Sobrevivi em 2020 no País que Pior Enfrentou o COVID-19

Sobrevivi em 2020 no País que Pior Enfrentou o COVID-19

Quando fiz minha primeira pós (Faculdade de Saúde Pública na USP) e a especialização na FGV (Epidemiologia Hospitalar) tomei algumas broncas de 2 saudosos professores. Foram broncas diferentes, mas tinham o mesmo pano de fundo: sem prestar a atenção adequada ao que eles ensinavam para construção de indicadores, eu dava mais importância ao divisor do que ao denominador ... a bronca: “o indicador que você está construindo serve, mas para outra coisa, e não para o que você está querendo demonstrar Enio !”.

É claro que na época fiquei chateado (para ser elegante no adjetivo), mas hoje sei exatamente o que ocorre quando se faz esta “lambança” – estamos vendo uma “enxurrada” de indicadores na mídia que servem para um “monte de coisas”, menos para avaliar o enfrentamento adequado do Brasil na pandemia:

  • A mídia está completamente despreparada para lidar com indicadores, e fica mostrando gráficos parecidos com os da campanha eleitoral ... sofrível;
  • A mídia pode errar, é compreensível ... mas o governo não ... a não ser que o erro seja intencional !

Não tenha dúvida: entre os +/- 100 países que teriam condições de enfrentar a pandemia ... o Brasil “ganhou a medalha de ouro” ... com honra mérito, diga-se de passagem !

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(*) Todos os gráficos são partes integrantes do estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil

Com extremo receio em escrever sobre isso, porque alguma coisa aqui será retirada do contexto para ser utilizada de forma ideológica, política, demagógica, como tudo que estamos vendo no Brasil ... vamos lá !

O gráfico ilustra um indicador amplamente divulgado para demonstrar que o Brasil “não está bem na fita”:

  • Óbitos per capita (número de óbitos dividido pela população)
  • Na comparação com a Alemanha (por exemplo) o Brasil é ridículo;
  • E é verdade;
  • Este indicador pode até ter serventia para muita coisa, mas não é adequado para medir se o país está enfrentando adequadamente a COVID-19;
  • Pode inverter a situação do Brasil com vários países que enfrentam a pandemia melhor ... explicando ...

COVID-19 não afeta toda a população da mesma forma:

  • O índice de mortalidade é diferente nas várias faixas etárias e muito, mas muito, mas muito, maior na população com 60 anos ou mais;
  • Então para medir se o país está fazendo um bom trabalho de enfrentamento deve-se dar foco nas faixas etárias da maior idade, ou seja, dividir o número de mortes por idade pela população por idade;
  • Se isso não é feito, utilizamos um divisor que não tem relação direta com o denominador, misturando óbitos cuja maioria absoluta se refere às pessoas de mais de 60 anos com parcelas da população cuja maioria tem idade inferior;
  • O indicador pode ter alguma serventia, mas não para identificarmos se o país entendeu a doença e atuou onde ela realmente afeta.

Para exagerar na comparação, é como se dividíssemos o número de abortos pela população, e não pela população feminina ! ... como se aborto pudesse ocorrer em homens !

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Mudando o denominador daquele indicador para população com mais de 65 anos, uma vez que os óbitos ocorrem com mais frequência nesta faixa etária:

  • A relação muda, e o indicador dá melhor a dimensão do que é a pandemia, para quem é mais afetado por ela;
  • A diferença dos indicadores do primeiro e do segundo gráficos passa a ser da ordem de quase 10 vezes – no primeiro “uma gripezinha”, “uma marolinha” ... no segundo uma calamidade pública sem precedentes;
  • E na comparação com a Alemanha o Brasil “de ridículo” passa para “show de horror”.

