Um caso que ilustra os desafios da indústria

Um caso que ilustra os desafios da indústria

A indústria automobilística talvez seja o exemplo mais bem acabado da dimensão dos desafios que a indústria como um todo tem diante de si em nível não somente global, mas principalmente local. A situação é grave, demandando por ações no plano corporativo relativas à administração e ao planejamento estratégico das empresas, como também uma união em arranjos locais e nacionais de modo a que a indústria possa ter voz e apoio das autoridades nos planos legislativo e executivo quanto as demandas em que necessita de urgente apoio para não fechar fábricas e ainda mais vagas à médio e longo prazo.

Tendências técnicas, demográficas e sociais críticas têm levado a mudanças significativas na indústria automotiva. A lista de desafios e oportunidades é longa e crescente: desde o desenvolvimento de novas tendências e comportamentos de mobilidade até a chegada de tecnologias autônomas, digitalização onipresente, o surgimento de motores elétricos sustentáveis, o surgimento de participantes não tradicionais na indústria. Combinado com ambientes de mercado voláteis, tensões políticas e grandes interrupções, como a pandemia do covid-19, a indústria automotiva enfrenta uma espécie “tempestade perfeita” ao redor do globo. E se isso é verdade no mundo, os desafios da indústria em nosso país e região são sem dúvida muitíssimo maiores.

Usar maneiras ágeis para navegar por esse labirinto tende a ser crucial para a adaptação e sobrevivência das montadoras e de seus fornecedores à realidade posta. E à medida que ambas seguem tentando desenvolver tecnologia e adaptar seus modelos de negócios tradicionais a novos ambientes, gerar ou incorporar novos empreendimentos está se tornando um pilar cada vez mais crucial nessa transição. Esses empreendimentos, sejam projetos-piloto internos ou startups, tem o objetivo de apoiar os players tradicionais da indústria automotiva no alcance de seus objetivos-chave, como também de conquistar oportunidades de crescimento adjacentes, expandindo as áreas de negócios em curso, e alcançar o sucesso transformacional inovando e desenvolvendo avanços para mercados diversos, incluindo alguns que atualmente sequer existem. E não poucas vezes, as empresas estão tão focadas em defender seu negócio principal, que negligenciam as oportunidades adjacentes ou novas. Portanto, as configurações ágeis têm potencialmente a resposta para enfrentar os desafios de hoje ou para manter o status quo atual. E garantir que o ecossistema permita que esses empreendimentos floresçam é de fundamental importância para outros participantes do ecossistema, como na ponta do financiamento que vai muito além dos bancos tradicionais, chegando às empresas de capital de risco.

No entanto, a indústria automotiva tem lutado para integrar e dimensionar projetos-piloto internos e startups. No entanto, enquanto startups e projetos-piloto internos independentes geralmente avançam em ritmo próprio, em meio a ambientes de alta intensidade nos quais a velocidade e a agilidade superam o processo e a confiabilidade, as empresas tradicionais, por sua vez, operam num ritmo mais lento e constante, com processos fortes para orientar seu pessoal em direção aos objetivos finais pretendidos. O desafio de escalar e integrar projetos-pilotos e startups centra-se em levar a organização uma velocidade mais acelerada, mudando de plano o negócio. Embora ainda queira que o esforço seja executado em maior velocidade, é fundamental começar a implementar processos e estruturas relevantes para ajudar as startups a se comunicarem e se alinharem com a organização corporativa que as incorporou. Caso contrário, a transição jamais acontecerá. O motor simplesmente irá parar e mais uma potencialmente boa oportunidade será perdida.

