A Terra sem água: iremos sobreviver?
Sobre isso e para onde vamos com o consumo atual de água no Planeta conversei com Everton de Oliveira. Ele é formado em geologia pela USP, doutor em hidrogeologia pela Universidade Waterloo do Canadá, sócio-fundador da Hidroplan, diretor-presidente do Instituto Água Sustentável, diretor-fundador do Groundwater Project, foi professor da USP, da UNESP, da Waterloo e atualmente é secretário-executivo da Associação Brasileira de Águas Subterrâneas, do qual ele já foi presidente.
Lorë Kotínski - A gente consegue viver sem água? Por que ela é essencial para a gente?
Everton de Oliveira – A água é essencial à vida, nós não conseguimos viver sem água, a gente consegue viver comendo pouco ou sem comer, a gente consegue ficar mais de uma semana passando mal, às vezes até um mês, mas sem água a gente não consegue ficar mais do que alguns poucos dias. A água é muito, muito importante, tanto que quando a gente vai procurar por vida em outros planetas, a gente não procura por vida, a gente procura por água.
Por quê? Porque água é a condição essencial para qualquer ser vivente, quer seja ele ser ser humano, animais ou vegetais. Então todos eles precisam de água para viver. Logo, ela é essencial à vida, sem ela eu não estaria conversando com você aqui, não teria nenhum ouvinte, não existiria nada nesse mundo.
LK - Agora eu te pergunto, para onde é que a gente vai com isso?
EL - O Brasil é, dentre os países do mundo, o Brasil é o país que tem a maior quantidade de água doce disponível. Nós temos 12% de toda a água doce disponível, água doce líquida disponível no planeta, está aqui nos continentes. Claro, sem contar a carota polar. Então o Brasil é um país, de fato, abençoado por Deus, como dizia a música, e bonito por natureza. Então a gente tem essa condição que é muito diferente de vários países da África. A África é uma faixa muito grande, dominada por desertos, então ela sofre muito mais do que a gente.
O Brasil tem, claro, uma distribuição de água desigual. A gente tem a região Amazônica, que é uma quantidade de água absurda, então grande parte da porcentagem de água do Brasil está na região norte, principalmente ligada à área da Amazônia, e a gente tem uma região com muito menos água, que é a região da Caatinga, do Nordeste, que tem uma dificuldade maior. Entretanto, para a gente ter essa disponibilidade de água, a gente precisa ter um equilíbrio ecológico importante. E o equilíbrio ecológico, quando a gente fala de ecologia, a gente está se referindo principalmente à vida. E como a gente viu na sua primeira pergunta, a vida está ligada à água.
Se nós não cuidarmos da água, a gente não vai ter a condição ecológica adequada, porque a gente não vai ter como manter a vida. Logo, para a gente ter essa condição, a gente precisa manter a floresta para água, como já foi descrito, como os rios voadores que chegam aqui para a região Centro-Oeste, Sudeste, é água que vem da Amazônia, não é só água que vem por evaporação do mar, ela vem principalmente da Amazônia. Então nós temos que cuidar disso.
Além disso, além dos rios voadores, a gente também tem água sob os nossos pés, água subterrânea, água dos aquifers. Ela também é uma água que flui e é uma água que nos ajuda a manter a vida quando não tem chuva. Então, mesmo que não tenha chuva, a gente tem água armazenada nos aquifers, que é o que funciona para a manutenção das plantações, manutenção da vida.
Muita água que a gente usa no dia a dia, sem as pessoas saberem, vem de poços. Então, essa seca, ela precisa ser manuseada de forma que a gente não acabe com a água que a gente tem armazenada no aquifer. A gente tem que fazer um balanço, um equilíbrio muito bem pensado para que isso funcione.
LK – O que dá para fazer para que a gente consiga manejar essa água para ela não se esgotar?
EL - Essa é uma das missões do Instituto Água Sustentável, ajudar as pessoas a entenderem melhor como funciona a água no planeta. Eu tenho um vídeo, se vocês olharem lá, chama Bebendo com Dinossauros, que diz o seguinte: já imaginou você bebendo uma água gelada junto com um dinossauro de verdade? É impossível.
Entretanto, a água que você está bebendo hoje é a mesma água que um dia o dinossauro já bebeu. Porque a água do planeta é a mesma desde o seu início. Há 4,5 bilhões de anos é sempre a mesma água que está circulando no ciclo da água. Então ela se renova, mas é sempre a mesma água. Porque ela evapora, chove, volta, evapora, num ciclo infinito. Então nós estamos bebendo a mesma água.
