A serviço de que?

A serviço de que?

O coaching pode, sim, atender muitos interesses


Este artigo foi publicado pela primeira vez na Revista Coaching Brasil, edição 58, de março de 2018, como parte do Dossiê sobre Responsabilidade, que foi elaborado em resposta ao caô causado numa novela.


Era comum, quando criança, que a minha mãe me levasse ao cinema. Ela gostava muito da sétima arte, especialmente dos filmes policiais. Lia livros da Agatha Christie, não perdia um capítulo das aventuras do Ellery Queen na televisão, e foi com ela que aprendi a também gostar de tudo isso. Mas naquele dia aconteceu algo diferente: meu pai quis me levar ao cinema. Isso não era comum. Fiquei, claro, alegre. Estava em cartaz “Isto É Pelé” um documentário dirigido por Luiz Carlos Barreto e Eduardo Escorel. Era a década de 70, e meu pai se esforçava para estreitar nosso vínculo.

– Como queria ser filho do Pelé – eu disse para ele ao voltar para casa. Tinha ficado impressionado com a habilidade do rei. Como eu queria poder driblar dessa maneira, deixar os outros jogadores para atrás, brilhar nos gramados, viajar o mundo e ter meu nome gritado por milhares de pessoas nas arquibancadas. Sendo filho do rei, pensei, seria bem mais fácil atingir esses objetivos. – Mas Pelé não era filho de Pelé – disse meu pai sabiamente. Cada vez que lembro disso, posso sentir que também houve uma certa decepção nele. Era a primeira vez que me levava ao cinema. Queria estabelecer uma conexão diferente comigo. Mas eu quis ser filho do Pelé. Quis pegar um atalho.

Atalho é algo que um processo de coaching não ensina. Segundo o dicionário, um atalho é um caminho secundário que evita rodear pelo caminho principal e permite encurtar caminho ou chegar mais rapidamente a um lugar. Em qualquer processo decente de coaching esse não é o objetivo principal.

No decorrer da vida, é claro que encontramos e pegamos atalhos. Vários deles podem ser muito adequados para nossas necessidades. Mas não é a serviço de acharmos atalhos para atingir nossos objetivos que um processo de coaching está.

Aprendizado. Expansão da consciência. Auto responsabilização. São esses os resultados que um bom processo de coaching deve entregar para o coachee. E, não raro, o coach acaba também adicionando mais desses ganhos para si a cada processo.

Nestes tempos é muito relevante fazermos a pergunta: a serviço de que está um processo de coaching então?

Para que? Para quem? Quem se beneficia? O que cabe dentro? São perguntas sobre as quais vale refletirmos, e para as quais pensamos que poderiam existir várias respostas, dependendo do ponto de vista. Mas existe algo primordial que não podemos negar. Antes, porém, de responder, gostaria que refletíssemos sobre algumas coisas que são, e outras que não são, bases de um bom processo.

A serviço de que estão as ferramentas utilizadas no processo de coaching? Roda da vida, dream list, SWOT, missão e propósito, metas SMART, ganhos e perdas, tríade do tempo, crenças limitantes e fortalecedoras, feedback 360, jornada da vida, projeção do tempo. A lista é vasta. Até porque é uma boa prática desenvolver novas ferramentas sempre que necessário. Cada coachee traz consigo um mundo interno que não deveria ser encaixado em ferramentas padrão que processos pré-definidos impõem aos clientes sem levar em consideração seus contextos de vida, suas histórias e, mais ainda, as narrativas que são criadas para essas histórias. Um bom processo de coaching acontece em torno da necessidade do/da coachee (ou do grupo quando o processo não é individual). E as ferramentas estão a serviço do processo, a serviço da necessidade. Não são a necessidade nem o processo os que devem se encaixar nas ferramentas.

As ferramentas devem servir para que o/a coachee consiga andar com seus próprios meios após finalizado o processo e não para que em dez sessões encontre uma resposta que, mesmo sendo adequada, não se sustente no tempo.

Boas ferramentas para o processo de coaching existem, e costumam ser na maioria dos casos, os/as próprios/as coachee e coach. Um bom processo ajuda a descobrir as capacidades (as ferramentas) que o/a coachee já possui. Ou servirá para que ele/ela descubra onde ou com quem pode desenvolver novas habilidades, novas visões.

