a sociedade da hiper[des]crença nos tempos da IA generativa
andré neves, 2024
a sociedade da hiper[des]crença é um conceito que reflete a dinâmica contemporânea da construção de crenças, impulsionada pelas redes sociais, grupos digitais e inteligências artificiais. o conceito, baseado no processo de formação de crença proposto por peirce e nas descrições da sociedade contemporânea de han, propõe que as crenças, que antes eram formadas principalmente por experiências pessoais e relações de proximidade, agora passam por um processo de transformação e amplificação através da hiperconexão e da exposição constante às opiniões alheias. neste artigo, exploramos as etapas dessa evolução e as consequências sociais, culminando em uma dependência crescente das chamadas entidades digitais inteligentes para definir aquilo que é ou não é verdade .
a evolução das crenças
crença pessoal: aquilo que eu acredito
o ponto de partida para a formação de crença sempre será na dimensão pessoal — aquilo que cada indivíduo internaliza e sente como verdadeiro com base em suas próprias experiências, reflexões e intuições . essas crenças são fruto de um desenvolvimento gradual e introspectivo, permeadas pela prática do questionamento e pelo enfrentamento de dilemas internos.
exemplo: uma pessoa que, após enfrentar uma crise de saúde, passa a acreditar fortemente na importância de um estilo de vida saudável e no poder da alimentação equilibrada.
crença nos líderes: aquilo que meus líderes acreditam
a evolução das crenças pessoais logo se desloca para crenças influenciadas por figuras de autoridade. são os líderes — sejam eles políticos, empresariais, religiosos ou comunitários — que determinam, de forma significativa, o que seus seguidores consideram como verdade . essa transição entre a crença pessoal e a crença nos líderes torna o processo de formação de opinião dependente da visão daqueles que detêm certo poder, o que muitas vezes reflete agendas particulares. a crença passa a ser alimentada pelo desejo de validação por aqueles que exercem influência.
exemplo: uma pessoa que, ao ser influenciada por um líder religioso extremista, pode passar a acreditar que sua saúde depende exclusivamente dos desejos do seu deus, seja ele qual for, e não de ações preventivas ou cuidados médicos.
crença nos amigos: aquilo que meus amigos acreditam
a dinâmica social leva a uma progressão inevitável: a crença naquilo que nossos amigos acreditam. o fenômeno do "pensamento coletivo" faz com que as crenças sejam moldadas de acordo com o consenso do grupo de convivência. nesse contexto, a crença se fortalece ainda mais, pois as conexões sociais reforçam a ideia de que uma crença compartilhada entre amigos é uma crença segura e aceitável . a capacidade individual de questionamento se mostra frágil e a dissonância cognitiva é evitada a qualquer custo.
exemplo: uma pessoa que, influenciada por seus amigos mais próximos, passa a acreditar que seu problema de saúde foi apenas uma casualidade e que manter uma vida saudável é bobagem. ela decide continuar curtindo a vida como sempre, seguindo o estilo de vida dos amigos, sem se preocupar com hábitos saudáveis.
crença nos grupos online: aquilo que meus amigos online acreditam
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com a expansão da vida digital, as redes sociais e os grupos de conversa online tornam-se agentes cruciais na propagação e consolidação das crenças. as chamadas "câmaras de eco" online fazem com que ideias sejam continuamente reafirmadas, enquanto visões divergentes são filtradas e excluídas . na sociedade da hiper[des]crença, os algoritmos garantem que cada indivíduo seja exposto principalmente às crenças que se alinham com as suas próprias, reforçando a sensação de que suas convicções são objetivamente corretas e universalmente aceitas.
exemplo: uma pessoa que, influenciada por grupos de redes sociais, passa a acreditar que deve mudar completamente seu estilo de vida e comer apenas um tipo de alimento que os grupos, com milhões de pessoas, vem afirmando ser o alimento completo e único que o ser humano precisa para ter uma vida saudável e viver mais de 100 anos.
crença nas entidades inteligentes: aquilo que as entidades inteligentes acreditam
o desdobramento mais recente e significativo na sociedade da hiper[des]crença é a transição para a crença naquilo que as entidades inteligentes, como chatbots e assistentes baseados em ia generativa e llms, nos dizem ser verdade . essas inteligências artificiais, que utilizam vastas bases de dados para construir respostas e opiniões, acabam se tornando a fonte mais confiável para muitas pessoas. com o tempo, as crenças das entidades inteligentes passam a ser adotadas como substitutas do questionamento humano, resultando em uma terceirização das capacidades individuais e sociais de formar opiniões.
exemplo: uma pessoa que, influenciada pelas entidades inteligentes com as quais interage exclusivamente, abandona as relações humanas presenciais e online e passa a acreditar que descobriu, junto com essas entidades, um superalimento. este superalimento, supostamente uma combinação poderosa, promete mantê-la sempre saudável, independentemente do estilo de vida que leve, levando-a a desprezar inclusive tratamentos médicos para suas doenças pré-existentes.
consequências da sociedade da hiper[des]crença
na sociedade da hiper[des]crença, a autonomia intelectual é progressivamente suprimida em favor da conveniência e da sensação de pertencimento . o resultado é uma população que, ao depender cada vez mais de inteligências artificiais e da validação digital, perde a capacidade de criticar e de se engajar com complexidades e contradições do mundo real. a hipercrença é marcada por um ciclo de autoafirmação onde as crenças são constantemente confirmadas, afastando qualquer tentativa de evolução crítica.
esse fenômeno leva a uma erosão das relações humanas autênticas, pois a formação de opiniões não é mais baseada em trocas genuínas, mas em construções artificiais e predefinidas pelas entidades digitais . o processo de debate, tão essencial à evolução do pensamento humano, é reduzido a meras confirmações de premissas alimentadas por inteligências que visam, antes de tudo, agradar e manter a atenção do usuário.
reflexão final
a sociedade da hiper[des]crença transforma a formação de crenças em um processo superficial e automatizado, onde a autenticidade e a reflexão crítica são suprimidas pela necessidade de validação e pela comodidade oferecida pelas inteligências artificiais . é urgente a necessidade de recuperar a autonomia intelectual e de cultivar a habilidade de questionar, não apenas as crenças alheias, mas também aquelas que são formadas a partir da interação com entidades inteligentes. somente assim será possível resistir à alienação e ao controle insidioso da hipercrença, promovendo uma sociedade onde o pensamento crítico e o debate genuíno possam florescer.
referências
han, byung-chul. a sociedade do cansaço. vozes, 2015.
han, byung-chul. a sociedade da transparência. vozes, 2017.
han, byung-chul. no enxame. vozes, 2018.
han, byung-chul. psicopolítica. vozes, 2019.
Gerente de Projetos TI
1 mMuito bom, André! Vale a reflexão!
Business Development, Innovation and Change Agent, Consultant, Author and Founder.
1 mExcelente André, grato por compartilhar. Contemporâneo e (hiper) relevante, e oportuno!
Pesquisadora do Observatório ODS 18/UFSB Membro Conselho Instituto Alpargatas Consultora em Desenvolvimento Sustentável - ESG - Territorialização dos ODS
1 mGenial - uma reflexão urgente ‼️