Sobre direitos, deveres e uma monarca
2 dias antes de seu falecimento, Elizabeth II se encontra com a nova primeira-ministra, Liz Truss (Foto: Jane Barlow)

Sobre direitos, deveres e uma monarca

Liderança é um conceito que mudou tanto enquanto a nossa sociedade caminha do ultrapassado século 20 para o desconhecido do século 21, que ficou muito difícil encontrar figuras do século passado que ainda consigam personificar um exemplo coerente e influente para os jovens e adultos que vivem nesse novo século.

Conforme nos acostumamos a viver num mundo onde o escrutínio de vidas é onipresente e instantâneo, ficou impossível dissociar vida particular daquilo que é público. Nessa nova realidade, liderar por exemplo tornou-se uma tarefa diuturna para aqueles que escolhem o papel de líderes, sejam eles na vida pública ou privada.

Nesse mês, com o falecimento da Rainha Elizabeth II, eu creio que o mundo esteja encerrando uma era de sua liderança política. E acredito, acima de tudo, que sua vida (com acertos e erros) deva servir de exemplo para muitos de nós que ainda tentam se encontrar em seus papéis de liderança mundo afora.

Logo acima, falei da escolha em ser líder. Executivos escolhem ser executivos. Políticos escolhem ser políticos. Desportistas de alto nível escolhem seus esportes. Uma rainha não escolhe ser rainha. Especialmente pela história de abdicação do trono por parte de seu tio, é possível dizer que Elizabeth II jamais esperava um dia ser rainha do Reino Unido.

Entronada apenas alguns anos após a guerra mais horrenda que o mundo moderno já viu, com seu país ainda completamente esfacelado após esse conflito que causou quase 500 mil mortes no Reino Unido, e com apenas 25 anos de idade, seria difícil imaginar a época que, 7 décadas depois, estaríamos falando da maior monarca da nossa era. Para alguém que sempre foi um exemplo vivo de devoção ao dever de seu papel como chefe de estado de uma das nações mais poderosas do planeta, a foto acima serve como o legado perfeito de uma vida de longeva devotada ao seu dever: 2 dias antes de seu falecimento, com a saúde já bastante debilitada, Elizabeth II recebeu a nova primeira-ministra do Reino Unido (a 15ª durante seu reinado), Liz Truss, para perguntar se ela aceitava formar um novo governo em seu nome, conforme manda a tradição. Poderia ter mandado uma carta. Um e-mail. Telefone. Feito um zoom, até. Optou por aquilo que as pessoas esperavam dela. E, principalmente, por aquilo que ela esperava de si mesma.

Numa sociedade cada vez mais hedonista, é difícil falar de deveres. A nossa própria constituição é um ufanismo de muitos direitos e pouquíssimos deveres. Por onde passo, escuto cada vez mais o termo: “eu não vou fazer aquilo que os outros esperam de mim”. E não consigo deixar de pensar que aquilo que os outros esperam de mim é justamente o resultado da imagem que eu mesmo construí ao longo da minha vida, mesmo que curta. Fazer o que esperam da gente, na grande maioria das vezes, é acima de tudo uma relação de confiança. Quando eu cruzo um semáforo no verde, espero que o carro que vem do outro lado pare no vermelho. Quando deposito dinheiro no banco, espero que o banco não suma com o meu dinheiro. Se namoro alguém nos moldes tradicionais de um namoro, espero não ser traído. São essas expectativas que temos de outrem que mantém a sociedade coesa e funcionando. São essas tradições que geram previsibilidade e confiança nas relações humanas, políticas e empresariais.

Por isso, ao ver o funeral de Elizabeth II, agora o maior evento da história do planeta, com mais de 100 chefes de estado, milhões de pessoas espremidas em torno do caminho da procissão fúnebre entre a abadia de Westminster e o Castelo de Windsor, e audiência ao redor do mundo prevista de 4,1 bilhões de pessoas (metade da população do planeta!), só consigo pensar em como a nossa sociedade está faminta por exemplos que apontem caminhos nesse admirável (e muitas vezes apavorante) novo mundo que estamos descobrindo.

Somente seu velório reuniu mais de 350 mil pessoas que chegaram a esperar mais de 24 horas numa fila que, no seu ponto máximo, atravessou 16 quilômetros de comprimento em torno do rio Tâmisa. Até mesmo estrelas como David Beckham, uma das faces mais reconhecidas do futebol mundial, tiveram que esperar com os anônimos para prestar seu último sinal de respeito à rainha, sendo que Beckham esperou por 12 horas na fila.

Mesmo que muitos não gostem da ideia de um regime monárquico em pleno ano de 2022, todos esses números mostram que exemplos de compromisso com a tradição histórica dos costumes de uma nação como Elizabeth II ainda são extremamente importantes para nos guiar diante da transformação severa de valores pela qual o mundo vem passando. Olhar para o nosso passado é essencial para não esquecer quem somos diante da perspectiva do que queremos ser no futuro. E isso vale para tudo aquilo que nossa história traz de bom, mas também de ruim. Não há como ensinar novas gerações sobre o que é acreditamos ser o certo se não soubermos o que apontar como errado.

Para quem vive num país de memória curta como o Brasil, especialmente numa época sensível como a de eleição, fica a esperança que o exemplo que a Rainha e o Reino Unido levaram ao mundo nos últimos dias sirva de inspiração na nossa construção de um país melhor, e a mensagem de que todo direito é a conquista final de muitos deveres cumpridos.

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