Então a nossa condição é que a gente não altere significativamente esse ciclo. Então, por exemplo, se nós cortarmos as árvores, nós estamos cortando evaporação. Vai ter menos chuva, vai ter muito mais seca. Se a gente deixa o solo nu, por exemplo. O solo nu também, você diminui a superfície da evaporação, porque as plantas mandam muita água para a atmosfera também. Então você vai diminuir.
Então tem várias atividades que a gente tem que tomar cuidado. Quando você pega, por exemplo, uma cidade. Uma cidade as pessoas em geral não gostam de árvores, não gostam de plantas. Por quê? Porque planta dá trabalho, cai folha, você tem que limpar. Mas as plantas numa cidade ajudariam a melhorar a temperatura. Quando você vai em Belém, por exemplo, ou mesmo em Manaus, você vê ruas armorizadas, por quê? Porque elas ajudam a proteger do calor.
Então quando você tem um calor excessivo, a necessidade de árvore parece mais fácil de entender. Mas em cidades como São Paulo, que você só vê concreto para todo lado, você diminui muito a evaporação. E aí você também diminui a situação, você aumenta a temperatura local.
Então, atitudes como essa ajudam muito a melhorar a condição. A mesma coisa, se você tem toda a superfície da cidade impermeabilizada, a água corre rapidamente para o rio e ela não infiltra no solo, mantendo aquela umidade que depois pode ajudar a evaporar. Então você tem que ajudar a água a infiltrar, manter mais vegetação, fazer com que a sua vida seja mais integrada à natureza.
LK - Então a questão da falta de água no planeta, essas secas extremas, elas estão diretamente ligadas a como a gente vem habitando esse planeta e como a gente vem utilizando esse lugar que a gente chama de casa?
EL - Exatamente. E aí a minha questão é o seguinte, você acredita diante disso? Já que claramente na sua resposta, a falta de água é consequência de como a gente age no planeta. Você acha que a gente está no limite de que governos, empresários, sociedade civil, cidadão comum passem a pensar as cidades e a remodelar as cidades imediatamente para que a gente consiga frear esse aquecimento ou frear esse desmatamento e evitar mais secas e mais secas? A gente está sim em alguns lugares.
Como o nosso planeta é desigual, você tem situações diferenciadas, a gente tem vários lugares sim que a gente passou desse limite. Alguns lugares que a gente ainda não passou, vários lugares que a gente está exatamente no limite. Mas como a gente tem muitos e muitos lugares, a gente precisa sim agir.
Eu vou dar um exemplo que as pessoas em geral não sabem. Eu vou dar um exemplo que é bem significativo. Se você pegar a Índia, a Índia é um país que usa muita água subterrânea, muita água de poço, é o país que mais usa água subterrânea no mundo. Eles sozinhos extraem um terço de toda a água que o mundo usa, a água subterrânea. A Índia foi uma das responsáveis pela alteração do eixo, da inclinação do eixo da terra. Por quê? Porque tirou a água.
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Então a pergunta que eu faço para todos, quando você tira a água do solo, você usa e você lança no rio, o que acontece? Se você lançar água no rio, ela não tem a mesma superfície para ela evaporar e voltar a chover e aí ela voltar de onde ela veio, para os aquíferos. Ela vai rapidamente para os oceanos. Então uma elevação significativa dos oceanos é pela transferência de água dos continentes para o mar.
É isso que está acontecendo. Então nós estamos sim secando os continentes. Nós estamos tirando água continuamente e a gente tem lançado sem fazer questão de que ela volte de onde ela veio. Então ela tem que infiltrar no solo em quantidade suficiente para repor o que nós estamos usando. Essa é uma informação extremamente assustadora que as pessoas não sabem. Assustadora.
LK - É assustadora e assim, fico pensando que a Índia faz parte dos BRICS, é hoje uma potência econômica produtiva, também é um dos países que mais tem poluição nos rios e ninguém faz nada?
EL - Ao invés de 200 milhões, nós fôssemos 1 bilhão e 200 mil habitantes. A gente também teria problemas tão gritantes quanto a Índia, porque a gente é um país rico, mas a gente tem uma população menor. Ainda que a nossa população seja grande, é incomparável, a Índia é o país mais populoso do mundo.
Então ela precisa, sim, de muito mais recursos para poder fazer com que a população melhore a qualidade de vida. Entretanto, isso é uma informação importante, que não é só para a Índia, é para o mundo inteiro. Todos nós, como ser humano, nós queremos que os outros seres humanos também tenham uma vida decente e com a qualidade de vida elevada.
