Sobre executivos e tatuagens

Sobre executivos e tatuagens

Uma vez eu ouvi ou li uma frase que fez todo o sentido na minha vida: a minha tatuagem não faz de mim um marginal da mesma forma que o seu terno não faz de você um cara decente.

Sou uma pessoa tatuada. Muito tatuada. Tatuada até demais para o estilo que sigo. Se pensam que eu faço o tipo “doidinha”, do cabelo roxo, batom preto e brincos em lugares que não a orelha, engana-se. Se me ver na rua de terno ou calça jeans, camisa branca e um salto vertiginoso, você nunca vai dizer que eu conto a minha história através de 15 lindos desenhos espalhados pelo meu corpo.

A primeira foi aos 12 anos. Com o consentimento e a companhia do meu pai – seguramente uma das pessoas mais tatuadas que eu conheço. De lá pra cá eu adolesci, amei, sofri, superei, cresci, fui mãe, me casei. E cada um desses momentos teve a sua marca. Literal. Momentos de alegria e de dor traduzidos em símbolos que fazem sentido para mim.

Sempre tomei o cuidado de não fazer nada que não pudesse ser tampado quando EU quisesse.

Em paralelo à minha vida pessoal, óbvio, desenrolou-se a profissional. Sou administradora, atuo como compradora da indústria automotiva e lido com a turma do chão de fábrica. Mas também lido com figurões de grandes multinacionais. Sou bem comunicativa e transito bem do boteco ao jantar de negócios. Sou profissional, qualificada, experiente, tenho postura e respeito o meu ambiente de trabalho, meus colegas e a cultura das empresas que me empregam. E o respeito foi mútuo.

Assim, me surpreendi quando, numa breve incursão por uma pequena empresa da indústria farmacêutica, o diretor me disse sem cerimônias que quando o calor chegasse, eu ia sofrer, já que minhas tatuagens não poderiam ficar à mostra de jeito nenhum porque a indústria farmacêutica era muito séria.

Pausa dramática.

Ainda hoje tento entender o que ele quis dizer. Então eu não sou séria? Então a indústria automotiva não é séria? Então as pessoas que tem tatuagens não são sérias? Ou, por outro lado, os profissionais da indústria farmacêutica tem essa mentalidade pequena? A indústria farmacêutica não respeita a diversidade? A indústria farmacêutica é preconceituosa? Ou só ele que é um babaca mesmo e ponto final?

Eu me senti pessoalmente ofendida, senti meu passado ofendido, senti os colegas da indústria automotiva ofendidos (mesmo aqueles sem tatuagem) e me senti censurada.

Nunca, em praticamente 15 anos lidando direta ou indiretamente com a Fiat e outras montadoras eu tive minha capacidade questionada por exibir tatuagens. Ao contrário, fui valorizada pelo ser humano que me tornei após passar pelas experiências que os desenhos pelo meu corpo retratam. Pelos valores que cultivei e que apliquei (e aplico) em minha jornada profissional. Não é justo que a minha bagagem seja resumida a uma sacolinha de plástico porque, um dia, transformei a dor de perder minha filha numa flor vermelha no braço. Porque celebrei a vida dos meus filhos com o desenho do pezinho de um e da mãozinha do outro eternizados na minha pele. Ou porque tiro forças do girassol, flor preferida do meu avô, aquele grande homem que foi e é o meu norte, que tenho no pulso.

Jamais direi que as minhas tatuagens não me definem. Definem sim. Elas não me RESUMEM. Não me resumem a um estereótipo antiquado, oriundo de mentes restritas e superficiais, mais preocupadas com as aparências do que em construir relacionamentos sólidos, com pessoas diferentes, de lugares diferentes, com visões diferentes, que trazem oportunidades diferentes.

Amigo, olha o tamanho do mundo! As minhas tatuagens não fazem de mim uma marginal assim como o seu terno não faz de você um cara decente. 

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