Constitucional nº 32 (EC 32), que impôs regras mais rígidas para a edição dessa norma pelo Presidente da República.
A EC 32 vedou a edição de medidas provisórias tratando sobre nacionalidade, cidadania, direitos e partidos políticos, direito eleitoral, penal, processual penal, processual civil, entre outras matérias, sendo uma pena que não tenha incluído o direito do trabalho entre as restrições.
Além disso, a EC 32 proíbe a edição de medidas provisórias que visem regular matéria já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional. E veda expressamente a reedição de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso do prazo, no mesmo ano legislativo em que isso ocorrer.
Desse modo, sendo a medida provisória uma norma que vige sob condição resolutiva, a depender da concordância definitiva do Congresso Nacional, se ela perde sua eficácia pelo decurso do prazo ou pela não conversão em lei definitiva, significa que o Poder Legislativo não referendou a iniciativa legislativa do chefe do Poder Executivo, não sendo admissível qualquer manobra para a sua reedição.
Em tempos que é preciso reafirmar o óbvio, a pretensão presidencial de reeditar a MP 905 é totalmente rechaçada pela jurisprudência do STF, conforme se verifica em decisões proferidas posteriormente à EC 32[5], em especial a tese fixada, por meio de controle concentrado de constitucionalidade, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.709[6].
Portanto, mesmo que a revogação da MP 905 possa trazer prejuízos à empregabilidade, causar insegurança jurídica e impedir a desburocratização das regras trabalhistas, frustrando os objetivos anunciados em sua Exposição de Motivos, o artifício anunciado ofende o artigo 62, parágrafo 10, da Carta Maior, segundo entendimento consolidado do STF.
Nesse cenário, cumpre ao Chefe do Poder Executivo encaminhar projeto de lei ao Congresso Nacional, com solicitação de urgência para a sua apreciação, conforme autoriza o artigo 64, parágrafo 1º, da Carta Maior, para que as medidas previstas na MP 905 sejam restabelecidas no ordenamento jurídico brasileiro por intermédio do processo legislativo cabível, em respeito às regras constitucionais e às atribuições do Poder Legislativo.
Notas:
[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP%20905-19.pdf
[2] “(...) Porque possui força de lei e eficácia imediata a partir de sua publicação, a Medida Provisória não pode ser ‘retirada’ pelo Presidente da República à apreciação do Congresso Nacional.” (STF - ADI 2984 MC / DF – Tribunal Pleno, julgado em 4/9/2003, DJ 14/5/2004, Relatora Min. Ellen Gracie)
[3] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/04/20/a-pedido-do-senado-governo-revoga-mp-do-contrato-verde-e-amarelo?utm_source=hpsenado&utm_medium=carousel_0&utm_campaign=carousel
[4] Art. 62. (...) § 10. É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo.
[5] “(...) Impossibilidade de reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória revogada. Tese contrária importaria violação do princípio da Separação de Poderes, na medida em que o Presidente da República passaria, com tais expedientes revocatório-reedicionais de medidas provisórias, a organizar e operacionalizar a pauta dos trabalhos legislativos. (...) De outra parte, o ato de revogação pura e simples de uma medida provisória outra coisa não é senão uma auto-rejeição; ou seja, o autor da medida a se antecipar a qualquer deliberação legislativa para proclamar, ele mesmo (Poder Executivo), que sua obra normativa já não tem serventia. Logo, reeditá-la significaria artificializar os requisitos constitucionais de urgência e relevância, já categoricamente desmentidos pela revogação em si.” (STF – ADI 3964 DF – Tribunal Pleno; julgado em 12/12/2007, DJE 11/4/2008, Relator Min. Teori Zavascki)
[6] ADI 5.709. É inconstitucional medida provisória ou lei decorrente de conversão de medida provisória cujo conteúdo normativo caracterize a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória anterior rejeitada, de eficácia exaurida por decurso do prazo ou que ainda não tenha sido apreciada pelo Congresso Nacional dentro do prazo estabelecido pela Constituição Federal.