Transição de carreira: psicanalista, mas não só
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Transição de carreira: psicanalista, mas não só

No último post falei sobre a tal da coragem de fazer uma transição de carreira e como ela foi, pelo menos no meu caso, possibilitada por uma série de privilégios. Hoje, falo um pouco sobre a psicanálise, uma das minhas ocupações atuais. 

COMO ME ENCONTREI COM A PSICANÁLISE

No início dos meus 20 anos de idade, procurei terapia com uma psicóloga que me acompanhou por um período razoável. Entre as idas e vindas como sua paciente, crescia uma curiosidade grande sobre os estudos da mente e do comportamento.

Esse tipo de interesse de pacientes é comum e justificado pela sua própria experiência com os resultados de uma terapia. Me lembro inclusive de comentar com a Susi, a terapeuta da época, que estava pensando em uma segunda graduação.  

A faculdade de psicologia já havia passado despretensiosamente pela minha cabeça quando eu era adolescente, assim como letras, jornalismo, relações internacionais e provavelmente outras que caíram pelo caminho. 

Optei pela administração por dois motivos objetivos. Primeiro, não saber fazer uma escolha e, logo em seguida, escolher o que parecia mais seguro na ótica do mercado. 

Me envolvi nas áreas financeiras logo no início da faculdade e nunca me senti realmente engajada. Então, uma mudança de carreira era algo que eu vislumbrava mas sem colocar esforços. 

Há alguns anos, numa conversa com uma amiga, soube que a psicanálise não era uma área da psicologia mas uma corrente teórica e prática independente dela. Fiquei encantadíssima com essa descoberta e desse dia em diante comecei a saga de me informar sobre a formação. 

O OFÍCIO PSICANALÍTICO

Na psicanálise, não há diploma ou certificado que permita o então estudante a atuar e, por exemplo, abrir uma clínica - embora existam muitas “escolas” que prometem isso ao fim de um curso. 

Ela é uma ocupação e não uma profissão. Dizemos que o psicanalista autoriza-se a si mesmo e esta afirmação talvez seja uma das mais complexas para quem está neste percurso. 

A jornada em psicanálise é livre e calcada em um tripé: análise pessoal, estudo teórico e supervisão clínica. Existem escolas muito sérias que transmitem a psicanálise de forma ética, mas nada impede que alguém faça uma formação autogerida, independente. 

De um modo ou de outro, a formação não acaba quando um curso termina. Sabe aquilo que ouvimos na faculdade, de que um bom profissional nunca deve deixar de estudar e se atualizar? No caso da psicanálise, isso é literal. 

O percurso de um psicanalista só termina quando o próprio chegar ao fim da vida. Pelo menos deveria ser assim. Esse é um princípio ético. Não há como trabalhar com o psiquismo humano, em uma clínica, se estivermos engessados no passado. 

O ofício psicanalítico começa, portanto, na certeza de que nunca estaremos prontos, pois nos preparamos a cada paciente - ou analisante - que chega, a cada nova teoria apreendida, a cada novo desafio clínico em que temos que abandonar tudo que achávamos que sabíamos, a cada onda de mudança social. 

É, antes de mais nada, uma função artesanal e por isso muitos de nós (estou certa de que a maioria) não acredita em uma profissionalização da área.

No meu caso, concluí a formação em uma escola e sigo estudando (sozinha ou em grupos de estudos), frequentando palestras e eventos. Sigo também deitada eu mesma no divã, em análise há alguns anos e, tão importante nesses primeiros anos da clínica, em constante supervisão com um analista muito mais experiente. 

O COMEÇO DA CLÍNICA

Deixei o emprego formal, entre outros motivos, para me dedicar ao estudo e à clínica de psicanálise. Talvez, para a grande maioria de ex-colegas, é isso “só” o que faço hoje. Não é incomum, quando encontro pessoas, ser imediatamente perguntada sobre como estão os atendimentos. 

Sempre fico pensando o que esperam como resposta. “Uma maravilha, agenda cheia” ou “Não deu certo, não era o que eu pensava que seria”. Entre as duas possibilidades, fico com a verdade e respondo, geralmente, que “a clínica vai devagar, como deve ser.” 

Um exercício clínico não é, ou não deveria ser, visto e praticado como um trabalho de oito horas diárias, de carteira assinada, ponto batido. 

Estar na função de analista exige cuidado próprio (com constantes auto avaliação como “será que há estrutura para lidar com a subjetividade de tantos outros de uma só vez?”)  e com aqueles que se propõe a análise esperando por uma cuca fresca e experimentada à sua frente. 

