A saga do banheiro no trabalho
Confesso que entendo a necessidade que as empresas têm de ter controles mais rígidos na base da pirâmide hierárquica. Se um colaborador sai da linha de produção, a capacidade da linha diminui, e todas as planilhas da empresa contam com essa entrega, com pouca margem de manobra.
Exemplo fictício do McDonald's: se um responsável pela montagem dos sanduíches sai do seu posto por qualquer motivo, a velocidade da produção diminui.
As filas aumentam. Os clientes ficam impacientes.
Se nessa fila tem uma criança esperando um McLanche Feliz, o pai certamente está olhando para cima e orando.
Em escala, se todos os colaboradores da linha de produção decidem parar quando querem, imagine o caos.
O gerente fica desesperado. A lanchonete é esvaziada. Chovem reclamações nas redes sociais. As reclamações viralizam.
E quando os meios de comunicação batem na porta da RP do McDonald's para pegar uma declaração, a diretoria se dá conta do problema. Só quando chega na diretoria, que tem poder de decisão, é que o problema pode ser solucionado. Até lá, quantos clientes foram perdidos, quantos funcionários pediram demissão ou foram demitidos, quanto dano foi feito à imagem da marca? O suficiente para a diretoria querer agir.
Para resolver esse tipo de problema, a estratégia é falar para a gerência das linhas de produção: controlem bem suas equipes, não pode mais pausar quando quiser, segue novas regras de pausa e penalidades para quando elas não forem cumpridas. Decidem gastar um dinheirão em ferramentas para que esse controle não seja mais 100% humano e para que a diretoria tenha um super dashboard acompanhando toda a produtividade da corporação em tempo real.
Aí a gerência, agora sabendo que toda a diretoria fica vigiando os resultados em tempo real, fica com medo de não conseguir entregar o que eles querem. Agora o papel da gerência é manter o pessoal na linha para que não fique feio para ela, então sua gestão passa a ser terceirizar o medo para a equipe dela, fazendo com que todos tenham medo de serem mandados embora a qualquer momento. Se um membro da equipe está com febre, a gerência prefere forçá-lo a trabalhar ao invés de pedir ajuda para o RH, porque isso é sinal de fraqueza. Cenas como o gerente berrando com pessoas, sendo sarcástico, endeusando as pessoas que mais se sacrificam no trabalho para que todas as vejam como o exemplo a ser seguido, são cenas comuns.
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É fictício, mas nem tanto. Ano passado, um funcionário de um quiosque do Burguer King no Brasil fez xixi no próprio quiosque: "se sair, levo advertência, na segunda vez, levo suspensão, e na terceira, levo justa causa". Uma funcionária de um call center na Espanha infartou na mesa de trabalho e todos tiveram que continuar trabalhando ao lado do corpo da colega porque os serviços prestados ali eram "essenciais".
Detalhe: tudo isso tem viralizado, então acaba chegando na mesa da diretoria, que tem que emitir um comunicado de repúdio a esses comportamentos sem entender que eles são a origem do problema. É o gás que as empresas precisam para investir em tecnologias que automatizem 100% da linha de produção. Não para ajudar a linha a produzir melhor, ampliar o escopo ou melhorar a qualidade do produto ou serviço, mas para tirar os humanos porque eles são uma dor de cabeça atrás da outra.
Nós como sociedade educamos nossos filhos para serem adultos responsáveis dentro da lei. Mas nós como sociedade corporativa não educamos o trabalhador para ser responsável dentro da empresa. Partimos do pressuposto de que ele irá tentar prejudicar a empresa e, para isso, impomos uma série de controles, processos e mecanismos de vigilância invasivos para que eles fiquem com medo de prejudicar a empresa. A responsabilidade civil é compartilhada, não é que não há vigilância, há. Não é que não há mecanismos de controle, há. Mas eles são dimensionados de acordo com o nível de litígio da sociedade. Países com piores índices de violência possuem uma polícia mais agressiva e vice-versa. A principal diferença entre esses países é o índice de desenvolvimento humano. Países com IDH mais alto, você anda na rua segurando um telefone sem medo de ser roubada porque você sabe que a incidência de roubo de celular é bem baixa e não porque há uma polícia super presente na rua pronta para reprimir possíveis ladrões.
Ou seja, se países com mais educação, saúde e distribuição de renda possuem sociedades menos repressoras, será que empresas que investem no desenvolvimento, com políticas claras de remuneração, preocupadas com a saúde física e mental de seus trabalhadores também não têm menor necessidade de controle e vigilância?
Voltando agora para aquela linha de produção do McDonald's lá do início do texto: se todas as pessoas daquele ambiente são responsáveis pela linha de produção, qualquer um pode pedir para alguém o substituir e vice-versa. O McDonald's não precisa nem ficar sabendo, não precisa sequer ter controles vigilantes, apenas acompanhar a produtividade. Se ela cai, a responsabilidade é de todos. Se ela sobe, o mérito também é de todos. Não há a necessidade do "funcionário do mês" para estimular um bom resultado. Há a necessidade de atender os clientes da melhor forma possível distribuída entre todos os estágios de produção, na mesma medida que também há a necessidade de que todos estejam bem para que essa entrega aconteça. E isso significa fazer xixi com tranquilidade, ajudar o amigo a viajar com a família ou descansar num dia de semana porque ele também te cobre quando você quer ver um cinema. Seria bom se os adultos contratados pudessem ter a autonomia para agir como adultos. As pessoas teriam a liberdade de agir como precisarem no individual, e a responsabilidade de entregar no coletivo. Não sei vocês, mas para mim isso ganha da escala de advertências nas idas ao banheiro.
Uma reflexão necessária! Produtividade e compromisso com o trabalho virou sinônimo de ego inflado... essa dinâmica acaba tornando os ambiente ainda mais tóxicos, e sem a percepção da correlação entre as áreas da empresa. Não queremos mais ajudar, e sim passar por cima, sempre jogando a responsabilidade pra um outro lado que não seja o nosso. Parece que essa é a ponta do iceberg, só um reflexo de uma sociedade que tem muito a avançar como coletivo.
Na Vida, a Ignorância não é uma Virtude.
10 mParabéns pelo texto! Lamentavelmente esta cultura se espalha em todas as direções. A esperança é saber que há pessoas como Marina Vaz e empresas como a Scooto que remam contra a corrente, mas com o coração tranquilo que estão lutando pelo correto !
Head de CS no ICOM | Promovendo a inclusão por meio da tecnologia
10 mNo callcenter não é diferente. O excesso de controle para atender margens apertadas de ocupação, provocam o mesmo efeito.