Rouge Brésil de Jean-Christophe Rufin: uma interpretação brasileira
Qual seria a sensação ao ler um livro francês (em língua francesa) sobre a tentativa de colonização dos franceses na Baía de Guanabara, à época, a França Antártica, em 1555. Primeiro, um misto de curiosidade e contentamento, por se tratar de parte importante na construção da memória brasileira, sempre relegada frente à europeia. Posteriormente, a leitura trouxe-me um conjunto de interpretações e análises. Acrescenta-se que este leitor brasileiro já havia lido a obra l'Empire et les nouveaux barbares do mesmo autor, que tratava de um ensaio muito bem escrito sobre a perpetuação da diferença entre civilizado e bárbaro, que permanece arraigado no preconceito das sociedades, como observado nas diferenças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento (subdesenvolvidos, para ser mais exato). Ou mesmo em um contexto de autorização para imigração em território francês ou suíço romande, em ressortissant européen versus ressortissant non-européen. Aos primeiros, regras mais acessíveis e ausência de tributos, aos segundos, mais taxas e controles.
A obra trata da tentativa francesa de conquistar territórios além-mar, cuja esquadra era conduzida por Nicolas Durand, sieur de Villegagnon, de iniciativa do rei francês Henri II, que se casou com a famosa Catherine de Médicis. O interessante foi que tal livro caiu em minhas mãos logo após a leitura da obra de Alexandre Dumas em francês, Reine Margot. La reine mère e seus três filhos coroados, os últimos da Dinastia Valois, usam todos os subterfúgios para acabar com os protestantes franceses (huguenots), bem como com o marido de sua filha, Marguerite (Margot), o futuro rei Henri IV, da dinastia Bourbon. O livro começa com o casamento forçado entre Margot (Valois e católica, filha de Henri II e da Catherine de Médicis) com o Henri, rei de Navarra (un pequeno reino vassalo da França). O matrimônio foi a tentativa de apaziguar as constantes guerras fratricidas entre católicos e protestantes huguenots. Ainda nas festas do casamento, após a tentativa fracassada de assassinar um dos lideres protestantes (almirante Coligny, autoridade francesa responsável pela viagem de Villegagnon ao Brasil), a mando da rainha Catherine, esta convence seu filho coroado (Charles IX) a exterminar todos os líderes religiosos protestantes que estavam em Paris por ocasião do casamento real. A ordem é entendida para se exterminar todos os protestantes da cidade, ocasionando um massacre de cerca de 10 mil protestantes (Le massacre de la Saint-Barthélemy le 24 août 1572). Além disso Catherine, por pertencer à conturbada família de Médicis, foi educada na Toscana, em uma época de disputas de poder entre cidades italianas e famílias políticas. Experiente no contexto político da intriga, utiliza com maestria diferentes tentativas de envenenamento do marido de sua filha, a fim de evitar que outra dinastia substitua a Valois. Alexandre Dumas escreveu com maestri essa obra no início do século XIX, quando os arquivos reais foram disponibilizados para o público. Dessa forma, o autor francês pode conhecer os meandros e disputas políticas da conturbada realeza francesa, em meio a constantes guerras religiosas, acrescidas de tentativas de conquistas militares nas Províncias Unias da Holanda, à época se tornava um forte centro financeiro mundial, bem como com o império dos Habsburgos na Espanha e centro da Europa (rei Carlos V e, posteriormente, rei Felipe II). Dessa forma, o livro permitia um contexto europeu detalhado das guerras religiosas, as reformas e as contra-reformas.
O período do livro Rouge Brasil ocorre ainda durante o reinado do Henri II, que veio a falecer por acidente em um disputa de Justa. A França e a Inglaterra (sob o reinado da Rainha Elisabeth I) estavam atrasadas frente às grandes navegações, tendo Portugal e Espanha já iniciado no final do século XV com Colombo nas Américas em 1492, Vasco da Gama na Índias em 1948 e Cabral no Brasil em 1500. A ocupação dos vastos territórios americanos, uma empresa extremamente cara e perigosa, ocorria a passos lentos, com pequenos povos nas franjas do continente. Os território além-mar foram divididos conforme a Bula Inter Coetera de 1493, assinada pelo Papa Alexandre VI (da família dos Borgia, famoso por ter três filhos com a famosa prostituta romana Vannozza dei Cattanei, dentre eles, Lucrezia Borgia, por casar-se e descasar-se três vezes, conforme as relações políticas do seu papai, o papa Alexandre VI, e Cesare Borgia, do qual Maquiavel escreveu um livro sobre suas cruéis conquistas nos territórios papeis rebelados da região de Emilia-Romagna - Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio) e do Tratado de Tordesilhas de 1494. Henri II da França, ao ter ciência desses tratados, pergunta aonde estaria a menção na bíblia de que Adão e Eva distribuíam terras para os reinos europeus. A ironia do rei significava que qualquer território somente teria algum reconhecimento caso houvesse colonização efetiva e força militar a mantê-la sobre seu domínio.
