Tudo nos conformes?
— Vocês são muito iguais!
Por "vocês" entenda-se duzentos milhões de brasileiros, se bem que na época tinha menos, cinquenta milhões menos.
Por "iguais" entenda-se o jeito de se vestir, algo que eu até então não percebia porque olhava em volta e só via a infinita diversidade de caras e peles e cabelos e corpos que só São Paulo, destino de tantos povos, era capaz de gerar.
Ele vinha de longe, numa jornada de vida que começou em Chicago, se assentou em Nova York (outro caleidoscópio), passeou pela França e, depois de tantas andanças, andava pra lá e pra cá comigo por aqui compartilhando seu olhar gringo sobre aquilo que eu era incapaz de enxergar.
Saudade desse cara. Nós o reencontramos faz alguns anos em Berlim, onde ele vive até hoje.
Voltemos à sua observação indumentária. Ele tinha razão, e me vi forçado a admitir que, naquele momento, quando uma modinha surgia na novela das oito ela se propagava em ondas concêntricas como um pedregulho que cai num lago: o modelito aterrissava em vitrines da Zoomp (uma butique cara da época), ia se expandindo lentamente shoppings afora e classes sociais abaixo até que o mesmo look inundava as lojas do Brás. Em questão de meses aquilo que era marca registrada dos bacanas se replicava como uma epidemia do elevador social para o elevador de serviço. Coisas de um país desigual, injusto e provinciano, que nos meus tempos de adolescente achava os americanos breguíssimos porque cada um se vestia de um jeito.
Quarenta anos depois eu te garanto: somos todos (8 bilhões de todos) muito iguais, e assim seguiremos sendo.
Eu explico, ou melhor, Harvey Whitehouse explica no seu livro Inheritance, the Evolutionary Origins of the Modern World (Herança, as origens evolucionárias do Mundo Moderno)
Para resumir esse livro que resume milhões de anos da nossa história eu até fiz um video curtinho no meu projeto Leia, Vale a Pena.
Assista, vale a pena:
Para resumir ainda mais a história e a nossa história, o que o livro demonstra é que TODAS as culturas humanas têm muito em comum (e não é nenhum inconsciente coletivo junguiano, por favor), e essa similaridade global vem do fato que tudo o que nos define se explica pela maneira como a nossa espécie evoluiu, sobretudo por como ela evoluiu para viver e conviver em sociedade.
Essa herança comum tem três pilares: Conformidade, Religiosidade e Tribalismo, e vou focar na primeira perna do tripé e deixar Tribalismo para outra ocasião porque o assunto é rico e Religiosidade para o dia de São Nunca porque meu seguro não cobre.
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Conformidade é a nossa tendência a ser como todo mundo, mesmo quando isso não faz sentido. Conformidade é o que me levou em diversas ocasiões a vestir terno e gravata (o que para mim NUNCA fez sentido e ainda não faz) na hora de visitar clientes engravatados (já atendi Citibank, Itaú, o engravatadíssimo Bradesco...) não porque sarcófagos de pano me inspirem mas para não destoar nem gerar ruídos desnecessários.
Conformidade é muitas vezes inconsciente, e só isso explica porque alguém no mundo come pequi: é porque nasceu num universo onde comer pequi fazia parte de uma história comum e da identidade local. Eu poderia citar inúmeros outros hábitos alimentares para mim inexplicáveis mas são tantos que deixa pra lá.
Conformidade explica muitas vezes a religião que te define, o teu sotaque que sim, você tem mas não percebe, e explica por que, para surpresa e horror de um amigo gaúcho, paulistas fazem churrasco ostentando camisetas Polo e tênis novo.
A gente nem percebe o quanto somos iguais, precisa vir um gringo sincero para este país onde a conformidade nos leva a ser cronicamente insinceros ou precisamos viajar para outros lugares onde o "certo" e o "adequado" são gritantemente diferentes dos nossos, e aí voltamos dizendo que americanos não sabem se vestir ou que parisienses são "grossos" e os estereótipos se perpetuam assim.
O que está por trás das universais camisetas pretas e coletes de nylon pretos de gominhos na Faria Lima ou nas barbinhas inevitáveis nos cursos de Humanas na USP ou nas tatuagens em absolutamente todo mundo é algo que a evolução explica: a pior coisa que pode acontecer a um humano é ser rejeitado pelo grupo, é ser malvisto, é ser ridicularizado, é ser condenado ao ostracismo. Basta lembrar do pânico infantil ao se constatar que sua calça rasgou de maneira gluteamente revelatória na escola, e #perguntemecomoeusei.
Nossa ânsia por "fazer parte" explica muita coisa, desde a crença cega em fake news do seu partido até as palhaçadas que empregados topam para não destoar na firma, assim como o medo de ser sufocado pela conformidade provinciana fez com que o escultor Brancusi, nascido nas montanhas da Transilvânia na Romênia, fosse para Paris À PÉ para fazer parte de uma comunidade mais respirável e onde Picassos e Dalis estavam mudando a história da Arte.
Detalhe: de Bucareste a Paris são dois mil quilômetros. O cara demorou um ano, e tenho certeza que cada passo dessa jornada está registrado na réplica barata que está na capa deste artigo. Por coincidência o livro ao lado, Eine Empfindsame Reise zu den Quellen Nils (uma viagem sentimental à fonte do Nilo), também registra uma viagem sensível para muito além da própria zona de conforto.
Estou adorando o livro, ele está me ajudando a me conformar com as idiossincrasias da nossa espécie. #Ficaadica, se é que dicas de um inconformista não conflitam com teu plano de saúde.
gostou? espero que sim! um forte abraço e até o próximo episódio da newsletter Coffee Break!
Que sorte eu tenho de viver e aprender todos os dias com um inconformista que eu amo