Sobre: A Voz Interior, de José Pais de Carvalho Por: Risoleta C. Pinto Pedro
Trata-se de uma história iniciática. Logo no início encontro o indício. Começa com a acácia, a flor encontrada ao pé do túmulo de Hiram, o mestre, o iniciado e construtor do templo de Salomão. Mas esta é uma acácia lusitana, do jardim da Vigia, na serra da Lua. Melhor jardim não poderia haver do que este, para vigiar os movimentos interiores.
Quase poderíamos afirmar que este livro começa com uma figura de convite, e que esta é a acácia, essa futura de tão antiga madeira da arca da aliança. Pelos menos, os meus olhos assim leram a primeira página.
Não será por acaso, ou talvez o seja sem saber, que a flor filha de árvore sagrada seja personagem da abertura deste drama. Curiosamente, após referir cedros, carvalhos e sobreiros, o narrador detém-se na acácia e entramos nela com ele, digo, com o perfume.
Aqui, acácia é uma espécie de outro rosto de Janus, porque não é madeira, poderia ser cor, mas é o perfume com que atrai Pedro personagem, e Janus («procurava outra face do ser humano») não é rosto, é a voz com que nos chama («a sua voz interior»). Está dado o tom: não esperemos o que não seria de esperar. Porque a voz é, realmente, interior, como logo o título avisa, numa capa muito eloquente.
As vozes soantes que se vão fazer ouvir, apenas nos fazem perder no mapa invisível que partilhamos com Pedro, nome de pedra, a base da construção da história; é a voz que permanece ao longo da narrativa como pedra de sustentação. Um rosto em busca de outro rosto, interior, o mais verdadeiro, como um Janus de dupla face. A ferramenta vai ser a voz do pensamento posta em palco de leitura, para que possamos assistir.
Lúcia, a partir de certa altura da narrativa a sua interlocutora feminina, amante e amada, surge quando é necessária, no momento da maior escuridão. Porque é lux. Luz, Lúcia. Assim como chega, assim parte; quando a luz interior começa a revelar-se. Fora de cena quem não é de cena.
Escrevo este texto sobre o livro antes de ler o prefácio, cuja leitura deixarei para o fim.
Começo a leitura pelo I capítulo, na p. 13, saltando também a introdução. Pretendo uma leitura sem filtro. Tanto mais que, pelo nome do autor do prefácio, adivinhei a qualidade do filtro, que confirmo agora, ao rever este texto, podendo já, firmemente, afirmar ser extraordinário o prefácio de Rui Lopo, cuja leitura recomendo.
O livro inicia-se com uma descrição que sempre me desperta, a mim que evito, como ficcionista, deter-me na descrição de paisagens, a não ser muito pressionada pelas personagens. Não que não goste de as ler, mas como escritora não me dá para aí, não faz o meu estilo. Vamos então ver o que sai desta paisagem, para já, aparentemente exterior. Que afinal é espelho. Como nos poetas do renascimento, espelho da alma: «não as paisagens, mas a natural contemplação da natureza intrínseca»; afinal, é apenas o trampolim para aquela que mais interessa a um viajante da alma em busca de uma dor que é a de não saber: «a inconsciente dor de não saber o que o aprisionava». Esta dor remete-me para o primeiro verso de um poema de António Telmo: «Que se passou na infância que não lembro», que faz parte do VI volume das Obras Completas. A viagem do herói faz-se na perseguição deste não saber que é o não lembrar de Telmo. Mais felizes são ambos, contudo, do que a maioria dos seres. Porque o sujeito poético do poema de Telmo busca «reaver o modo/P’lo qual veja de novo o que então vi.»
A personagem de José sabe que não sabe, ao contrário dos adormecidos que não sabem que dormem, aqueles de quem Telmo afirma que «esqueceram que esqueceram».
E sabe que não sabe, porque não confunde conhecimento com consciência, uma forma superior de saber.
Durante esta viagem do herói que ele é e também o leitor, as palavras que mais nos acompanham são silêncio e solidão, indispensáveis ferramentas ou armas do herói durante a estridência da luta e o bater dos metais. Entre o escritório de advogado do pai e a ONG a que prefere dedicar-se, passando pela permacultura e grupos ecologistas, outros espiritualistas, e as preocupações várias que o planeta doente lhe merece.
É de uma enorme humanidade, o discorrer. Desde a tensão tão contemporânea e ao mesmo tempo tão antiga, mas cada uma à maneira do seu tempo, entre o campo e a cidade, com a forte ligação à terra e ao sustento, do qual nos conduz à velocidade da onda até ao interior e ao sentimento, o amor oculto por teimosia ou pudor ou desconhecimento, dos filhos pelos pais, em suma, um largo painel das contradições da contemporaneidade, numa visão política e social que o autor, em nome de Pedro, vai pintando.
Assim criando um testemunho rigoroso do caos presente para memória futura do desnorte ecológico e social de hoje. Amplo documento dos tempos que vivemos.
Com os quais não se mostra satisfeito, denunciando uma extrema, aflitiva e quase obsessiva inaptidão existencial para os absurdos da sociedade humana, percorrendo a família, a escola, o trabalho, as relações.
Desenhado o painel, começa a retirar-nos o tapete pondo em causa a noção comum de realidade. Depois da realidade, o questionamento do olhar, ou da percepção:
«- A realidade nada mais é do que uma interpretação.»
A partir deste tema desenrola, na p.37, um diálogo sobre o vazio em tom de nonsense, onde real e ficção tanto se atraem como se repelem.