Dessa forma, a viagem comandada por Villegagnon desembarcou em uma ilha na entrada da Baía de Guanabara. Villegagnon conduziu um conjunto de homens franceses católicos (com alguns huguenots), bem como munido de crianças, por acreditar que, por haver menor idade, teria maior capacidade de absorver as línguas indígenas da região. Nos primeiros anos, Villegagnon decide derrubar todas as árvores da ilha e construir um forte. Sua situação é frágil pois a ilha não tinha água nem condições para plantio. Para tanto, depende de alguns europeus que viviam entre os índios para fornecer alimentos. Ao entrar em contato com uns franceses que viviam nas margens e solicitar índios para o trabalho escravo da fundação do forte, fica indignado com a ciência de que os índios não iriam trabalhar, pois estes possuem uma cultura diferente da europeia. Mesmo invadindo um território indígena, dependendo da farinha dos índios, sem água na ilha, o europeu recém-chegado fica indignado com a recusa dos índios em realizar trabalhos forçados voluntariamente. Por não se constituírem como as sociedades europeias, os indígenas são automaticamente conceituados como incultos ou bárbaros, sendo categorizados como um agrupamento humano de segunda classe. A obra de Rufin é interessante ao criar personagens fictícios (um casal de crianças francesas) que se imiscuem nas tribos indígenas e conseguem falar a língua deles. É uma tentativa de demonstrar que os índios possuíam cultura, organização social e política, bem como uma língua própria. Contudo, é marcante a questão do canibalismo frente aos europeus cristãos. A ausência da religião católica é colocada como um fator de barbárie, o que atesta a interpretação europeia de que o cristianismo seria uma religião superior às demais.
Dessa forma, os índios são qualificados de duas formas: (i) inocentes, quase infantilizados, incapazes de assimilar a cultura europeia e, portanto, destinados à escravidão ou às tentativas esparsas de catequese; e (ii) aterrorizantes, devido algumas tribos manterem práticas antropofágicas, além da existência de constantes guerras entre as tribos à época.
Os relatos dos sobreviventes da empreitada do Villegagnon sobre a existência de seres humanos alheios à bíblia e a qualquer influência europeia são fundamentais a compor a ideia do “bom selvagem”, descrita por Michel de Montaigne, e posteriormente na ideia de que “o homem nasce bom e a sociedade que o corrompe”, de Jean-Jacques Rousseau (que nasceu em Genebra em 1712).
Quanto ao canibalismo, os relatos de Hans Staden, sobre os rituais antropofágicos durante o período que foi prisioneiro dos índios tupinambás entre 1548 e 1549, internacionalizaram a ideia de terror para com os índios. Por sua vez, acrescentaram a ideia de barbárie e incapazes de terem suas culturas respeitadas e, portanto, legitimavam a ideia de dizimação dos seus povos em períodos posteriores.
A obra de Rufin é interessante ao tentar conjugar essas duas imagens europeias dos índios, de inocência e temor, cuja ideia é ainda associada no presente em filmes comerciais (Indiana Jones), em em livros, como As Aventuras de Robison Crusoé e Tarzan.
A antropofagia também foi o tema essencial na primeira fase do movimento artístico do modernismo, que surgiu em fevereiro de 1922. O movimento inaugurou a independência do pensamento literário e artístico do Brasil. A partir dessa data, Oswald de Andrade lançava o Manifesto da Poesia Pau-Brasil em 1924 e, posteriormente, o Manifesto Antropófago (ou Antropofágico) de 1928. O processo antropofágico, inspirado em nossos antepassados indígenas, consistia em devorar as escolas artísticas europeias para, em seguida, regurgitar uma arte autônoma, significativa e nacional. Nas artes plásticas, o Abaporu (Aba, homem; Pora, gente; e ú, comer) de 1928 da Tarsila do Amaral sintetizou o conceito artístico desse primeiro movimento modernista.
