Saúde Mental é o Novo Normal
Semente Lua - 1989

Saúde Mental é o Novo Normal

Os tempos de pandemia trouxeram à tona a emergência de rever o conceito de saúde mental e suas implicações na qualidade de vida pessoal e coletiva. Pessoas que não tinham o hábito de cuidar de si, especialmente das suas emoções, descobriram de uma forma dolorida a importância desse cuidado. Isso é compreensível, porque o preconceito com o sofrimento psíquico é antigo e persiste até hoje. Ainda é comum as pessoas evitarem dizer que fazem terapia. Além do preconceito, existe o fato de que o processo de autoconhecimento “dói”.

Talvez por essa razão, muitas pessoas confundem terapia com atividades prazerosas “minha terapia é o happy hour com meus amigos; é correr; é ir ao shopping”. Existem razões neuroquímicas que causam essa confusão de percepção. Por exemplo, correr libera endorfinas (neurotransmissor ligado à sensação de bem estar), encontrar os amigos libera oxitocina, o neurotransmissor relacionado à confiança e fazer compras libera a dopamina e ativa o sistema de recompensa. Essa última é, sem dúvida, a mais perigosa de ser utilizada para se sentir melhor, porque pode levar facilmente ao endividamento e aos vícios (saúdes física, financeira e mental estão diretamente relacionadas).

Vamos refletir sobre esses exemplos: a pessoa que se refugiava na corrida, ficou impedida de correr na rua ou na academia. O happy hour foi “proibido” e as compras ainda podem ser feitas pela internet (e mais uma vez, com perigo para o endividamento). Se nenhuma dessas pessoas investiu no autoconhecimento quanto às suas reações às adversidades, apenas vinha reagindo aos problemas do cotidiano, sem autoconsciência quanto às suas emoções, às repercussões no corpo, no sono, na alimentação e nos relacionamentos, o isolamento pode ter se tornado muito difícil ou até mesmo insuportável, justificando os índices alarmantes de ansiedade, depressão e até violência doméstica, desde o inicio da quarentena.

Existem várias estratégias que nos ajudam a ter mais saúde física e mental; cada uma delas tem seu valor, mas o único investimento que leva a uma “reserva de recursos psicofisiológicos” para enfrentar o isolamento, é o autoconhecimento. A psicoterapia é o caminho técnico mais indicado para ajudar nesse processo. Sabemos que existem pessoas que alcançam um bom nível de autoconhecimento sem terapia, mas normalmente têm boa flexibilidade cognitiva para aprender com experiências da vida, relacionamentos e a leitura.

Muitas pessoas, infelizmente, por desconhecer a importância desses cuidados com a saúde, estão recorrendo ao caminho mais fácil, apelando para o uso de medicamentos e outras substâncias. O preço a ser pago por fugir de si mesmo com excesso de atividades e/ou medicamentos é alto, tanto para a saúde individual quanto coletiva. Sabemos que em muitos casos, a medicação é necessária, principalmente quando diagnosticada depressão, transtornos de ansiedade ou outros.

Esse Novo Normal que já estamos vivenciando exige um mergulho profundo e corajoso no nosso próprio universo – análise das heranças familiares, das motivações conscientes e inconscientes, da maneira como aprendemos a enfrentar desafios, scripts assumidos que não servem mais -, enfim, algo que não se consegue em um workshop de final de semana. Autoconhecimento profundo, na raiz, é um trabalho diário de auto-observação, muita autoaceitação e esforço para gerar mudança. Não existe força sem profundidade. Raízes superficiais são facilmente levadas pelo vento e pela enxurrada. Imagina em uma pandemia...

Como criar raízes fortes

As citações entre os parágrafos pertencem à música “Metade”, de Oswaldo Montenegro.

Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio/ que a morte de tudo em que acredito não me tape os ouvidos e a boca/ pois metade de mim é o que eu grito a outra metade é silêncio

O medo de olhar para os próprios medos e aceitar as nossas vulnerabilidades, geralmente é o pior entrave para o autoconhecimento. Nós queremos nos sentir fortes, inabaláveis, mas o fato é que ninguém pode suportar essa posição de super-homem ou mulher maravilha durante todo o tempo de uma pandemia, e se não olharmos para os medos e fraquezas, poderemos sucumbir. Muitas pessoas diagnosticadas com síndrome do pânico são sobrecarregadas e perfeccionistas, que querem controlar as circunstâncias externas. O medo que não é tratado desencadeia sintomas de estresse crônico, porque o corpo está sempre pronto para lutar, fugir ou congelar.

