Um grande garoto
Retrato | Christian Gaul/Re

Um grande garoto

Uma conversa com Abilio Diniz, o empresário que combina a sabedoria de quase um século de vida — “é meio chocante fazer 80 anos” — com a vitalidade do menino que aprendeu a se defender no braço

“Vamos combinar o seguinte: a gente conversa e você publica a verdade.”

Não havia no tom de voz ou na linguagem corporal de Abílio Diniz o que a proposição sugere — o joelho elevado do goleiro que sai para disputar uma bola no alto, posição em que se impôs na várzea do Glicério, ainda garoto, no final dos anos 1940, ou a manobra obstrutiva numa entrada de curva em Interlagos, onde venceu a emblemática prova das Mil Milhas, em 1970, ao lado do irmão Alcides. Listado pela Forbes americana como o 477º homem mais rico do mundo em 2016, com uma fortuna avaliada em US$ 3,4 bilhões, o empresário entrara em estado de alerta com o e-mail encaminhado na véspera para o doutor em antropologia pela Universidade de Harvard, William Ury, responsável pelo acordo que pôs fim a “um dos conflitos empresarias mais violentos do mundo” — como o próprio Abilio se refere à disputa pelo controle acionário do Grupo Pão de Açúcar com os sócios franceses do Casino. A pequena legião de assessores que negociara com cuidado as condições para o encontro temia o que avaliara pela manhã como um “dia ruim” de seu cliente. Ele não havia gostado do jeito que a pergunta sobre o conflito fora formulada. “Se quiser mencionar alguma história ou qualquer número sobre negócios, por favor recorra ao meu livro”, sugeriu com polidez, antes de iniciarmos a conversa, em referência a Novos Caminhos, Novas Escolhas, lançado em outubro.

“A sua pergunta é: quando eu percebi que ele estava pronto para chegar a um acordo”, William Ury me escreveria um dia depois da entrevista — e da intervenção de Abilio — sem deixar margem para qualquer mal entendido. “A resposta está em nossa primeira conversa, em sua casa, em maio de 2013, quando ele pediu minha ajuda.” E segue adiante, em inglês no original: “Perguntei o que Abilio realmente queria. Depois de algumas idas e vindas, ele finalmente respondeu: ‘Liberdade’. Perguntei então o que a liberdade significava para ele: ‘A liberdade de passar tempo com a minha família, que é a coisa mais importante para mim, e a liberdade de prosseguir com os negócios que me movem’. Foi quando soube que ele estava pronto. Quando encontrei David de Rothschild [representante de Jean-Charles Naouri, o controlador do Casino] em Paris, no início de setembro, propus a ele uma negociação baseada em dois princípios: liberdade e dignidade para cada lado. Essa fórmula nos ajudou a chegar a um acordo em quatro dias”.

Em suas aulas na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, Abilio aceita discutir anualmente o assunto que tanto preocupava seus assessores naquela tarde na sede da Península, a empresa de investimentos da família Diniz — a natureza do erro que cometera. “Ele responde de bate-pronto a questões cabeludíssimas mesmo sobre o litígio”, diz o professor Jaci Correa Leite, coordenador acadêmico do mais procurado entre os cursos livres de curta duração da instituição. “Hoje, eu ensino para os meus alunos que os contratos são muito, muito importantes e devem ser feitos de maneira a cobrir todos os detalhes e que, se você tem que lutar com as outras partes, que lute enquanto o contrato estiver sendo construído e não mais tarde”, Abilio escreveu na mensagem abrindo o caminho para que William Ury falasse comigo. Para encerrar o assunto a que se refere como um “tsunami”, em sua origem, mas que hoje parece estar mais para uma leve ondulação, sigo sua recomendação citando as três últimas linhas do capítulo 4 de seu livro, em que menciona um conselho do patriarca Valentim dos Santos Diniz (1913–2008), fundador da companhia que ele se viu obrigado a entregar aos franceses: “‘Amarre tudo muito bem, nunca deixe pontas soltas.’ Este foi o meu maior erro empresarial: a elaboração do contrato de 2005 com Jean-Charles Naouri. Eu deveria ter escutado meu pai”.

Melhor agora

Abilio não tem dúvidas ao dizer que vive hoje o melhor momento de sua vida “em termos da minha família, das minhas realizações, dos meus negócios”. À frente da Península Participações, tem investimentos no Carrefour Brasil e no Carrefour Global, do qual se tornou o terceiro maior acionista em 2016; na BRF, a maior exportadora de frangos do mundo, em que preside seu conselho de administração; sem falar no diversificado portfólio, que vai da Wine.com.br, a maior empresa de e-commerce de vinhos da América Latina, ao Núcleo de Alto Rendimento Esportivo, em São Paulo, habitual centro de treinamento das equipes olímpica e paraolímpica do atletismo. “O dia em que eu não estiver mais satisfeito, não estiver contente, eu vou no mercado e vendo. Isso me dá um conforto muito grande, uma liberdade para trabalhar”, resume ele. “As pessoas sabem como eu sou e acho isso muito bom.”