Para além do drama interior, em que o sentimento profundo de separação e exclusão é dominante. Sentimento muito mais comum nas famílias do que é bem aceite ser dito. O que não é incompatível com o amor; muito humano e incompleto e imperfeito, mas persistente. Quase heróico. Que talvez explique esta humanidade à beira do abismo. A personagem de Pedro é como um elo de união entre um mundo antigo em desaparecimento e um mundo actual em caminho acelerado para o desaparecer. E o choque de culturas, e os malefícios do mal falado e mal fadado progresso face a sociedades desamparadas e despreparadas perante comportamentos violadores e abusivos.
Tal como o planeta, a personagem sofre uma espécie de coma em que tudo muda sem nada parecer ter mudado. O leitor não poderá, neste momento da narrativa, deixar de exprimir interiormente o desejo de que o mesmo esteja a passar-se com o planeta. Que o acordar do coma em que se encontra não revele lesões irreversíveis. Que a esperança, a fé ou qualquer outra emoção criadora de milagres se corporize em Gaia. Que a paisagem aparentemente igual à de ontem, esconda um interior em acentuada transformação alquímica, para que os nossos olhos violadores não possam interferir, uma vez mais, num processo que não saberíamos reverter.
As soluções que vão sendo desvendadas não são as convencionais, são perspectivas abertas num mundo emergente e ao mesmo tempo antigo, um mundo resgatado do património obscuro ou obscurecido, grávido de recursos de cura e salvação. O lugar de onde tudo surge não fica longe nem alto. Mas necessita de um farol virado para o interior: “Pedro era um espectador de si próprio”. E nós com ele. Dele e de nós, através dele. Observar os movimentos ocultos da psique é perscrutar o Universo. O grande projectado no pequeno, o interior no exterior, o alto no baixo, o longe no perto, o agora no sempre.
E este romance, com considerável e inegável contaminação da busca espiritual, consola e é libertador:
«qualquer dos dois não precisava de ser perfeito, mas apenas saber expressar os seus sentimentos e emoções».
Quem afirma o que escreve? Pedro? O narrador? É que o que já adivinhávamos confirma-se quando o narrador deixa de se referir a Pedro na terceira pessoa e se denuncia pela primeira pessoa verbal, o que voltará acontecer uma outra vez, mais à frente.
«Naquele final de tarde despedimo-nos.»
Aparentemente, da amada. Mas talvez o narrador esteja a despedir-se da sua personagem para poder tomar, finalmente, heroicamente, o lugar dela. Contudo, nunca nada é definitivo. Logo retoma o seu anterior estatuto. Distancia-se, regressa à terceira pessoa:
«Ele gostava de ficar sentado nos terminais de longo curso».
Esta alternância vai voltar a ocorrer de modo canónico, com o recurso à carta. A ambiguidade do estatuto do narrador e da personagem, atrás referida, é pontual.
E perde toda a importância perante a grande prova, uma das maiores iniciações. Algumas das páginas mais tocantes são as que levam o leitor a pensar sobre o morrer. Na morte do pai vai recorrer ao método budista de assistência aos moribundos. A sabedoria do Livro Tibetano dos Mortos inspira estas páginas onde a humanidade e o desamparo abanam ainda mais profundamente o mundo interior, e com ele todo o universo.
Morte e sexo, os grandes tabus, aparecem aqui em páginas próximas, e também as extensas páginas de descrição do encontro amoroso não correspondem ao estereótipo ficcional, mas revelam, num narrador assumidamente masculino, um olhar e um sentir quase femininos, se vistos pelo olhar do preconceito e da convenção. Mas não alienam a personagem do mundo. Nem a morte nem o amor o desviam da denúncia dos enganos, equívocos e fraudes com que os senhores que constroem a narrativa do mundo vão mantendo os seus escravos: do aquecimento global à alimentação e saúde. A evolução posta a nu e mostrada a cru. Por um homem em crise num mundo em crise.
Estamos, ainda, num mundo de sofrimento.
A narrativa vai acompanhando a errância da personagem, mas a partir do capítulo 23 a ficção descola e o leitor também; ganha asas, a verdadeira viagem iniciática na sua etapa mais transformadora começa aqui. Nas asas da imaginação liberta-se do sofrimento e permite-se olhar a dor, a real e verdadeira massa alquímica. A ficção solta-se do real, e estamos perante algo que poderíamos aparentar ao realismo mágico, a linearidade é abandonada, e o encanto cresce. O mistério eleva a história, um livro passa a ser personagem e a antecipar profeticamente a ficção, as linhas ficcionais cruzam-se, os planos, as redes da história confundem-se, criando um ambiente mágico muito mais poderoso do que a descrição do real. O leitor sente alívio.
E é na Amazónia, esse útero em risco, que a constelação salva a personagem permitindo-lhe percorrer «o seu passado» e ver «a origem da sua tristeza».
O guerreiro aprende a sentir. «Sinta, sinta, mas não pense». Diz-lhe o xamã. Há um tempo para tudo. O guerreiro cansado do obsessivo pensar com que evitou o sentir, entrega-se agora áquilo de que sempre fugiu. E é esse o seu heroísmo.
É um final aberto, o deste romance de procura da consciência. Ou, se quiserem, livro de aventuras. A aventura da alma, num livro que parece pretender reconciliar a ficção com a reflexão acerca do modo de cada um se pensar, observar, pôr em causa ou descobrir.
Infância, família, trabalho, mundo, amor e morte são os monstros e as fadas da viagem do herói num livro de aventuras para gente não crescida, mas em via de crescimento.
Sesimbra, Biblioteca Municipal, 26 de Novembro de 2016