Solidariedade e uma nova Farroupilha


Quando acontecem catástrofes em que a natureza atua com maior evidência, o número de vítimas é muito grande e a emoção afeta a sensibilidade de todos nós.

Mas, além dos problemas criados pela catástrofe, temos outros problemas que foram criados pelas pessoas e pelo modelo de organização das sociedades ao longo de sua história.

Desde milênios, as cidades construíram-se nas proximidades dos rios. As enchentes tiveram tanta frequência na trajetória dos povos que diversas religiões as converteram em narrativas em que os povos enxergaram as disposições dos deuses em castigar muitas pessoas e em preservar algumas, segundo as ações destas pessoas em obediência à vontade daqueles deuses. Assim, os povos da mesopotâmia, os hindus, os orientais e judeus, bem como os cristãos, em suas tradições religiosas, possuem suas histórias elaborando, dos acontecimentos trágicos das enchentes, as compreensões sobre os ditames divinos aos quais deveriam obedecer.

Com o fortalecimento da noção de propriedade privada da terra, a obediência aos deuses, no que se refere às terras, deixou de ser uma determinação de conduta individual e política, com a conversão das terras urbanas e rurais em expressão de poder e de riqueza.

As terras mais férteis passaram a ser objeto de cobiça, assim como aquelas melhores situadas, do ponto de vista da trafegabilidade. Neste caso, todos pretendiam estar no centro das áreas em que os maiores contingentes de pessoas seriam obrigadas a passar para deslocarem-se para onde desejassem ir. A conquista da terra, na forma de propriedade privada, motivou muitas guerras, na antiguidade e no mundo medieval, especialmente.

Para conquistarem as terras, todos lançaram-se aos mares.

Notadamente no mundo “ocidental”, desde o mercantilismo, no século XVI, sob liderança portuguesa, espanhola, francesa, inglesa e holandesa, mas depois, de modo ainda mais célere, com o desenvolvimento das novas tecnologias de locomoção, de comunicação e de produção, as terras de todo o mundo passaram a ser consideradas como expressão do poder capitalista, onde quer que estivessem: territórios e povos distantes poderiam ser submetidos à colonização, assegurando mercados tanto para a oferta barata de mão de obra (majoritariamente escrava) e matérias-primas quanto para o consumo dos bens produzidos sob os novos estados nacionais absolutistas e depois, especialmente a partir da Conferência de Berlim, de 1870, dos imperialismos, com regimes coloniais muito rígidos, sobretudo sob o controle inglês, francês, belga, português e estadounidense.

Os efeitos destrutivos dessa travessia das águas em busca das terras foram sentidos em todo o mundo: em termos humanitários, a escravidão negra, com uma diáspora extraordinariamente maior do que qualquer outra de que se tenha conhecimento, foi a maior catástrofe ética, jurídica e política, dizimando as mais fundamentais noções acerca do que seja a dignidade humana. Navegando acorrentados nos navios negreiros, os ex-libertos cruzaram os mares, perdendo suas famílias, seus ancestrais, suas crenças, seus deuses e seus idiomas, para constituírem, proporcionalmente, os maiores contingentes de trabalhadores sem terra e sem quaisquer direitos de todos os tempos, convertidos em bens de acelerada depreciação, dadas as péssimas condições de trabalho e de moradia a que eram submetidos sob os grilhões das fazendas e senzalas do “novo mundo”.

Logo, tão preto quanto os africanos e seus descendentes, o carvão mineral passou a impulsionar os ganhos da produtividade da indústria. E os brancos governantes dos impérios coloniais estabeleceram a concorrência entre os pretos: para a indústria capitalista inglesa avançar, os trabalhadores pretos não podiam continuar fornecendo a mão de obra escrava. Os navios negreiros foram proibidos de cingirem os mares.

Os negros, já em diáspora pelas Américas, deveriam ser libertos, sem que a educação lhes fosse oferecida, sem que políticas habitacionais lhes assegurassem moradias, sem terras para trabalhar, sem direitos trabalhistas. Três séculos e meio de escravidão lhes havia destruído como povo, restando-lhes a solidão e a miséria. Sua única fonte de solidariedade se encontrava nas histórias de rebeldia e desobediência daqueles que haviam sobrevivido às tragédias do seu longo exílio e cotidiano.

Mas, o carvão precisava impulsionar a produção para acelerar a expansão do capitalismo industrial, movido por energia poluente. As fontes hídricas e eólicas, tão conhecidas desde a antiguidade e a idade média, não eram suficientes para a produtividade competitiva dos motores a vapor das indústrias mecânicas do capitalismo.

Assim, o imperialismo do século XIX avançou a industrialização pela queima do carvão e depois, especialmente a partir do começo do século XX, do ouro negro, o petróleo, iniciando o aquecimento global, de que só depois das duas guerras mundiais, os cientistas, envergonhados com as bombas nucleares que ensinaram a produzir, apontaram.

As diásporas dos pobres do mundo se avolumaram. Assim como os negros, os imigrantes, passaram a viajar pelos sete mares, abandonando a pobreza, sobretudo produzida pelas guerras e pelas desavenças dos proprietários de terras. Com exceções, encontraram novos lugares para viver na pobreza, esboçando novos ideais e novos pensamentos, movidos a sentimentos de igualdade e a novas noções de direitos, especialmente em relação ao mundo do trabalho.

Viver na pobreza, almejando viver com dignidade. Mesclar saberes, almejando a liberdade. Ainda que vestindo farrapos, sonhar e construir, todos os povos e etnias, imigrantes, indígenas e negros, a revolução, a solidariedade, a cooperação, construindo res pública na política, para substituir impérios e dominação.

Todo este caldo de cultura movido à rebeldia e revolução com amálgama de igualdade, solidariedade e cooperação depara-se, entretanto, com os descasos do passado, que impõem destruição.

O vapor movido a carvão e o uso exacerbado do petróleo não apenas provocaram inflação e desequilíbrios geopolíticos mundiais, mas também agrediram a natureza, alterando a temperatura em todo o planeta. Sob aquecimento e com a reafirmação da terra como propriedade, subvertendo sua função. as águas e as terras entraram em desarmonia.

E todos sofrem, mas especialmente os farrapos.

A nova Farroupilha dependerá de que muitas propriedades sejam desapropriadas, para que os rios voltem a ter direito aos seus leitos. A solidariedade terá que ser nacional e internacional, para que todos possam rapidamente reconstruir suas vidas.

Novos bairros terão que ser construídos, com melhor proveito do solo urbano. Ao invés de casas térreas, edifícios com poucos andares, usando-se menos do espaço das terras, aproveitando-se mais das energias renováveis. Os comércios terão que mudar de lugar, protegendo a oferta dos bens de consumo essenciais, como plano de contingência para situações adversas.

As cidades terão que se repensar, desde agora, sob nova ótica: proteger mais as pessoas, todas, independentemente de suas rendas; proteger os bens e serviços essenciais. Proteger as vidas, os pobres, respeitar o meio ambiente.


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