A tradução automática ameaça os tradutores?
[Reprodução do Capítulo 9 do meu livro "Guia do tradutor: melhores práticas", guia da carreira de tradutor publicado em 2013 e estruturado na forma de 82 perguntas e respostas sobre aspectos da tradução profissional]
Sem dúvida, um dos grandes temas do mercado de tradução nos últimos anos tem sido a crescente popularidade da chamada “tradução automática” – tanto entre os consumidores de tradução como entre os próprios profissionais do ramo. Mas a assimilação dessa tecnologia entre os profissionais não tem sido livre de percalços. A tradução automática é vista por muitos como uma ameaça a sua subsistência e como forma de pressionar uma baixa de preços às custas da qualidade. Tudo isso, em certa medida, é verdade, mas a ameaça cai mesmo sobre os tradutores mal preparados, não especializados e, portanto, substituíveis, que podem ser usados como simples instrumentos no esquema industrial das grandes empresas de tradução. Estes, sim, serão e já são vítimas da tradução automática e têm muito a temer.
Antes de ser uma ameaça, porém, a tradução automática é um produto tecnológico como tantos que existem em muitos outros ramos profissionais e, como tal, atrai os curiosos e espanta os mais amedrontados. A título de comparação, no início da década de 2000, a tecnologia da memória de tradução era coisa absolutamente “esotérica”, enquanto hoje elas são extremamente difundidas entre quase todos os segmentos do mercado de tradução, exigidas por muitas empresas e usadas pelos profissionais mesmo quando elas não lhes são exigidas. Os bons profissionais que atuavam naquela época e souberam perceber o valor dessa tecnologia investiram em reciclagem tecnológica e não ficaram sem trabalho. Pelo contrário, muitos hoje podem aceitar trabalhos maiores no mesmo tempo de antes porque o uso da memória de tradução ajuda no reaproveitamento de conteúdos já traduzidos e no controle de qualidade. Além disso, vale ressaltar também que, segundo certa corrente no mercado de tradução, a tecnologia da memória de tradução (TM, de translation memory) nada mais é do que um elemento menos desenvolvido da tecnologia da tradução automática (MT, de machine translation), porque, no fundo, as duas funcionam segundo o mesmo princípio de “montar” novas traduções com base em traduções já feitas.
Pelo menos em seu estágio atual de desenvolvimento, a tradução automática não é motivo para alarmes, nem temores. Abaixo estão alguns exemplos de uso da tradução automática hoje e suas vantagens e desvantagens em diferentes cenários.
Tipos de textos mais traduzidos automaticamente
Os tipos de textos que atualmente são submetidos à tradução automática ainda são bem restritos. O campo de aplicação principal dessa tecnologia sempre foi a tradução técnica. Primeiro devido à natureza linguística desses textos (escrita árida e pragmática para descrever processos padronizados, sem muito espaço para subjetivismo). E também pela disposição de espírito das pessoas dessa área para lidar com “textos montados automaticamente”; para os entusiastas da tradução automática, a palavra forte dessa expressão é “automática” e não “tradução”. Hoje em dia, as especificações técnicas são escritas especialmente para serem traduzidas em vários idiomas e os autores desses textos são treinados para escrever de forma padronizada. Isso se chama “linguagem controlada”, elemento crucial do sucesso da tradução automática.
Qualquer outro tipo de texto com linguagem controlada pode ser submetido à tradução automática com relativo grau de sucesso, inclusive certos textos jurídicos (desde que não contenham aquele linguajar típico dos bacharéis em direito brasileiros, que tentam incluir em seus escritos formulações arcaicas e malabarismos linguísticos com o objetivo de impressionar os outros e/ou aumentar a quantidade de laudas), documentos financeiros e escritos científicos em geral. Embora a tradução automática possa também produzir bons resultados em textos não especializados com linguagem simples (exemplos: livros de autoajuda e noticiário jornalístico), a chave principal do sucesso é a padronização da linguagem. Sem padronização – como no caso dos textos de natureza literária ou lírica e textos de linguagem mais rebuscada e inventiva – essa tecnologia mostra suas deficiências com maior clareza. Pelo menos por enquanto.
Para o tradutor profissional preocupado em sobreviver no mercado, essa restrição da tradução automática a determinados tipos de textos significa que o profissional deve decidir qual é o papel que ele pretende assumir no futuro. Para os que trabalham justamente nas áreas afetadas, uma opção é atuar como “pós-editor” de textos traduzidos automaticamente – claro que por uma fração do preço que se paga por traduções humanas feitas a partir do zero. Para ser pós-editor, é preciso ser bom revisor e ter boa produtividade em revisão de textos. Alguns tradutores dizem, inclusive, que revisar traduções automáticas é muito mais fácil do que revisar traduções humanas. Mas essas duas atividades têm uma grande diferença. Uma característica do perfil ideal do pós-editor enfatizada por muitas empresas é não querer embelezar a tradução automática para torná-la parecida com uma tradução humana. Segundo essas empresas, o público leitor de traduções automáticas não espera o mesmo grau de qualidade que se espera de traduções humanas e, portanto, permite-se que as traduções soem um pouco estranhas contanto que façam “sentido geral”. Essa visão de qualidade é enfatizada muito claramente em palestras dos maiores defensores (teóricos e praticantes) da tradução automática, mas não é unanimidade; por isso, o pós-editor deve esclarecer de antemão com seu contratante quais são os requisitos de qualidade e expectativas das traduções automáticas a serem pós-editadas.