É verdade que os players automotivos fizeram grandes avanços nos últimos anos no que diz respeito a se aventurar em novos mercados e novos modelos e nomes familiares como Volkswagen, Toyota, Daimler ou Bosch alimentaram empreendimentos menores, bem como fizeram investimentos de US$ 500 milhões ou mais em empreendimentos específicos bastante promissores. Por outro lado, grandes investidores do mercado financeiro, como SoftBank e Goldman Sachs, e empresas de TI, como Google ou Intel, buscaram agressivamente um conjunto diversificado e crescente de empreendimentos relacionados ao setor automotivo, criando não somente uma competição inesperada por bons empreendimentos no segmento, mas um aumento bastante relevante quanto ao potencial risco de disrupção da indústria instalada atual. E os exemplos de empreendimentos investidos por investidores do mercado financeiro vão de fabricantes de veículos elétricos à aplicativos de carona ou tecnologias automotivas específicas, como sensores de veículos autônomos diversos. Isso levou a um verdadeiro boom sem precedentes em empreendimentos automotivos altamente promissores, os chamados "unicórnios" avaliados em mais de US$ 1 bilhão cada.

Desafios e obstáculos para empreendimentos no segmento autombilístico

Embora o número global de "unicórnios automotivos" pareça promissor e carregue em si riscos significativos de disrupção da indústria automotiva instalada, nem os investimentos feitos pela empresa, nem as ameaças surgidas a partir do investimento progressivamente vultoso feito por grandes investidores do mercado financeiro e por empresas de TI se tornaram realidade. Isso por enquanto é tanto um alívio, como um ponto de atenção para os próprios investimentos feitos no âmbito da indústria automotiva tradicional. Como os fatores a seguir destacam, isso se deve tanto aos desafios de gerenciamento na ampliação de empreendimentos quanto aos obstáculos específicos do setor:

1. Indústria das indústrias: a fabricação automotiva carrega imensa complexidade dentro de sua cadeia de valor. Os empreendimentos lutam para se ajustar da produção em menor escala de produção industrial e isso causa claras dores de crescimento em termos de qualidade e quantidade;

2. Regulamentação tecnicamente complexa, regionalmente heterogênea e em constante mudança: os três principais centros automotivos do mundo (Estados Unidos, União Europeia e Ásia) estabeleceram padrões de segurança do consumidor e proteção ambiental significativamente diferentes. Muitas startups, por sua vez, não têm estrutura para se planejar ante a essas muitas variáveis;

3. Perda de velocidade e agilidade: por definição, projetos-piloto e startups tendem a ser altamente ágeis e flexíveis com modos de decisão que suportam desenvolvimento de alta velocidade. Essas vantagens geralmente evaporam uma vez dimensionadas para uma organização profissional de maior escala;

4. Processos não estruturados e mal projetados: os projetos-piloto normalmente têm modelos e processos operacionais de baixa maturidade, que precisam ser melhor desenhados para apoiar a estratégia de crescimento. Os processos ad-hoc das startups tipicamente não são escaláveis em organizações maiores e isso normalmente tende a levar à uma piora na qualidade, insatisfação dos clientes e incapacidade de atender à demanda;

5. Falta de teste e compreensão do potencial dos projetos-piloto: antes de estarem prontos para expansão em larga escala, os projetos-piloto precisam ser testados em unidades de negócios e funções diversas. A ausência de compreensão do potencial comercial dos projetos-piloto torna extremamente difícil definir metas claras (por exemplo, receita ou melhoria de margem) como base para um roteiro de expansão.

6. Governança como um ato de equilíbrio: os empreendimentos corporativos oferecem controle rígido e integração facilitada, além de aumentar a exposição ao risco. Empreendimentos independentes podem operar mais livremente e oferecer a chance de uma abordagem de "laissez faire". No entanto, isso está associado a vários riscos, inclusive sendo uma possível aquisição por parte dos concorrentes.

7. Falta de apoio interno: as scale-ups bem-sucedidas exigem engajamento e adesão de todas as áreas de negócios. A falha em obter o suporte e o envolvimento da gestão leva a um alinhamento inadequado e cria confusão para a gestão intermediária, resultando em tração reduzida para o aumento de escala.

