São os dominios que passam para a História
Neste domingo que passou, depois de ver a corrida australiana, vi as redes sociais e muitos se queixavam de ter visto mais do mesmo, com a Mercedes a dominar a corrida, resultando numa dobradinha com Nico Rosberg à cabeça, seguido por Lewis Hamilton. Muitos vinham com a ladainha do costume, dizendo que com eles à cabeça, a Formula 1 tinha morrido, tinha-se tornado aborrecida e que antigamente era bom, etc. Nada que não saibamos, para ser honesto.
Contudo, eu, que posso afirmar-me como sabedor da história do automobilismo, sei perfeitamente que aquilo que estavam a ver e do qual afirmam ser "uma chatice", é mais habitual do que pensam. Aliás, é o cenário dominante. Se formos ver as coisas desde os anos 30, o único período em que a incerteza foi rei aconteceu nos anos 70, e essa acontecia porque havia algo que dominava: o motor, Cosworth V8. De uma certa maneira, temos na nossa mente uma ilusão de um período que ficou para a história de forma mais empolada do que se esperava.
Vamos recuar mais de 80 anos no tempo até hoje (ou seja, antes mesmo da Formula 1 começar) e contabilizar os domínios. O resultado é este:
1934-39: Flechas de Prata (Mercedes e Auto Union)
1940-45: II Guerra Mundial
1949-51: Alfa Romeo
1952-53: Ferrari
1954-55: Mercedes
1959-60: Cooper
1961: Ferrari
1963: Lotus
1965: Lotus
1969: Matra-Tyrrell
1971: Tyrrell
1975-77: Ferrari
1978: Lotus
1984: McLaren
1986-87: Williams
1988-90: McLaren
1992-93: Williams
1996-97: Williams
2000-04: Ferrari
2009: Brawn GP
2010-13: Red Bull
2014-presente: Mercedes
Com mais ou menos percentagem de vitórias, poderemos dizer que desde 1950, as temporadas onde uma equipa dominou sobre as outras contabilizam pouco mais de metade: 38. E em certos casos, o dominio foi ainda maior do que vivemos atualmente. Por exemplo, entre o GP da Grã-Bretanha de 1950 e a mesma corrida de 1951, a Alfa Romeo, venceu todas as corridas, ou seja, nove.
O mais interessante foi que muitos desses domínios aconteceram após a mudança de regulamentos na Formula 1. O mais interessante foi o de 1961, quando a Ferrari construiu um carro para o novo regulamento de motores com 1.5 litros aspirados, que lhe deu cinco das oito vitórias nessa temporada, duas para Phil Hill, outras tantas para Wolfgang von Trips e uma para Giancarlo Baghetti.
E os três mais recentes domínios também aconteceram graças a mudanças nos regulamentos. A da Red Bull surgiu após Adrian Newey ter aproveitado os regulamentos que surgiram em 2009 (a Brawn GP aproveitou o facto da a FIA ter sancionado o chassis de Ross Brawn, apesar do seu difusor não estar totalmente de acordo...), e a da Mercedes também foi depois de nova mudança nos regulamentos, no final de 2013, com a introdução do motor V6 turbo de 1.6 litros.
Em muitos aspectos, a ideia de mudar de regulamento para acabar com o domínio de uma equipa por vezes é um tiro que sai pela culatra...
Hoje em dia, não há mais aquilo que acontecia num passado não muito distante, que era quando determinada equipa se adiantava num determinado ano, a concorrência recuperava no ano seguinte, fazendo melhores produtos. O exemplo mais conhecido foi quando Colin Chapman aperfeiçoou o efeito-solo, em 1978, e no ano seguinte ficou sem vitórias porque a concorrência fez melhores chassis do que ele, como Ligier, Ferrari e Williams. Hoje em dia restrições orçamentais, de testes, e de material (lembrem-se, os motores e as caixas de velocidades estão contadas, e sempre que mudam, eles são penalizados) fazem com que o melhor no primeiro ano do novo regulamento fique lá até que o mudem, porque não há muito por onde recuperar o tempo perdido.
Mas o mais interessante nisto tudo são os legados históricos, ou seja, aquilo do qual são feitos livros e filmes. E podemos ir a um exemplo em particular, a temporada de 1982. Digo isto porque nesse ano, tivemos onze vencedores diferentes em dezasseis corridas, e o seu campeão, Keke Rosberg, venceu com apenas uma vitória no seu currículo. Acham que há livros sobre esse ano? Não. Fala-se mais dos boicotes, das greves e dos acidentes mortais desse ano do que dos diferentes vencedores das corridas. Desse ano, lembramos mais do acidente de Gilles Villeneuve em Zolder, da greve de Kyalami, das desclassificações de Jacarépaguá e dos 14 carros que alinharam em Imola do que, por exemplo, a dobradinha da Renault em Paul Ricard ou da vitória de Elio de Angelis em Zeltweg. Aliás, só recordamos dessa corrida porque foi a última de Chapman vivo e porque o italiano venceu por meio carro sobre... Rosberg.
E hoje em dia, muitos desprezam o feito do pai de Nico, porque foi mais regular e não mais... dominador. O ser humano tem preferências estranhas...
Acho que já chegaram a uma conclusão óbvia: são os domínios que passam à história, não as incertezas. Oitenta anos depois, ainda nos lembramos dos Mercedes e da Auto Union, e sabemos quem foi Rudi Caracciola, Tazio Nuvolari, Bernd Rosemeyer ou Hans Stuck. E depois da guerra, onde é que Juan Manuel Fangio e Stirling Moss conseguiram muitas das suas vitórias. E claro, toda a carreira de Jim Clark, boa parte das vitórias de Jackie Stewart, boa parte do dominio de Niki Lauda, o campeonato de Mário Andretti, as vitórias de Alain Prost e de Ayrton Senna... preciso continuar?
É uma chatice, mas é assim que as coisas funcionam. E quando vejo pessoas a defender o contrário, nem é tanto contrariar a história, é quase um insulto aos engenheiros que perderam noites a fio para conseguir algo que Mark Donohue chamou um dia de "Unfair Advantage", a Vantagem Injusta. É esse o objetivo do automobilismo, em termos tecnológicos: bater a concorrência, dominar o campeonato, alcançar títulos, estabelecer um legado, expor as máquinas nos museus quando se reformarem. E sempre foi assim desde os seus primórdios. Querer o contrário é ir até contra o ser humano. E ver as modalidades onde essa incerteza acontece, como a IndyCar, veremos que é uma série monomarca, em termos de chassis. Se querem incerteza, então a Formula 1 teria de ser algo parecido, e não creio que é algo que os adeptos queiram.
Costuma-se dizer que a Historia é escrita pelos vencedores. No automobilismo, é mesmo assim, apesar de discutirmos - e tentarmos convencer-nos - de que acontece o contrário.