Um/uma bom/boa coach desenvolverá as ferramentas, necessárias para cada processo, ou utilizará ferramentas já existentes que sejam apropriadas para o momento que o/a coachee está vivendo. As ferramentas de coaching estão a serviço do processo.

A serviço de que estão os testes utilizados no processo de coaching? MBTI (Meyer-Briggs Type Indicator), eneagrama, palográfico, DISC (Dominance, Inducement, Submission, Compliance), iPersonic, e muitos outros. A serviço de que, durante o período de um processo de coaching, testes de personalidade poderiam ser utilizados? Sendo a vida um constante devir, um movimento permanente através do qual passamos de um estado a outro, qualquer teste de personalidade trará, no melhor caso, uma visão instantânea da personalidade, e não um veredito sobre quem ou que tipo de pessoa é o/a coachee. No pior caso os danos podem ser permanentes.

Se o resultado de um MBTI indicar que o/a coachee tem um tipo psicológico ESFJ, ou seja com preferências pela extroversão, sensação, sentimento e julgamento, quer isso dizer que não existe outra possibilidade para o/a coachee a não ser guiar suas ações por um roteiro que esse resultado influenciará?

Já em 1948, o psicólogo Bertram Forer, demonstrou – via o que mais tarde ficaria conhecido como ‘efeito Forer’ – que pessoas julgam exageradamente corretas as avaliações das suas personalidades que, supostamente, são feitas exclusivamente para elas, mas que na verdade são vagas e genéricas o bastante para se aplicarem a uma grande quantidade de pessoas. É de grande preocupação que ainda hoje muitos/as coaches não saibam disso.

Testes de personalidade funcionam, mas para aquilo que foram projetados a estudar. Falar que um teste não funciona, tampouco significa nada. O importante é saber quais as premissas que basearam a criação do teste. Qual é a teoria que está por trás de um teste? Essa teoria é ainda válida nos dias de hoje? É correto nos dias de hoje confiar mais na teoria das inteligências múltiplas do que no tradicional teste de QI? Ou já existe alguma outra teoria criada que deixa esses dois testes para atrás?

Qual é a confiabilidade do teste? Para que um teste tenha uma boa confiabilidade deverá – entre outras coisas – oferecer resultados parecidos ao longo do tempo sempre que aplicado ao mesmo objeto de teste, neste caso, o/a coachee. Não vou nem entrar no mérito disso, mas pense comigo: não é contraditório querer aplicar um teste de personalidade sendo que se espera que durante o processo o/a coachee tenha uma ampliação de consciência? A serviço de que, então, estaria aplicar o teste?

Pior ainda, existem versões europeias e estadunidenses para alguns testes, e a maioria dos mais famosos no mercado não apresenta uma versão brasileira, nem latina mas, não raro, coachees são avaliados/as com testes que não tem nada a ver com seu contexto, trazendo sentenças que podem prejudicar mais do que ajudar, pois o/a coachee pode acabar se definindo e limitando pelos resultados apresentados.

Testes devem estar a serviço do propósito específico para o qual foram criados, e podem ser aplicados, por exemplo, para verificar se o/a coachee conta com determinadas habilidades para uma determinada função ou papel. Se o/a coachee quer ser um cantor/a, um teste de extensão vocal é bem-vindo, para verificar quão fácil ou difícil será para ele/ela andar por esse caminho. E claro, é importante demais saber se o teste realmente pode medir aquilo que precisa, ou que quer ser medido. Será que um teste de inteligência mede realmente a inteligência? Testes devem ser aplicados para fins específicos e não para avaliações gerais.

O processo de coaching é sempre personalizado e, se em algum caso algum teste pode ser de proveito para o desenvolvimento do mesmo, será bem-vindo. Não se devem desenhar, porém, processos estáticos, com testes predefinidos muito antes, inclusive, de conhecer o/a coachee.

A serviço de que estão as perguntas no processo de coaching? Basta aplicar uma lista de ‘perguntas poderosas’ para que o coachee avance rumo à meta? Ora, as perguntas são muito bem-vindas, e são sim, uma das principais bases de um bom processo. Mas devem estar a serviço de causar uma reflexão profunda e não superficial como a maioria de listas preestabelecidas fazem.