É claro que este segundo indicador também deveria ser ajustado, colocando no divisor o número de mortes nesta faixa etária:

  • Mas não temos isso no Brasil ... vamos lembrar que os números minimamente confiáveis que temos são divulgados por um consórcio de veículos de imprensa e não pelo Ministério da Saúde ... um absurdo !
  • Mesmo com o viés, é mais próximo da realidade (muito mais próximo) o segundo gráfico do que o primeiro, que diminui a margem de erro em relação a população minimamente (ou “nadamente”) afetada !
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Para melhor entendimento:

  • O gráfico da esquerda mostra a distribuição da população por faixa etária na União Europeia, o do Centro nos Estados Unidos e o da direita no Brasil;
  • Quando mais bicudo na parte de cima, menor é a proporção de pessoas de maior idade;
  • Embora nossa população tenha envelhecido, como na maioria dos países do mundo, no Brasil temos menos, mas muito menos, idosos do que os outros;
  • Ou seja, o denominador ... o número pelo qual vamos dividir o número de óbitos, nas faixas etárias maiores é menor;
  • Quando se divide por um número menor, o indicador é maior;
  • Ou seja, se tivéssemos números confiáveis de mortes por faixa etária ... se o governo tivesse deixado os órgãos competentes de saúde pública trabalhar (e são competentes no Brasil ... não tenha dúvida sobre isso), teríamos indicadores reais ... e infelizmente ainda piores ... mas muito piores.

Sem trabalhar com indicadores adequados:

  • O governo federal, os governos estaduais, o governo distrital e os governos municipais não desenvolveram ações adequadas para enfrentar a pandemia;
  • Adotaram, quando adotaram, ações que não deram foco à população mais afetada ... ações genéricas para toda a população, sem sentido e sem resultado prático ... ao invés de ações efetivas, apostas ... ao invés de ciência, “horoscopologias”, como a de medir o distanciamento social pela localização do aparelho celular das pessoas (hilariante).

Até mesmo nas eleições, única coisa que interessa aos políticos:

  • Os idosos não foram realmente tratados como deveriam para se isolar da população que brincou (e ainda brinca) com a pandemia;
  • Seria tão simples, por exemplo, dividir as zonas eleitorais entre idosos e demais, já que se tem tudo isso no cadastro eleitoral. No horário que fui votar, o “preferencial para pessoas da minha idade” parecia que estava em um fast food ... maioria esmagadora de pessoas jovens ... tano no primeiro como no segundo turnos;
  • Mas ele preferiu pedir a colaboração da população para que os jovens evitassem o primeiro horário ... pedir a colaboração de uma população que nem usa máscara, incentivado pelo próprio governo que diz que é bobagem;
  • Resultado: o índice de abstenção foi gigante porque vários idosos não quiseram se expor, e 15 dias depois os números de infectados e óbitos disparou !
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Então ... não temos concorrentes ... o Brasil é disparado o pior:

  • Veja o caso da Suécia que iniciou a pandemia sem restrições de afastamento social e uso de máscaras – se arrependeu e rapidamente reverteu a situação – para quem não sabe: é um país que tem mais de 20 % da população com mais de 65 anos ... no Brasil não chega a 9 %, e a pandemia, infelizmente, vai reduzir ainda mais este percentual;
  • Veja o caso do Reino Unido ... o primeiro-ministro começou com o discurso de “gripezinha” pegou COVID e mudou rapidamente de atitude: além do cenário ter revertido e ficado muito melhor que o do Brasil, ainda foi o primeiro a iniciar a vacinação ... nós aqui estamos politizando o “sotaque” da vacina;
  • Além do nosso histórico de não termos atuado de forma adequada ... não viramos a página ... não tem nada sinalizando que vamos mudar de rumo ... estamos “ao Deus dará”.

As pessoas que continuam com interesse em distorcer o fato de que somos o exemplo de tudo que não se deve fazer vão querer comparar o Brasil em um ranking que inclui países que não teriam condições de enfrentar a pandemia:

  • Micro países ... países absolutamente pobres ... países que não têm sistema de saúde público minimamente estruturados ... ditaduras que tratam a população como “escravos do poder”;
  • Mas se compararmos com países que teriam condições de enfrentar a pandemia ... estão entre os mais ricos, têm sistema estruturado de saúde pública, não são pequenos condados ou ilhas ... o Brasil é a vergonha mundial;
  • 2020 será “de longe” a grande cicatriz na saúde pública brasileira ... um apagão para esquecer ... se sobrevivermos para poder lembrar !