Uma questão de respeito e visão da realidade. 

Além disso tudo, que espécie de milagre é necessário para que um psicanalista iniciante - ou que está engatinhando, como ouvi uma colega dizer uma vez - tenha alta procura sem ter uma trajetória elaborada e aos poucos, reconhecida? 

Sobre a pergunta comumente feita e a resposta geralmente dada, eu ainda complementaria assim: “a clínica vai devagar, como deve ser, porque para que ela se construa, eu mesma preciso me reconstruir repetidas vezes” 

Portanto, é de se imaginar que esta não é uma função financeiramente sustentável nos seus primeiros anos para muitos psicanalistas. E aí vem a questão a preocupação: 

o que eu vou fazer? 

O TRABALHO HOJE

Eu sabia que, deixando um emprego CLT, me veria desafiada a encontrar outra fonte de renda. Como eu separei uma grana para arcar com minhas contas nos meses seguintes à demissão, teria tempo para achar outra atividade. 

Pensei em várias alternativas que pareciam impossíveis antes. Ser livreira, atendente de consultório, vender pão caseiro, dar aulas de escrita criativa. Ou mesmo voltar para o mercado corporativo em outra área, como a de impacto social, que muito me interessa.

Tinha convicções, na verdade, a respeito de onde eu não queria mais estar, mas não deixei de cogitar essa hipótese caso fosse ou venha a ser necessário. Vestir a humildade e bater à porta de antigos empregadores. 

O que mudou em mim, na verdade, foi minha visão sobre o trabalho em si. Antes, e por muito tempo, o colocava apenas como fonte de sustento financeiro e não me permitia  extrair dele outras satisfações. 

Aí, quando me deparei com a psicanálise e sua função-ofício-artesanal, pude perceber que o que eu prezo hoje, é o trabalho em seu formato mais simples, mais próximo às pessoas e onde eu possa, de fato, me engajar. Mesmo que eu esteja diante das telas. 

Dentro desta perspectiva, conheci o conteúdo de algumas pessoas que falam sobre multipotencialidade, como a Cris Guerra em seu podcast, o 50 Crises. Descobri que eu posso ser e fazer muitas coisas diferentes. 

Este novo conhecimento me abriu as portas para novos sonhos e possibilidades com os quais ainda estou me encontrando e, sem dúvida, onde ainda estou me perdendo. 

Quando criança, brincava muito sozinha (olha aí a autonomia!) e imaginava mil cenários e histórias para encenar. Frequentemente, dizia para mim mesma antes da brincadeira inventada:  “hoje eu tenho todos os nomes e profissões do mundo”, porque eu não conseguia não queria, escolher entre uma opção e outra. 

Somos educados e incentivados a escolher uma única estrada. Mas será que somos assim, tão limitados, em nossa constituição natural? 

Essa perspectiva menos dura me leva a um resgate infantil. As crianças não se restringem como nós, pessoas adultas. Elas convivem muito melhor com a variedade de sonhos que povoam suas mentes. 

O que, inclusive, as faz criativas e em constante movimento.  

Ano passado, quando fui preencher pela primeira vez uma ficha de cadastro com minha profissão, travei. Agora, mais íntima dessa história de multipotencialidade, disponho de uma variedade. Psicanalista, escritora, administradora, autônoma, dona de casa, estudante, artesã, freelancer, o que mais vier. 

Inclusive, à sua disposição! 


Karoline Ferreira

Psicanalista Clínica | Pedagoga

1 a

O texto já tem 1 ano. Eu li e toda a escrita é tão presente hoje na minha vida. Obrigada por esse texto Thaissa Silva .

Importante destacar o "ofício" de ser psicanalista! Está acompanhando a treta que está surgindo com um curso de "bacharelado em psicanálise" oferecido pela UNINTER? Reafirmar a singularidade da formação do psicanalista nunca foi tão urgente!!!

Juliana Gomes de Oliveira

Analista de Monitoramento de Crédito Senior

2 a

Sensacional, parabéns pela coragem de seguir o chamado! Muita honra em saber disso, Tha! Você vai longe…

Sirley S.

Communications Advisor | Internal Communications Specialist | Employer Branding | Marketing & Communication Specialist

2 a

Sou muito fã secreta sua! Não perco um artigo e faria parte da sua turma de escrita criativa.

Ana Beatriz Passos

Gerente comercial sênior no Rabobank

2 a

Parabéns pelo percurso.

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