Que a minha vontade de ir embora se transforme na calma e paz que mereço que a tensão que me corrói por dentro seja um dia recompensada

 “Todos nós já construímos barreiras contra o amor. Tivemos que fazer isso para nos proteger da dura realidade de viver uma vida humana” (Kristin Neff&Cristopher Germer). Essas barreiras têm sua origem no medo, na falta de segurança interna para enfrentar as dificuldades, daí emergem os pensamentos catastróficos. Mas esquecemos que, na maior parte das situações da vida, acontece como dizia Mark Twain: “os piores problemas que tive em minha vida foram aqueles que nunca ocorreram”. Olhar para si e praticar o autocuidado, reservando um tempo para respirar, praticar a atenção plena e aceitação, são condutas que desativam as estruturas cerebrais responsáveis por reações instintivas de luta/fuga/congelamento. Cuidar de si, através da alimentação saudável, tempo com a família, sono e exercício físico apesar das limitações do isolamento também são aportes importantes para uma reserva energética de saúde.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria pra me fazer aquietar o espírito e que o seu silêncio me fale cada vez mais, pois metade de mim é abrigo a outra metade é cansaço.

Aceitar que podemos estar cansados, exige coragem. Essa coragem de olhar para os próprios medos é o primeiro passo para fortalecer suas raízes. Lembre-se que a palavra coragem deriva da palavra coração, e o sufixo cor significa aprender, saber. Reflita sobre as situações que estão afligindo você e pense se pode fazer algo para mudá-las.  Quanto às situações que você não pode mudar e não tem o controle, perceba como seu corpo está reagindo a isso, principalmente as tensões físicas e tente relaxar. Perceba que é desnecessário “lutar” com o que não podemos controlar.

Que o medo da solidão se afaste e o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável que o espelho reflita meu rosto num doce sorriso que me lembro ter dado na infância pois metade de mim é a lembrança do que fui a outra metade não sei

Agora faça um exercício de respiração lenta e diafragmática. Essa técnica estabelece o equilíbrio do sistema nervoso autônomo, fortalece a sincronia entre cérebro e coração, reduzindo a ansiedade, o medo e os sintomas relacionados ao estresse. Essa prática também está relacionada à maior resiliência e melhor performance, mas o mais importante é que, ao se instalar o equilíbrio entre os eixos cérebro – coração, despertamos sentimentis de (auto)bondade, compaixão, segurança, amor sincero por nós e pelos demais. O nosso mundo interior se torna seguro e conseguimos acolher as incertezas – o mundo externo deixa de ser percebido como tão ameaçador, diminuindo a sensação de frustração e irritabilidade. Podemos dizer “não sei” diante do caos. O convívio conosco se torna prazeroso.

Que a arte me aponte uma resposta mesmo que ela mesma não saiba e que ninguém a tente complicar pois é preciso simplicidade pra fazê-la florescer pois metade de mim é plateia a outra metade é canção.

Desde o início do isolamento, foram muitas as Lives e entrevistas sobre “como manter a saúde mental na quarentena”. Muitos devem ter assistido. A maioria sugere que “mantenha a rotina”. Mas se não existe rotina, qual rotina devemos seguir? Uma das “dicas” mais bacanas que vi, não lembro o autor, dizia: “descobri que vivo sem shoppings, mas não vivo sem livros e filmes.” Dentro de todo esse processo de autoconhecimento e estratégias para manter a saúde mental, livros, filmes e músicas são os alimentos da alma. A arte e a cultura são necessárias para ampliar as nossas percepções sobre nós, os outros e o que está acontecendo no Novo Normal. A arte resgata a nossa humanidade, a sensibilidade para perceber a nossa dor através da expressão do artista, do escritor, do poeta.

Que a minha loucura seja perdoada pois metade de mim é amor e a outra metade também

Finalmente, saúde mental é coisa séria. Precisa atenção, diagnóstico e encaminhamento para tratamento adequado. Por isso, não deixe de investir no autoconhecimento para poder escolher a melhor metodologia para aceitar-se e se fortalecer. Escolha um caminho para olhar para dentro. Mas não olhe tanto, como sugere a Nise da Silveira – reserve um espaço para a imaginação. Olhe o suficiente para aceitar suas dores e despertar amores. Permita-se ficar no limiar entre lucidez e a loucura.



Gabriele Domeneghini Mercali

Professor at UFRGS | Scientific Researcher | Business School

4 a

"Não existe força sem profundidade." Adorei o texto!

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