Quando você eleva a qualidade de vida das pessoas, aumenta o consumo de água significativamente. Então, para a gente melhorar a qualidade de vida das pessoas, nós temos que melhorar a forma de uso de água, melhorar reuso, melhorar armazenamento, melhorar tudo. Senão nós não vamos ter a melhor qualidade de vida das pessoas.
LK - Como é que a gente pode utilizar os recursos hídricos que a gente tem, Brasil e mundo, de forma sustentável?
EL - Bom, para não parecer que a gente está só crucificando a situação da Índia, só deixa eu deixar claro. O nosso rio Tietê é morto aqui em São Paulo. A gente tem vários rios mortos, não na extensão inteira do rio, mas em vários locais do Brasil a gente tem rios mortos porque a gente não tem tratamento de esgoto. O lançamento é direto nos rios. Então, a gente também tem uma condição extremamente deplorável em que nós precisamos melhorar. Também é uma vergonha.
Agora, o que nós precisamos fazer? A solução para os recursos hídricos é uma solução extremamente variada. Por quê? Porque nós temos que considerar cada situação local para a gente poder fazer o melhor dentro do possível. Então, uma das situações que nós temos... Eu falo bastante de água subterrânea e as pessoas falam por que ele fala tanto? Vou só explicar por quê. 98% de toda água doce líquida disponível nos continentes é subterrânea. 98%. A gente só pensa em ir.
LK - É quase a maioria absoluta, né? Exatamente, a maioria absoluta. Logo, se nós não preservarmos esses reservatórios, nós não vamos ter futuro. Então, a gente precisa fazer o quê?
EL - Isso, hoje, a economia não paga. Imagina quem tem essa consciência vai pegar água limpa e infiltrar no solo ao invés de usar. Você vai usar, você vai tentar usar essa água. Então, você tem que aumentar a quantidade de infiltração. A gente tem que aumentar o reuso de água. Hoje, você usa a água limpa, porque é muito caro fazer uma rede de água separada.
A gente usa a água limpa, por exemplo, para lavar as plantas, para lavar uma calçada. Mas ela não precisaria ser a mesma água que eu bebo. Ela não precisa ser dessa mesma qualidade. Ela pode ter uma qualidade inferior. A água de reuso, por exemplo. Então, eu teria que ter formas muito melhores de reuso.
Para quê? Para que uma água que eu usei, água de qualidade para beber, não precisa ser essa água para tudo. Claro, para a higiene, banho, tem que ser a melhor. Mas, além disso, nem toda água precisa.
Então, a gente precisa começar a fazer esses balanços para que a gente saiba qual é o equilíbrio, o que eu posso usar a melhor água para isso, a água mais nobre, a água menos nobre, a água de uma qualidade inferior. E, com isso, a gente começar a entrar na economia.
LK – Então a gente precisa ter uma consciência coletiva, virar hábito.
EL - Por exemplo, quem tem piscina em casa? Quem tem poço artesiano em casa? Para onde vai a água, por exemplo, da pia da cozinha, da pia do banheiro? Isso é muito difícil de fazer. Uma das soluções que são super difíceis das pessoas aceitarem, uma possibilidade é a seguinte, é criar um crédito de água como a gente tem crédito de carbono. Então, por exemplo, se você pega uma água, e você pega uma água limpa, e você degrada essa água, você tem que compensar por quem está limpando a água, por exemplo.
Ou você tira a água do aquífero do seu poço, você compensa para quem coloca a água no aquífero. Se você impermeabiliza uma superfície, você evita a transpiração, você compensa com alguém que colocou a árvore e está aumentando a transpiração. Então, você passaria a ter um sistema de créditos, ou as pessoas, economicamente, estariam incentivadas a fazer ações benéficas para a manutenção da água no planeta.
Imagina você quando vai fazer uma ligação de telefone internacional, ou se você vai usar o telefone fora de onde você está, você pensa dez vezes por quê? Porque você sabe que a conta vai aumentar, que vai doer no seu bolso. A água não dói. Você abriu uma torneira e o valor da água é muito baixo ainda.
Então, você não tem uma relação de dor no bolso, que é a parte mais sensível do corpo humano. Claro, não vamos começar cobrando do mais pobre, não faz sentido, mas que também é quem menos usa água. Mas a gente pode começar fazendo um sistema entre grandes usuários, depois ir chegando para outras. Tem formas de a gente adaptar isso e conseguir melhorar o uso.
Várias indústrias no mundo, várias grandes empresas, já estão começando a se preparar para uma possibilidade dessa, porque é algo que está começando a ficar incontornável.