Seis meses de Governo Bolsonaro: 'golden shower', balbúrdia e atraso
A Constituição como inimiga e um projeto de poder autoritário
Estava em casa, curtindo meu último dia de férias, quando o Tribunal Superior Eleitoral confirmou a vitória de Jair Bolsonaro (PSL), no segundo turno das eleições em 2018. O cenário político do país, mesmo antes da campanha eleitoral e da votação, demonstrava que um candidato de perfil radical e virulento levaria vantagem. Para este jornalista, o triunfo do ex-capitão não foi surpresa. A certeza absoluta veio após o atentado em Juiz de Fora. No entanto, não sou irresponsável, jamais afirmaria que ação de Adélio Bispo de Oliveira era parte da estratégia. Também não faço coro aos que acreditam em uma suposta ação da esquerda para matar aquele que liderava as intenções de voto. Assumo o fato incontestável que a tentativa de assassinato coroou o nascimento de um mito. A história brasileira evidencia que nossa gente tem apreço por figuras políticas forjadas no Gólgota. Passado o susto, a situação se tornou favorável ao candidato do PSL. Não participar dos debates impediu que os eleitores conhecessem as contradições do atual presidente. Há outros inúmeros fatores que justificam o êxito eleitoral de Bolsonaro e demonstram que, ao contrário do que muitos imaginavam, a conquista do Palácio do Planalto já estava no papo e, portanto, surpresa não seria.
No bairro onde moro, houve gritaria e foguetório. Apesar de minha juventude (tenho 26 anos), nunca ouvi ninguém comemorar, com tanto barulho, a eleição de um político. Naquele momento estávamos – e estamos – diante de uma transformação (ainda não sei dizer, exatamente, o que ela é). A participação popular no debate do futuro do Brasil foi atípica durante o pleito; a ascensão e vitória de um candidato fora da curva e despreparado também era algo novo. Outros ineditismos estavam por vir. O primeiro deles – que, outra vez, não considero precisamente uma surpresa – a postura do presidente eleito. Bolsonaro, já com o resultado consolidado, fez uma transmissão ao vivo nas redes sociais para agradecer seus eleitores. Notem: naquela live ele pregou para convertidos e pouca importância deu para o todo da população brasileira. Não me incomoda a escolha do primeiro contato com o povo ter sido por meio do Facebook, mas sim o teor do discurso. Ali se viu e ouviu de tudo, menos coerência. Sobraram ataques à imprensa e a baboseira anticomunista de sempre. Em síntese, uma manifestação infeliz. O segundo pronunciamento, esse feito aos jornalistas, foi mais comedido, e demonstrava apreço pelos valores democráticos. De todo modo, ficava evidente que Bolsonaro lia o discurso. Como costuma dizer minha avó: “O corpo estava lá, mas não o espírito”. Essa postura foi o primeiro ponto negativo que marquei contra o presidente.
Até a posse, no dia 1º de janeiro deste ano, se acumulavam polêmicas e picuinhas desnecessárias. Mais uma vez, o comportamento ideal de um Chefe de Estado foi ignorado. O clima de terceiro turno continuava, alimentado por Bolsonaro e seus aliados. Algo que, honestamente, em nada contribuiu para melhorar as coisas no país. Durante a cerimônia de posse, um personagem que se tornaria fonte de inúmeros problemas já se destacava: Carlos Bolsonaro. No cerimonial, ele não deveria estar no Rolls-Royce com o pai e a primeira dama Michelle. Um detalhe que passou despercebido pela maioria, mas já demonstrava o caráter invasivo do vereador do Rio de Janeiro – cargo que, pelo visto, ele parece ter abandonado. Os leitores mais ácidos dirão que procuro miudezas para desmerecer a família Bolsonaro. No entanto, me explico: a falta de apreço por formalidades e regras no Governo tem uma raiz profunda e está nos mínimos detalhes de seus personagens. Basta ver as inúmeras confusões que Carluxo provocou. Ainda na cerimônia de posse houve confusão com jornalistas e elas se tornariam cada vez mais comuns. Atualmente, esses conflitos estão longe do fim.