Qual é o ser que você quer ser? Talvez essa seja a pergunta mais importante para um processo de coaching, pois não existe uma única resposta certa para ela. Seguramente o caminho a ser trilhado para responder essa pergunta passará por vários sendeiros, alguns mais estreitos do que outros. É responsabilidade do/da coach equipar o/a seu/sua coachee para que essa caminhada possa ser realizada.

Qual é o ser que você precisa ser? Você quer ser o ser que precisa ser? Perguntas como essas, que permitem analisar as demandas de uma nova maneira, dirigindo o olhar para pontos que nunca haviam sido vistos, são boas perguntas. É a serviço dessa ampliação do olhar que as perguntas estão.

A serviço de que estão as atividades que são realizadas no processo de coaching? Práticas de relaxamento, ouvir músicas, redigir uma carta a si próprio/a, dinâmicas, jogos, filmes, tarefas, colorir mandalas, mapas mentais, etc. Muitos pseudoprocessos são recheados de atividades dos mais diversos tipos, mas a serviço de que? Para gerar movimento no processo e esperar algum insight acontecer no decorrer do mesmo? Para esticar o processo? Para desenhar previamente processos que caibam no orçamento? Talvez sirvam para ocultar a inabilidade do/da coach para lidar com questões primordiais.

Atividades são, claro, bem-vindas quando estão a serviço do processo, quando buscam resgatar a criatividade que o/a coachee perdeu no devir da sua vida. Esse resgate é um desafio que todo coach deveria encarar a cada processo. O mundo em que vivemos, nossas crenças, relacionamentos e a cultura na qual nascemos, são fatores que influenciam o desenvolvimento pessoal. Desde o dia em que nascemos nos vemos rodeados de normas sociais que cada família vai adquirindo sem perceber, e que podem cercear nossas possibilidades de criar e de sermos espontâneos. E os/as coachees, sem ter consciência disso necessariamente, procuram um/uma coach porque a sua criatividade está travada. Esse é o segredo que existe por trás de toda demanda de coaching. E as atividades podem ser um bom caminho para que o/a coachee possa se conectar com aquilo que está precisando. Criar junto com o/a coachee qualquer atividade a ser realizada já será um grande benefício, e vai permitir que os resultados possam ser mantidos depois do final do processo. As atividades no processo de coaching estão a serviço de aguçar o espírito de criatividade do/da coachee.

O processo de coaching não está a serviço do/da coach. O coaching não existe para o/a coach, mas para o/a coachee, assim como a liderança não existe para o/a líder, mas para seus/suas liderados/as. Não se deve relativizar a ética (roubar é antiético, mas roubar alguém que tem muito dinheiro, ou mesmo roubar um ladrão, nem tanto) para justificar certas atitudes. Tem que ser entendido que o coaching é um serviço ao outro, e não um produto que se adequa de acordo com o preço pago.

O processo de coaching está serviço do/da coachee. Ele/ela deve aprender a aprender, assim como a ampliar sua capacidade deliberativa e, consequentemente, sua autoestima, autonomia e liberdade. E se o processo acontecer plenamente, o/a coachee vai perceber que a liberdade e a responsabilidade são dois lados da mesma moeda. Não se pode ter uma sem a outra. Pelo menos não por muito tempo.

Lá na década de 70, eu quis um atalho para me tornar um jogador de futebol. Não existia o tal atalho, e eu não quis trilhar o longo caminho para me tornar um. Com meu pai, porém, aprendi vários outros caminhos, sem atalhos, mas com amor e sabedoria, através dos quais construí uma vida cheia de conexões, de metas atingidas, e com boa qualidade nas relações.

Um processo de coaching está a serviço do aprendizado, da expansão da consciência, e da auto responsabilização. Está a favor da compreensão de que os seres humanos vivemos desempenhando papéis, e a serviço de equipar o/a coachee para que o desempenho dos seus papeis seja realizado com criatividade e espontaneidade.

O processo de coaching está a serviço de relacionamentos de qualidade. A favor de novas possibilidades e novos mundos que podem ser criados a partir dos aprendizados. E também a favor de uma responsabilização para consigo mesmo/a e para com os outros. Quando se desperta o interesse pelos outros há uma porta aberta para a prática da empatia. Quando a empatia acontece é bem mais provável que verdadeiros encontros ocorram. Quando encontros ocorrem vemos acontecer o amor.

Lacan disse que toda demanda é uma demanda de amor.

O processo de coaching está a serviço do amor.

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