Neste cenário tenho que comemorar e agradecer a Deus ... sobrevivi:

  • Ao governo federal que só fez incentivar a população a se contaminar ... sem o uso de máscara, sem o distanciamento social ... reduzindo a credibilidade das vacinas, discriminando fabricantes e institutos por ideologia;
  • Ao governo do meu Estado que relaxou completamente as práticas de distanciamento social até o dia das eleições municipais por pressão política, mostrando números inadequados “da ciência”, que foram imediatamente modificados após as eleições ... perdeu a credibilidade e infelizmente por conta das festas de final de ano e férias poderemos ter o pior “janeiro vermelho” da história da humanidade;
  • Ao governo municipal que, entre outras ações pavorosas para conter o distanciamento social, reduziu o volume de veículos no transporte coletivo, aumentou a restrição do rodízio de carros ... ações que incentivaram a aglomeração ! ... e assiste passivamente a gigante aglomeração de pessoas no comércio popular, porque ali tem voto ... afinal: distanciamento social e uso de máscara é obrigatório ou não é ?

Não tem aqui qualquer cunho ideológico ou político ... políticos de qualquer partido ... todos:

  • Não agiram quando ficou evidente que os institutos Butantan e FIOCRUZ, ao invés de trabalharem em parceria, foram “entrincheirados” um contra o outro. Apenas 2 pessoas, por interesses particulares, definiram o rumo da produção de vacinas nestes institutos. Prestei consultoria durante alguns anos no Butantan, conheço tanto a sua capacidade e competência, quanto o respeito que os seus pesquisadores têm pela FIOCRUZ ... tenho dezenas de amigos gestores na FIOCRUZ e sei do respeito deles pelo Butantan ... qual o país do mundo não gostaria de ter 2 instituições de competência mundialmente reconhecida como elas trabalhando em parceria ?
  • Não agiram desde que o Ministério da Saúde começou a restringir ações técnicas adequadas do SUS para enfrentamento da pandemia. Apenas 1 pessoa, por interesse pessoal, humilhou todo um sistema público de saúde que se desenvolveu com sucesso, dentro das limitações do Brasil, durante 40 anos ... qual o país do mundo não gostaria de ter um SUS como o nosso ?
  • Não fazem efetivamente nada para que em 2021 não sejamos também o país mais fracassado do mundo no programa de vacinação. Será que pessoas que não estão na lista dos prioritários vão furar a fila ? ... algo está sendo feito para que ricos, autoridades e seus familiares não furem a fila ?

Políticos de todos os partidos ... todos:

  • Deixem a área da saúde trabalhar da melhor forma pelo menos até o final da pandemia;
  • Temos uma das melhores medicinas do mundo ... respeitem quem coloca a sua vida e a vida dos seus familiares tratando dos outros ... tratando de vocês e das suas famílias;
  • Temos gestores em saúde pública reconhecidos mundialmente ... deixe-os trabalhar sem a influência de “urnas eletrônicas”;
  • Façam com que a lei seja cumprida (que o obrigatório seja obrigatório) e se exponham para conscientizar as pessoas que não têm discernimento para entender a gravidade da situação;

Das 200.000 mortes:

  • As do início da pandemia não tínhamos como evitar ... o efeito surpresa e a infraestrutura que não existia foram fatais;
  • Mas a maioria absoluta das que ocorreram após os 3 ou 4 primeiros meses da pandemia poderiam ter sido evitadas;
  • 50, 60 mil mortes eram praticamente inevitáveis ... mas as demais não eram inevitáveis se o Brasil tivesse enfrentado a pandemia da forma adequada;
  • Deixar que isso tenha ocorrido valeu a pena ? ... dormimos tranquilos ? ... cada um fez o que poderia para evitar este genocídio ?
  • Garanto que tudo que poderia fazer para colaborar fiz ... e modéstia à parte julgo não foi pouco ... não cabe dizer o que, porque não estou em busca de voto;
  • Políticos que fizeram “quase nada” discursam “o tudo”, porque só pensam no voto !
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Por inércia do governo, o COVID-19 está “ferindo mortalmente” também o SUS – o gráfico demonstra o volume de internações:

  • Todas as internações, inclusive COVID ... a queda é gigantesca .. nunca vista desde que o SUS é SUS;
  • Mas se descontarmos as internações por COVID a queda é ainda mais assustadora: significa que o volume de cirurgias e tratamentos clínicos de outras doenças passou a ser insignificante;
  • Imagine a quantidade de pessoas que sofrerá (ou morrerá) por este apagão do SUS em 2020 ... e que tudo indica, continuará em 2021, “na maior cara de pau” !

A pergunta que não quer calar: para onde foi o dinheiro que estava no orçamento do SUS para 2020 ?

  • Se alguém disser que o governo empenhou no combate à COVID ... não acredite !
  • Por mais que tenha pago caro por respiradores, EPI’s, e uma meia dúzia de hospitais de campanha ... isso é “fichinha” perto do orçamento anual do SUS que gira em torno de R$ 250 bilhões ... isso mesmo ... o orçamento do SUS é maior que o PIB de 20 dos 27 estados do Brasil !
  • Na MP que destina 2 bilhões para compra de vacinas ? ... isso é “fichinha” perto de 250 bilhões;
  • E se alguém se dispor a elogiar o governo por ter destinado 2 bilhões somente para vacina ... lembre-se que os fundos eleitoral e partidário consumiram quase o dobro disso ... o governo entende que partidos políticos merecem muito mais dinheiro do que vacinar a população ! 

Não sei se estarei por aqui para agradecer ao Senhor ao final da pandemia, porque Ele nos deu o livre arbítrio, inclusive para eleger estas pessoas que não se importam conosco ...

... por isso reforço meu agradecimento por ter sobrevivido ... Xô 2020 ... Xô !






Mauro Negrete

Business & Digital Strategy Advisor - Angel Investor

3 a

Parabens pelo artigo Enio Jorge Salu!!! 👏👏👏

Rogerio Nunes

Consultoria e treinamento empresarial

3 a

Enio Jorge Salu Seu artigo segue o seu natural padrão de qualidade, resultado da longa jornada na área de saúde, da especialidade de trabalhar com numeros e estatísticas. Não surpreende a quem leu seu livros e recebe os estudos que realiza sobre a performance da saude no Brasil. Torço para se mantenha com saúde e constribuindo para o desenvolvimento do setor e quando as coisas melhorarem possamos encontrar, tomar um café e fazermos planos para um futuro promissor.

Osmar Volpe

IT Manager (Projects, PMO, SAP, Consulting) & Generalist Manager (Teams, Operations, Services Delivery, Customer Relationships)

3 a

Excelente publicação, caro Enio 👏 Se não dispomos de governantes capacitados em planejamento, de vacina curadora, de mídia imparcial e especializada com indicadores, de povo esclarecido, confiável e obediente pelas determinações para combate, de notícias confiáveis nas redes sociais, e mesmo assim, a imensa maioria da população (vivos menos duzentos mil óbitos) pode comemorar por estar vivinho da Silva ! Me recuso acreditar que somente a sorte foi responsável pela sobrevivência de mais de duzentos e dez milhões de brazucas, onde só a metade dispõe de esgoto e água tratada ! Ou Deus é realmente brasileiro ou ainda há muito por ser aprendido na saúde pública !

Vinícius Ordakowski de Oliveira

Médico - CREMERS 30358. RQE em Neurologia (21936) e Auditoria Médica (44481). Pós-Graduação em Auditoria em Saúde - Albert Einstein.

3 a

Professor Enio, parabéns pelo texto! Não precisamos reinventar a roda - se seguíssemos os regramentos legais e infralegais ["que a lei seja cumprida (que o obrigatório seja obrigatório)"] as coisas andariam bem melhor.

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