Por adotar distanciamento da chamada grande mídia (o Capitão se julga perseguido por boa parte dos jornalistas), o twitter foi eleito como veículo oficial do Governo. As redes sociais estão no auge e é natural que todos procurem se manifestar por elas, inclusive o presidente da República. Reitero: o problema não é onde Bolsonaro se pronuncia, mas o conteúdo desses discursos, que são, muitas das vezes, agressivos e lembram o comportamento de um adolescente raivoso. Essa não deveria ser a postura do chefe maior da nação. Em parte, a conduta iracunda nas redes sociais – em público o presidente também esbanja grosseria, mas em menor grau – é fruto da mente desocupada de Carlos Bolsonaro. O filho Zero Dois deveria levar chega pra lá do pai, afinal, até agora, ele não se mostrou útil ao Governo (na campanha, é outra história) e, quase sempre, é o vetor de crises. Além disso, cabe uma pergunta simples: como anda o mandato do vereador Carlos Bolsonaro? O subsídio, suponho, está em dia.
Foi justamente de Carluxo (o língua despregada) que veio a primeira crise. Em um menos de um mês, a cabeça de Gustavo Bebbiano, então Secretário Geral de Governo, rolou. O episódio, um showzinho desnecessário, demonstrou como essa personagem é tóxica. O vereador ausente do Rio de Janeiro demonstra completa influência nas decisões da presidência. Proponho um exercício: seria coerente alguém que não faz parte do Governo falar e tomar decisões, atropelando o próprio presidente e a equipe ministerial? A resposta, me parece obvia, é não! O fato de ser filho de Bolsonaro é o que torna essa situação ainda mais complicada e imprópria. Sem poder de mando, o rapaz demite ministros, fala em nome do presidente da República, cria animosidades com a única ala funcional do Governo (os militares) e provoca mais um sem número de problemas, principalmente nas redes sociais. Imaginem essa figura nos quadros oficiais do Governo? Desastre na certa. A cientista política, Vera Lucia Chaia, professora da PUC-SP, comentou a situação em uma reportagem da BBC Brasil. Para ela, a demissão de Bebbiano evidencia a posição inadequada dos filhos do presidente dentro do Governo Federal. “A postura que ele assumiu é para dizer: quem manda no pai sou eu e não é você. Ele não é deputado federal, não faz parte do governo, e é um filho que está sempre presente, até no desfile de posse, sentado no carro. Mostra uma dependência dele com relação ao pai e do pai em relação ao filho". A reportagem da BBC retratava um cenário de fevereiro deste ano. A análise de Chaia se mostrou precisa, basta visitarmos o noticiário para encontrar as ações do Zero Dois influenciando negativamente o Governo. Os militares pagam o pato.
Olavo de Carvalho, outra figura dantesca, também infernizou o Palácio do Planalto. O falso filósofo, além de ser o guru da família Bolsonaro, indicou ministros, pediu a excomunhão de militares e, nas redes sociais, deixou a discussão política em um nível rasteiro – coisa de banheiro sujo. O presidente se cerca de pessoas despreparadas e destemperadas, em um nível quase esquizofrênico. Infelizmente, o ex-capitão parece levar a sério a ideologia de Carvalho. A semente deste mal se espalhou, principalmente, no Ministério da Educação (MEC). Uma das pastas mais importantes, e com um dos maiores recursos, foi ocupada por discussões periféricas sobre combate ao comunismo (uma fixação deste Governo) e a caça aos professores. Em Brasília, chamam essa gente de “ala ideológica”, mas, na realidade, o que há ali é confusão, caça as bruxas (lembro que elas não existem) e guerrinhas virtuais com adversários de uma oposição ainda mais desequilibrada.