8. Os negócios nos formatos atuais têm prioridade: as atividades dos negócios nos formatos tradicionais geralmente têm prioridade sobre as novas expansões, e isso é especialmente desafiador para scale-ups que são percebidas como em segmentos com maior risco ou onde os benefícios não são tão claros.

9. Cultura organizacional avessa ao risco: grandes empresas são estruturadas em torno da excelência operacional e crescimento previsível e são inerentemente avessas ao risco. A administração tende a dar menor apoio à experimentação e aceitar menos facilmente os fracassos inerentes aos processos de desenvolvimento e inovação.

Ante a todos estes desafios, é importante empreender um processo de análise e planejamento estruturado e urgente. Para encontrar um ponto de partida pragmático com transparência em relação ao status quo operacional de um empreendimento, é fundamental mapear cada empreendimento ao longo dos elementos relevantes da cadeia de valor e estabelecer um roteiro de transformação no curto e médio prazo pontuando cada elemento nos níveis atuais de desempenho operacional, bem como sua criticidade, o que permite revelar e priorizar gaps no desempenho operacional e sua respectiva importância.

Conclusão

Os players automotivos em todo o mundo têm encontrando enorme dificuldade para responder à crescente pressão de transformação da indústria para os próximos anos, com dificuldades de repensar as estruturas atuais, suas competências essenciais, seus portfólios de produtos e suas capacidades de produção. Além disso, essas empresas precisam estabelecer experiência em novas áreas promissoras, como digitalização e eletrificação. Mas se essa realidade é desafiadora em nível global, o que dizer sobre esta em nível nacional ou local, em que o custo de capital é altíssimo, há profunda desintegração tanto das cadeias como da indústria como um todo, mão de obra de qualidade cada vez mais escassa e pressão competitiva afetada pela deterioração progressiva do ambiente de negócios local?

A situação é particularmente grave quanto ao que se passa com a indústria automobilística no Brasil e no Vale do Paraíba, em específico. Se interna corporis a indústria tem sido desafiada quanto à incapacidade de responder ao potencial de transformação e disrupção das novas tecnologias, a indústria no país e em nossa região de modo específico segue cada vez menos integrada e com menos peso na interlocução com o poder público para a melhoria de um ambiente de negócios progressivamente mais hostil, com excessiva e complexa tributação, progressiva escassez de mão de obra qualificada, custo de capital altíssimo, entre muitos outros. E isso sem falar na necessidade de mudança de atitude no que diz respeito à melhoria da integração da cadeia de fornecedores, com relações menos leoninas e mais coordenadas orientadas à sustentabilidade no longo prazo. Com isso, os resultados não somente têm sido impactados quanto ao presente, como as perspectivas não são exatamente favoráveis quanto ao futuro próximo.

Para que indústria ganhe sobrevida no médio e longo prazo e novos empreendimentos como os que descrevemos prosperem, criando valor no âmbito da indústria automobilística instalada, é fundamental a ação das montadoras, dos financiadores e do governo nos âmbitos executivo e legislativo. Com respeito às montadoras, elas precisam fornecer orientação e recursos para o gerenciamento de startups, enquanto os financiadores, com particular ênfase às empresas de capital de risco, eles precisam orientar suas investidas com uma escala de médio prazo em mente. Com respeito ao governo, por fim, a este compete a implementação de um conjunto de ações estruturados orientados à melhoria do ambiente de negócios, o qual só terá chances de objetivamente ocorrer se a indústria se mobilizar de modo a vocalizar suas demandas de modo coordenado e genuinamente integrado.

E num ambiente de negócios em claro movimento de degradação nos âmbitos nacional e local, o trade-off quanto a não agir de modo urgente não está exatamente nos riscos quanto aos movimentos de disrupção futuros, mas sim nas certezas quanto ao fechamento de empresas e vagas de emprego no segmento à médio e longo prazo.


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Luciana Nazar

Sócia & CEO na Fineggi Capital |Project Finance e Infraestrutura | GreenEconomy | BoardMember |Risk&Control

2 a

Excelente análise!👏👏

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