Riscos e Roscas: o case Ricardo Eletro
Por André Cabral* & Gustavo Rabay**
O mundo empresarial vive sob o manto do risco. A ideia é simples. A propriedade privada pode ser alocada em negócios lícitos para buscar resultados que possam ser partilhados. O resultado ideal é o lucro. Como é bom dividi-lo, são os doces dividendos. Mas, o primo feio também existe: o prejuízo. Esse é amargo, mas também deve ser honrado por quem se arrisca no mundo business. Essa é a lei básica da selva corporativa. Sempre com a premissa de que a atividade foi exercida licitamente.
Por isso, no bem básico, o lícito depende de pagar a todos os credores. Aqui, começa a rosca... Quando a grana encurta, a quem deixo de pagar? Não raramente a opção recai sob o fisco, pois é um credor silencioso (faz pouco barulho sob o sigilo fiscal) e lento, já que, via de regra, demora a agir na cobrança de seus créditos.
Quando vemos esses grandes grupos varejistas, como a Ricardo Eletro, o que pensamos? - Fundada em 1989 pelo empresário Ricardo Nunes, a rede regional (mineira) era bem forte. Grande empresário, águia. Visão além do alcance... Mago... Coisa e tal... Em 2010 se juntou (fusão) com a Insinuante (outra rede regional baiana) e formaram a Máquina de Vendas, com faturamento de R$ 4 bilhões. Que show! Mais de 1000 pontos de venda no país na década passada.
Só que a rosca aperta... A fusão não atinge as metas... Em 2018, veio a Recuperação Judicial. Fim? Nada! Vem um grande grupo, o Starboard, que aporta R$ 250 milhões e adquire participação majoritária do negócio "quebrado". Começa um enxugamento da empresa para pagar uma dívida bilionária.
Eis que a rosca aperta ainda mais, a ponto de quebrar! Em plena pandemia de 2020, estoura a operação de uma força tarefa do MPMG e o Estado de Minas, que busca responsabilizar o empresário Ricardo Nunes por quase R$ 400mi por sonegação fiscal no Estado de Minas Gerais. Ricardo Nunes foi preso, bem como sua filha, Laura Nunes. Um diretor da empresa também teve prisão decretada.
Não estamos aqui para julgar o caso. Seria leviano e precipitado. Mas, podemos fazer uma reflexão: como toda essa confusão pode ter acontecido sem ser detectada em diversos momentos-chave da trajetória do grupo Ricardo Eletro?
Operações de M&A (fusões e aquisições) exigem uma forte investigação do estado da empresa, a famigerada due diligence. Como uma empresa, em menos de uma década, passa por dois M&A e uma Recuperação Judicial sem que se observe um grotesco passivo tributário? O apetite de riscos dos envolvidos na estruturação dos negócios falou mais alto ou a assessoria jurídica simplesmente comeu mosca?
A questão está na seriedade que deve ser dada ao compliance. Riscos existem e sempre existirão, mas a rosca aperta mais ou menos de acordo com a ferramenta certa. O empresário precisa entender que programas de integridade e a busca incessante pela conformidade são ferramentas imprescindíveis para que o motor de cada operação continue a girar, antes que o combu$tível acabe!
Ao contrário, muitos pensam que o freio de arrumação do compliance é capricho de profissionais altamente instruídos que têm o fetiche de que “tentar colocar água no chope” das empresas. Não raro, alguém da alta administração ou membro do board entorta a boca e já dispara: o compliance veio para “travar a operação...” Essa é uma leitura que pode custar a continuidade dos negócios.
Com ou sem crise, ferramentas de GRC (governança, riscos e conformidade) ou simplesmente compliance, como muitos preferem, podem ser entendidos como parte fundamental das engrenagens de uma organização. Se fosse um carro, seria o conjunto segurança ativa, como freios eficientes com antitravamento, rodas e pneus adequados, controles de estabilidade e tração, faróis dinâmicos e velocidade de cruzeiro adaptativa. Mas, também, corresponderia ao conjunto de segurança passiva, que inclui cintos de segurança com pré-tensionamento, bolsas infláveis (airbags) barras de proteção nas portas e materiais de cabine com alto grau de absorção de energia.
Esses itens, somados a uma manutenção periódica cuidadosa permitem ao condutor e demais ocupantes do veículo a experiência de sentar confortavelmente a bordo, sabendo que poderão acelerar com segurança e tentar chegar mais longe. E se houver algum problema por trás do volante (gestores e colaboradores) ou mesmo no entorno (fornecedores, clientes e stakeholders), terão condições de evitar danos e arranhões que costumeiramente ocorrem aos incautos.
Pois bem, num caso como esse da Ricardo Eletro, é bem possível que o carro tenha passado por um longo período sem a manutenção e a troca de componentes fundamentais para seu funcionamento. E seus fundadores, seus posteriores parceiros de M&A, dirigentes e acionistas do grupo sucessor e, ainda, assessorias jurídica, contábil e de governança, ao que parece, não estavam atentos à necessidade de uma revisão estrutural da máquina. Ou fizeram ouvido de mercador. Possível, ainda, que profissionais da oficina possam ser implicados também.
Em todo caso, não há como ignorar que em operações societárias como essas, o due diligence seja obrigatório e os alertas (red flags) tenham sido inexoravelmente apontados quanto a aspectos básicos do plano de ação - dívidas fiscais e trabalhistas, por exemplo -, o que leva a crer que estamos mesmo diante de um caso de pura negligência no que toca à gestão de riscos e a governança corporativa, com típico desdém ao dever de conformidade.
E mais uma vez, consuma-se a máxima: “se você considera caro investir em compliance, experimente não investir...”
*André Cabral é advogado, professor e empreendedor. Sócio da Cabral, Rangel & Ribeiro Coutinho Advogados, co-fundador da Legal Mind, Time Thinkers e Everdata. Doutor em Direito pela UFPB, é professor da mesma Instituição.
**Gustavo Rabay é advogado, professor e empreendedor. Sócio da Rabay, Palitot & Cunha Lima Advogados, co-fundador da Legal Mind, Time Thinkers e Compliance Academy. Doutor em Direito, Estado e Constituição pela UnB e Professor da UFPB.
Jornalista, observadora em tempo real. Mestrado em Jornalismo (UFPB), MBA em Gestão Empresarial (FGV). Jornalista da Ebserh, diretora regional da ABCPública - Paraíba.
4 aArtigo perfeito! Mas (choro de quem não entende patavina sobre automóvel) vou ter de reler algumas vezes, para ver se "Tico & Teco" conseguem traduzir na minha mente a comparação com o funcionamento de um carro...