Bolsonaro ainda não conseguiu separar o Brasil real, do Brasil virtual. Aquilo que se acompanha nas redes não chega a 10% dos problemas práticos que enfrentamos diariamente. Comunismo, ideologia de gênero, e outros motes igualmente ridículos são formas de se jogar para a platéia e alimentar uma dicotomia estúpida entre direita e esquerda, em vez de fazer o país caminhar para frente. O mau uso das redes é um problema. O mundo está conectado, todos buscam informações em seus smartphones e, como já deixei claro neste texto, considero legitimo que o presidente da República faça uso dessas ferramentas. No entanto, até hoje, foram apenas fontes para expressar boçalidades, grosseria e espalhar fake news. O episódio golden shower entrou para hall das maiores vergonhas da nossa história. O caso merece apenas uma nota curta neste texto, pois o absurdo foi tamanho que o tempo se encarregará de jogar nas nossas caras os impactos daquele disparate. Houve até divulgação de conteúdo pornográfico...
A essa altura, o leitor, provavelmente, se pergunta: onde estão os pontos positivos do Governo? Existe gente competente por lá? Sim! Em menor número, mas existe. Os militares seguem desempenhando suas funções com precisão, a despeito dos ataques de Olavo e Carlos. A equipe econômica é muito eficiente, embora Paulo Guedes, o ministro da fazenda, precise ter aula sobre política. E o ministério da Justiça, de Sérgio Moro? Não faz um bom trabalho, mas para essa pasta escrevei outro artigo elencando minhas divergências e, claro, ressaltando os pontos que considero positivos. Retomando a questão deste parágrafo, os bons parecem manter distância da leréia bolsonarista e fazem a roda do sistema se mexer. O vice-presidente, o General Hamilton Mourão, durante a campanha proferiu um sem número de barbaridades, inclusive pregando nova constituinte “com a participação de eleitos”. Mas, para o bem do Governo, Mourão compreendeu que as eleições terminaram e adotou uma postura adequada para o cargo que ocupa. Isso lhe rendeu críticas da ala radical. Os bons, os moderados e bem intencionados são afastados ou escorraçados, às vezes pelo próprio presidente. O episódio com Joaquim Levy, que foi demitido publicamente e teve seu nome praticamente linchado, é uma prova disso. Formalmente, Levy não foi demitido em público, mas Bolsonaro não fez a menor questão de diminuir a crise; pelo contrário, escancarou o conflito.
No fundo, quando o presidente começa a minar seu próprio Governo, fica a sensação de que ele teme perder o controle das massas. Todas as ações parecem ter como termômetro a reação de uma parte considerável da população – aqueles que apóiam o bolsonarismo incondicionalmente. Quando foi anunciada a possibilidade da nomeação de Mozart Neves Ramos, para o MEC, marquei um ponto positivo para a nova gestão. Mozart é educador, tem boa formação, entende de educação e parecia o ministro perfeito para uma pasta que exige atenção e muito trabalho. A decepção não demorou muito para vir. Ricardo Vélez Rodríguez, o colombiano amigo de Olavo de Carvalho, foi nomeado, após pressão das redes e da bancada evangélica. Estava na cara que não daria certo. Não conheço a obra acadêmica de Vélez, mas em administração pública, ele era novato e desconhecia os atalhos. O resultado: meses de paralisia no Ministério da Educação, sem falar das decisões inócuas, como a do hino nacional nas escolas e o slogan da campanha. Não demorou muito e o colombiano deixou o cargo. A segunda nomeação (com outro empurrão de Olavo de Carvalho) foi ainda pior. Bolsonaro entregou o Ministério para Abraham Weintraub, economista e professor. Esse sim é brasileiro, mas incompetente como Vélez. Weintraub executou as maldades que o colombiano não foi capaz. Primeiro, se falou em balbúrdia, depois em contingenciamento de verbas das Universidades Públicas e dos Institutos Federais e, por último, em combate a ideologia de esquerda nas escolas – não se pode esquecer o momento ridículo do vídeo com guarda-chuvas e o episódio patético com os chocolates em live, cujo objetivo era explicar o contingenciamento. Esse ministro também gosta do twitter, mas como o restante do grupo, para dizer bobagens. Em resumo, as ações na pasta da educação foram tomadas sem critérios técnicos adequados e trouxeram prejuízo para imagem das instituições do Governo e para o dia a dia dos que dependem da pasta.
