Tributação das Grandes Fortunas no Âmbito da Reforma Tributária de 2020

Tributação das Grandes Fortunas no Âmbito da Reforma Tributária de 2020

A função distributiva na tributação tem se tornado cada vez mais relevante em um contexto de aumento da desigualdade da renda e riqueza no mundo, e da excessiva tributação dos salários e do consumo dos trabalhadores, em oposição a baixa tributação do patrimônio e das rendas de capital. Os economistas E. Saez e G. Zucman da Universidade de Berkeley estimam que o percentual do estoque de riqueza possuída pelos 0,1% americanos mais ricos aumentou de 10% no início da década de 1970 para 20% na década de 2010. Ciente desse problema, o plano de governo de dois pré-candidatos do Partido Democrata nas eleições americanas de 2020, Elizabeth Warren e Bernie Sanders previam a instituição de um Wealth Tax nos Estados Unidos. A proposta de Warren consistia numa alíquota de 2% para a riqueza global dos cidadãos americanos que excedesse 50 milhões de dólares e 6% no que excedesse 1 bilhão. Além disso, era previsto um "Imposto de Saída" de 40% para cidadãos com fortuna superior a 50 milhões que renunciassem sua cidadania.

O Imposto sobre Grandes Fortunas - IGF, está previsto no art. 153, VII, da Constituição Federal de 1988, mas necessita de regulamentação por meio de Lei Complementar Federal. Isto traria maior justiça ao nosso sistema tributário, com pouco impacto no setor produtivo, afetando no máximo 40.000 famílias (0,16% dos declarantes mais ricos do Imposto de Renda). Por três vezes houve votações no parlamento para regulamentá-lo. A primeira, por iniciativa do presidente Fernando Henrique Cardoso, foi aprovada no Senado Federal em 1989 (PLP 202-B/1989), mas rejeitada em votação na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara em 2000. A última votação ocorreu através de projeto do Senador Paulo Paim (PLS 128/2008), sendo rejeitada já na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado em 2010. O argumento dos congressistas para as duas rejeições foi basicamente o mesmo: alto custo administrativo e baixo potencial arrecadatório.

Na realidade todos os países da Europa Ocidental adotam ou já adotaram um imposto sobre a riqueza, com exceção da Irlanda, Portugal e Reino Unido. A partir de 1994, seguindo a agenda dos governos neoliberais que ganharam as eleições europeias, ele foi extinto na Áustria (1994), Dinamarca e Alemanha (1997), Islândia (2005), Finlândia (2006), Suécia (2007), Espanha (entre 2008 e 2010), Grécia (2009) e França (2017). Ele ainda foi reformulado para fazer parte do imposto de renda na Holanda (2001) e restrito apenas a imóveis na França (2018). Devido as crises fiscais a partir de 2009, o imposto foi introduzido sobre ativos financeiros na Itália (2014) e na Bélgica (2018), reintroduzido de forma permanente na Espanha (2011) e temporariamente na Islândia (2010-2014). Luxemburgo apenas tributa o patrimônio das empresas, mas Noruega e Suíça nunca aboliram seus impostos locais sobre a riqueza. Na Espanha, apesar da alíquota majorada na Catalunha, o seu desempenho só não é melhor porque ele não é cobrado em Madri. Fora da Europa, ele existe apenas no Uruguai, Argentina e Colômbia (nestes dois últimos países, sua extinção acabou sendo cancelada em 2018 devido às crises fiscais). A tabela a seguir mostra um panorama do IGF a nível mundial no ano de 2019.

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Há um debate mundial para (re)introduzir a tributação da fortuna nos países. O custo administrativo e a probabilidade evasão fiscal foram significativamente reduzidos com a informatização da administração tributária, o baixo número de contribuintes, e o aprimoramento do sistema de informações fornecidos pelas entidades financeiras e pelos governos e instituições internacionais. Legislações adicionais podem tornar ainda mais difícil a evasão do imposto e a "tão temida" fuga de capitais. Conforme tabela acima, países como Noruega, Holanda e principalmente a Suíça tem arrecadações significativas com o imposto atualmente, embora os indicadores de Luxemburgo e Uruguai também sejam altos devido a tributação da pessoa jurídica. Historicamente, há vários exemplos de arrecadação significativa (em percentual do PIB), como por exemplo na Alemanha e Áustria (0,5% em 1982), Argentina (0,6% em 1989), França (0,5% em 1992), e Colômbia (0,7% em 2011), o que mostra evidências históricas de sua viabilidade.

Dados da Receita Federal de 2016 mostram que 0,02% da população brasileira adulta (cerca de 26 mil indivíduos) detinham 17% da riqueza declarada e uma fortuna média de R$ 50 milhões. Carvalho Junior & Morgan (2020) estimam que uma tributação efetiva de 3% no estoque de riqueza desses indivíduos, com uma boa administração tributária, poderia gerar uma arrecadação de cerca de R$ 40 bilhões ou 0,6% do PIB.

No âmbito da Reforma Tributária de 2020, a principal tentativa de tornar o sistema tributário brasileiro efetivamente mais progressivo está contida na Emenda Substitutiva Global (ESG) nº 178/2019, dos partidos de oposição, à PEC nº 45/2019 – Proposta de Reforma Tributária - em tramitação na Câmara dos Deputados. Os seus principais pontos são:

  1. Criação de um Imposto Sobre Grandes Heranças - IGH, para heranças acima de R$ 15 milhões, com alíquota máxima de 40%;
  2. Obrigatoriedade da tributação pelo IRPF sobre Lucros e Dividendos, seguindo as basicamente as mesmas regras de outros tipos de rendimentos como os salários, e sendo vedado qualquer benefício fiscal. Além disso, institui uma tributação de 20% na remessa de lucros para o exterior (40% no caso de paraísos fiscais);
  3. Incidência do IPVA sobre aeronaves e embarcações;
  4. Criação da Contribuição Social sobre Altas Rendas da Pessoas Física - CSARPF para corrigir a regressividade das contribuições previdenciárias (que são limitadas ao teto previdenciário);
  5. Implementação imediata do IGF a alíquota de 0,5% sobre fortunas que excederem R$ 15 milhões, até que Lei Complementar Federal disponha sobre a matéria.

Realmente, aprovação da ESG aumentaria significativamente a progressividade do sistema tributário nacional, num cenário pós Covid-19, que ocasionou perda de receitas, fechamentos de pequenas empresas e castigou muito mais a classe trabalhadora do que as classes mais abastadas. Evidentemente a ESG precisaria de alguns ajustes: a) a alíquota estabelecida para transição do IGF é muito baixa e pode acabar se tornando definitiva; b) o estabelecimento de alíquotas mínimas para IPTU e ITBI acaba ferindo a autonomia municipal; e c) a excessiva parte isenta do Imposto sobre Grandes Heranças e a exclusão das doações pode facilitar a elisão fiscal.

Essas e outras questões do Imposto sobre Grandes Fortunas e também do Imposto sobre Heranças pode ser vista como mais detalhes em: “Tributação da riqueza: princípios gerais, experiência internacional e lições para o Brasil”, (29 páginas) escrito por Pedro Carvalho Junior (PhD em Política Tributária/University of Pretoria) e Marc Morgan (World Inequality Lab/Paris School of Economics), sendo capítulo integrante do livro recém lançado Brasil: Estado Social contra a Barbárie, organizado por Jorge Abrahão e Marcio Pochmann, disponível gratuitamente no link: https://bit.ly/3fCj421.

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