Para o tradutor que trabalha nas áreas afetadas e que não tem interesse em atuar como pós-editor de traduções automáticas, só há uma opção: aperfeiçoamento de suas habilidades, especialização cada vez maior e investimento em marketing. Para profissionais com esse perfil, é crucial mostrar ao cliente o valor de uma tradução feita por um tradutor humano altamente capacitado e comprometido com a profissão. Isso, claro, se o profissional for mesmo bom e se sua qualidade for aparente. Caso contrário, o cliente não pensará duas vezes em substituí-lo por outro mais disposto a assumir “novos desafios”, como se diz no linguajar empresarial.
Tradução meramente informativa x tradução definitiva
Além da natureza dos tipos de textos que se prestam à tradução automática, há outro elemento que define claramente o campo de aplicação dessa tecnologia: o objetivo. Acima foi mencionado que os contratantes de pós-editores, de um modo geral, partem do princípio de que o nível de qualidade de uma tradução automática pós-editada não precisa ser tão alto quanto o de traduções humanas. Note-se que essa definição de qualidade saiu de dentro do próprio mercado de tradução. Fora do mercado de tradução – por exemplo, entre a população leiga que nunca comprou e talvez nunca vai comprar uma tradução – o nível de qualidade pouco importa, porque as pessoas só querem mesmo se informar “por alto” sobre o conteúdo do texto escrito em outro idioma. Para essas pessoas, a tradução é meramente informativa, pronta para ser descartada assim que o usuário obtiver o dado do qual estava à procura. Nesse tipo de situação, o Google Tradutor dá conta perfeitamente do recado e não há por que o usuário contratar um tradutor humano.
O Google Tradutor continuará dando conta do recado para esse usuário até o momento em que este precisar ler a tradução de um livro estrangeiro, contratar a tradução juramentada de seus documentos escolares para poder estudar no exterior ou precisar da tradução de um contrato de licenciamento entre sua empresa e uma empresa estrangeira. Nessas situações, a tradução deixou de ser informativa e passou a ser definitiva, que é feita para ser lida, publicada, distribuída, consumida por determinado público mais exigente e não necessariamente descartada após a leitura. Aqui a tradução do Google Tradutor não é suficiente, e isso o usuário percebe em questão de segundos.
Para o tradutor, essa diferenciação entre tradução meramente informativa e tradução definitiva é uma informação fundamental que o ajudará a se posicionar no mercado. O profissional que não se diferencia oferecendo serviços valorizados como altamente especializados e/ou criativos corre o risco de concorrer com o Google Tradutor.
Tradução automática em pesquisa de terminologia
Um dos usos especializados da tradução automática que pode trazer claros benefícios para tradutores é na pesquisa de terminologia bilíngue. Os bancos de dados que alimentam as traduções automáticas nada mais são do que traduções (de frases, segmentos, expressões) feitas anteriormente por seres humanos. São, portanto, um grande corpus paralelo. Então, em vez de se usar a tradução automática para traduzir textos inteiros, pode-se usar essa tecnologia para buscar traduções para determinadas expressões, especializadas ou não. Não expressões isoladas, mas sim partes de uma frase. Muitas vezes, é importante enviar a frase inteira ao sistema de tradução automática para se obter a tradução adequada de uma expressão, pois os sistemas analisam também as palavras que se encontram antes e depois da expressão desejada; se você digitar apenas a expressão desejada provavelmente obterá uma tradução ao pé da letra e ruim.
A questão do sigilo profissional
Por fim, há que se levar em consideração a questão do sigilo profissional do processo de tradução automática. Diversos sistemas de tradução automática funcionam com base em dados localizados em diversas fontes, mas sem dúvida os mais populares são os que recorrem a bancos de dados de traduções localizados em servidores externos, acessados pela internet. As ferramentas CAT hoje se esforçam em oferecer integração com esses sistemas de tradução automática externos, tais como Google e DeepL. Para ter acesso à tradução automática, o usuário deve enviar o texto aos servidores desses sistemas. E é aí que começam os problemas éticos. Se o cliente lhe deu um contrato ou até mesmo uma carta simples para traduzir e você traduzir esse material usando um sistema de tradução automática, você estará enviando informações do cliente a esses sistemas. Isso, obviamente, tem implicações jurídicas para você, tradutor, que estará violando o acordo implícito ou explícito de sigilo profissional com seu cliente. Cientes desse problema, algumas agências de tradução mais sérias pedem especificamente que os tradutores freelancers não usem sistemas de tradução automática e respeitem o contrato de confidencialidade celebrado entre a agência e o tradutor ao iniciarem a parceria. Vale lembrar que quando o usuário acessa os sistemas de tradução automática, os textos em geral não são enviados integralmente a esses sistemas, mas sim em partes (segmentos), mas isso não elimina a séria violação de sigilo profissional, pois mesmo segmentos isolados podem conter informações do cliente, podendo, além disso, ser reunidos posteriormente pelo sistema. Isso torna a tradução automática uma tecnologia altamente arriscada para tradutores profissionais, que devem pensar duas ou três vezes antes de aplicar essa tecnologia em sua atividade cotidiana.
Fabio Said (www.linguabrasilis.de)
[O livro "Guia do tradutor: melhores práticas" está à venda apenas como e-book nas lojas Amazon pelo mundo afora]