O título da obra, Rouge Brésil, refere-se essencialmente ao único produto comercial identificado pelos portugueses no início da colonização: o pau-brasil (em francês, pernambouc, bois de Pernambouc, bois-brésil). A coloração vermelha (rouge) da árvore nativa era extremamente valorizada nos mercados europeus e, portanto, foi a causa da sua quase extinção.
“A origem do nome Pernambuco esteve sempre ligada ao tupi. A soma dos termos paranã e buka, que significaria “buraco no mar” ou “mar furado”, é a versão mais aceita por pesquisadores, mas que agora passa a ser contestada na pesquisa do professor Jaques Ribemboim, do Departamento Economia UFRPE. Em seu mais novo livro, “Pernambuco de Fernão", o pesquisador afirma que a etimologia da palavra Pernambuco estaria ligada ao português, e não ao tupi. No texto, o autor aborda a história do estado na primeira metade do século XVI, entre 1500 e 1550. Segundo Ribemboim, Fernão de Noronha “alugou” o Brasil diretamente ao rei de Portugal, Dom Manuel I, para a exploração do pau-brasil. A madeira era e extraída e exportada para toda a Europa, utilizando a mão-de-obra indígena na extração e transporte do produto até os navios que partiam para Portugal. Segundo o pesquisador, os navios embarcavam a partir de onde hoje se localiza o Canal de Santa Cruz, que divide os municípios de Igarassu e Itamaracá, na costa pernambucana. E é aí que se encontraria nova interpretação. Na época, o canal chamava-se Boca de Fernão. Na língua dos índios, diz o autor, o fonema “f” era trocado por “p”. Daí que Fernão, na língua oral indígena, era pronunciado como “Pernão”. Além disso, no tupi há uma inversão de palavras, em que o possuidor antecede a coisa possuída, como no inglês, por exemplo. Nesse sentido, a Boca de Fernão seria chamada de algo próximo a “Pernão Boca”, ou “Pernambuka”, que, na visão de Ribemboim, teria dado origem ao nome Pernambuco. Diz o autor, que os franceses, numerosos na época (até mais que os portugueses), anotaram por séculos em seus mapas e documentos a grafia Fernambouc e o pau-brasil restaria conhecido por toda a Europa como "bois de fernambouc", isto é, "madeira de pernambuco”." Vide UNIVERSIDADE FEDRAL RURAL DE PERNAMBUCO - UFRPE. Etimologia de "Pernambuco" teria origem no português, e não no tupi, diz pesquisador da UFRPE em livro. 15 de abril de 2016.
Villegagnon havia, dentre os seus soldados, uma guarda de escoceses. Tais soldados provenientes da Escócia, demonstrava a ligação entre aquela região e a França, por causa da Mary Stuart, que havia se casado com François II, rei da França em 1559. Mary Stuart tinha por parte de mãe a linhagem na família de Guise, da aristocracia francesa. Mary, ainda criança, havia sido transportada por um navio conduzido pelo Villegagnon da Escócia para a França em 1548. Contudo, François II, recém-casado, falece no ano seguinte, em 1560. Mary, então retorna à Escócia, casa-se novamente e, posteriormente, é forçada a renunciar o trono dos escoceses em favor do seu filho. Os ingleses (já anglicanos desde Henrique VIII, que criou uma nova religião para se separar e casar novamente com o objetivo de ter um filho homem) não reconheciam essa linguagem, mas sim a da rainha Elisabeth I (filha do rei Henrique VIII com Ana Bolena, a segunda esposa das seis que viria a se casar). Mary tenta recuperar o trono pedindo ajuda à Elizabeth I que lhe aprisiona por 19 anos em uma torre. Em 1586, é acusada de conspiração contra a rainha inglesa, sendo posteriormente condenada à morte.