Há outros ministros igualmente ruins, por exemplo, Damaris Alves (Direitos Humanos, Família e Mulher), Ricardo Salles (Meio Ambiente), Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Marcelo Álvaro Antônio (Turismo). Esse último deveria ser afastado, até que se esclareça o chamado “laranjal do PSL”, escândalo que envolve campanhas fraudulentas em Minas Gerais.
Em resumo: Bolsonaro escolhe mal seus aliados e não parece ter um plano concreto para o Brasil. Faltam ao presidente a habilidades administrativas básicas. Não há sequer uma agenda de compromissos bem organizada. Decisões pouco produtivas no campo dos costumes, não fazem a fila do desemprego andar. Aliviar a barra de motoristas infratores aumentando o número de pontos da carteira de habilitação, não é capaz de barrar a queda do PIB. Extinguir o horário verão (dessa eu gostei!), não diminuirá as filas do SUS. Adotar uma postura subserviente aos Estados Unidos não trará nenhuma vantagem aos brasileiros. Conchavos Donald Trump, além de crime de responsabilidade, não mudarão o clima de horror e fome da Venezuela. É preciso uma mudança imediata. O Governo não está perdido, não é o fim do mundo, mas começa muito mal.
Bolsonaro e sua equipe precisam estreitar a relação com o Congresso. Quer mudar a relação com os parlamentares? Ótimo! Converse, receba os deputados e senadores para diálogos francos e a luz de todos. Quer acabar com a corrupção nas negociações? Que venha a público e estampe o rosto daqueles querem surrupiar o dinheiro do contribuinte. Aliás, em uma entrevista recente na Record, o presidente afirmou que apenas dois deputados o procuraram com propostas indignas em troca de votos a favor da reforma da previdência. Ele recusou, claro, mas se são apenas esses, que bom, não é Capitão? Negociar, discutir e acertar o que é melhor não é impossível, mas demanda esforço e o presidente precisa trabalhar mais. É preciso abandonar a postura de agressão as instituições e a Constituição. Afinal, para esse Governo, a Carta Magna de 1988 é uma inimiga. Isso pode e deve ser mudado, ainda há tempo! O autoritarismo, a gritaria e o jogo de manifestações contrárias e favoráveis já esgotaram a paciência. Chegou o momento de trabalhar, para todos os brasileiros, inclusive para os que não votaram em Bolsonaro.
Nesses seis primeiros meses, as vitórias conquistadas para o país (Governos passam) demandaram pouquíssimo esforço do presidente e sua equipe. A reforma da previdência, talvez o único projeto da nova gestão, pro exemplo, avança graças a Rodrigo Maia (DEM), presidente da Câmara dos Deputados. Mas cabe perguntar: o que virá depois? Eis um vazio que não sabemos como preencher. Em seis meses, não conseguiram o básico. Enquanto o autoritarismo predominar, o Brasil não avança. O murro na mesa não será o suficiente. Precisamos de ações concretas e, até agora, foram poucas e de baixíssimo efeito prático no dia a dia da população. Ainda temos tempo de contornar o atoleiro, mas é preciso cuidado para nos afundarmos ainda mais. Nesse semestre, atrasamos na corrida pelo crescimento, mas a maratona está longe do fim.
Por: Flavio Sousa.
Jornalista | Copywriter | Redator | Revisor • sênior
5 aÓtimo panorama do governo atual até agora, amigo. O recorte a partir das questões internas foi muito bem colocado. Preocupa-me também a relação do Brasil com o restante do mundo, a despeito da camaradagem afinada com os EUA. Uma política de "má vizinhança" com o bairro 'versus' "amizade sincera" com o vizinho não me parece favorável à balança.