Por fim, a questão mais intrigante na obra foi a transferência das guerras religiosas no continente europeu para a pequena ilha na Baía de Guanabara. Villegagnon havia estudado com Jean Calvin em Montaigu, Paris, e, já em sua ilha no Brasil, envia uma carta ao próprio Calvin, para enviar colonos a povoar esse território. O livro do Rufin, inclusive cita que a ilha é batizada de Genèbre, uma interpretação francesa a partir do som português de Janeiro, do termo Rio de Janeiro, como era conhecido pelos portugueses. Antes mesmo, o primeiro português que havia encontrado o local, pensando que fosse um grande rio a Baía de Guanabara, no mês de janeiro, resolveu nomear de Rio de Janeiro. Ou seja, o território era fruto de dois erros: de geografia e de tradução.
Os calvinistas chegaram na ilha em 1557, com vários pastores no grupo. Logo, as divergências entre católicos e protestantes tomaram fôlego. Uma das grandes disputas foi a questão se a hóstia e o vinho para a comunhão significavam verdadeiramente o corpo e o sangue de Cristo (transubstanciação), posição defendida pelos católicos, mas negada pelos calvinistas. Os franceses e genevois se encontravam em uma terra sem água, com farinha fornecida pelos índios das tribos próximas, à mercê de ajuda de esparsos traficantes de madeira pau-brasil, e mesmo assim discutiam questões religiosas em meio ao vasto território politeísta. As disputas levam o próprio Villegagnon a expulsar os calvinistas que, até surgir um barco de traficantes de madeira na baía, refugiaram-se na costa carioca. Os registros do calvinista Jean de Léry, do seu retorno em 1558, demonstravam o pavor quanto ao canibalismo dos indígenas no Brasil. A ironia demonstrada no livro de Rufin foi a descrição da viagem de retorno destes ao território europeu. Devido a falta de víveres no navio, os tripulantes se viram vítima da fome e apelaram ao canibalismo para sobreviver durante a viagem de retorno.
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Em meio a diversas questões sobre sobrevivência na costa brasileira, os europeus ainda mantinham disputas sem sentido sobre religião à época, o que demonstra a forte influência das questões religiosas na vida da sociedade. Essa influência aparece para nós, no século XXI, como intrigante, uma vez que vige o Estado de Direito laico (ou como dizem os comumente os brasileiros, “um Estado laico, graças a Deus”). Para os índios também, algo semelhante deve ter sido percebido: o mais importante seria garantir a sobrevivência e, sobretudo, conhecer a natureza, seus cultivos e os modos como os nativos conseguiam viver no local.
A coincidência da leitura dessa obra é ainda mais instigante por ter sido lida enquanto minha estadia em Genebra. Ao conhecer os reformadores calvinistas, a influência dos iluministas que aqui estiveram, Rousseau e Voltaire, bem como as influências mais recentes como centro produtor de relógios, das finanças e da sede europeia das Nações Unidas e de tantas outras instituições internacionais, deparo-me com a influência que o Brasil teve na vida dos cidadãos da cidade de Genebra. O mito do indígena canibal, bárbaro e inocente, consiste em um paradoxo de menor expressão ao ser confrontando com os absurdos da questão religiosa europeia. A cisma entre reformas e contra-reforma causou guerras, massacres, inquisições e tragédias, simplesmente pela disputa de qual facção estaria certa em interpretar os textos bíblicos que, ao final, deveriam simbolizar humildade, amor e compaixão.
Uma certa ironia do destino também se observa nas artes, a reunir novamente Rio de Janeiro e Genebra. Paul Landovski foi o escultor do Cristo Redentor, construído em 1931, e do Mur des Réformateurs no Parc des Bastion, construído em 1917.
A ilha então conhecida como Forte Coligny ou França Antártica, foi dominada pelos português durante a retomada pelo Governador da Bahia, Mem de Sá, em 1560. Com o ataque dos portugueses, muitos franceses se refugiaram no interior do Rio de Janeiro, participando em tribos indígenas (tamoios) de futuros confrontos com os portugueses e outras tribos da região (tupiniquins), durante o processo de fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em 1565. Esse processo de criação do Rio de Janeiro ocorreu durante a Guerra (ou Confederação) dos Tamoios, em que os interesses dos europeus (portugueses contra os franceses) se imiscuíam entre as facções indígenas, que possuíam um maior número de homens, armas e conheciam a região.
Hoje a ilha Villegagnon é o local da Escola Naval, ao lado do Aeroporto Santos Dumont, na cidade do Rio de Janeiro.