Para Abilio, o momento é de dividir o capital simbólico acumulado ao longo de seus 80 anos, completados em dezembro passado. Não foi sempre um céu-de-brigadeiro, como na maioria das cerca de 600 horas de voo no ano passado. Em sua grande viagem de autoconhecimento, como gosta de se referir a sua trajetória, teve escalas dificílimas em pelo menos três momentos — a longa briga com os irmãos pelo controle da companhia, iniciada nos anos 1970; o sequestro em São Paulo, em 1986, quando teve a certeza de que morreria ali, durante os quase seis dias em que passou confinado num buraco de cerca de 3 metros quadrados; e a quase ruína do Pão de Acúcar, no início da década de 1990. “O Abílio tem o que os professores de Stanford [a universidade americana] chamam de growth mindset, uma mente aberta para o aprendizado permanente”, diz o amigo Paulo Lima, 54 anos, sócio fundador da Trip Editora. Paulo conta que, no auge da crise com o Casino, sugeriu a ele um encontro com o lama Michel Rinpoche, jovem monge budista considerado a reencarnação de um iluminado mestre tibetano. Para aliviar a agressividade latente, Abilio tinha voltado ao boxe que o ajudara a se livrar das surras diárias aos 12 anos, ainda um gordinho indefeso nas ruas da Liberdade, onde ficava seu colégio. Estava pensando mais na vida — e na morte. Homem de fé, herança maior da mãe Floripes, saiu dos dois dias de conversa decidido a aprofundar a capacidade de meditar, o que já fazia intuitivamente em sua regrada rotina de atividades físicas, hoje reduzida de três para um único período diário, das 6h às 8h30 da manhã. “Por mais que tenha sempre direcionado sua energia para os negócios e suas conquistas, ele nunca deixou de ouvir com interesse genuíno quem consegue despertar sua atenção”, opina Paulo. “Esse é o aspecto mais interessante no Abilio — é um cara extremamente ligado e aberto para o que não conhece.”

Em Novos Caminhos, Novas Escolhas, ele detalha os valores e os pilares que o têm guiado pelo caminho ao longo da vida. A ideia básica é manter o corpo e a cabeça em forma para tirar o melhor proveito possível do conhecimento e sabedoria acumulados. “Eu estudo o tema da longevidade há muito tempo. E o que eu resolvi fazer agora?”. Para celebrar o atual momento, Abilio fechou um hotel nas redondezas de Cascais, em Portugal, para um pequeno grupo de afortunados — mas não para uma festa. Ele está organizando um ciclo de palestras com 16 especialistas, referências mundiais em suas áreas, para falar do que há de mais avançado sobre o corpo, mente, espírito, propósito e relacionamento. “Se você pensar, os cinco temas estão ligados à qualidade de vida e, portanto, à longevidade”, diz, lembrando estudos que mostram, por exemplo, que “vive mais quem tem os melhores relacionamentos” e que “relacionamentos estáveis são melhores que bons relacionamento”. “Eu quero aprender e quero dividir meu aprendizado com os amigos próximos e a família”, fala sobre o evento. “Se não houver um propósito, não há porque vivermos mais do que os nossos avós.”

Estou enganando bem”

Homem de rotinas e de uma disciplina “irritante”, como ele próprio define, Abílio tem um estímulo importante em sua família nuclear, a mulher Geize, 45 anos, e os “filhos pequenos”, Rafaela, 10, e Miguel, 7. Com uma agenda implacável — “eu sei o que eu vou fazer hoje, o que eu vou fazer amanhã, o que que eu vou fazer no ano que vem” — e planos B e C para reduzir ao máximo os imprevistos, o espanto em sua vida brota quase sempre do front doméstico. Perguntado pela última boa surpresa que o acometeu, foram cinco longos segundos de investigação da memória antes de a resposta brotar num sorriso. “Um fato que realmente me impressionou, agora em janeiro [nas férias em sua casa nas montanhas nevadas do Colorado, Estados Unidos], foi ver minha filha Rafaela descendo uma pista absolutamente… radical”, conta, ainda surpreso. Miguel não fica atrás. “Ele desce as mesmas pistas, mas não com a mesma competência. Ele é ainda jovenzinho, as perninhas são menores, mas não se acanha, não.”

São em momentos como esse que Abilio é confrontado com o inevitável — “se morrer um dia, será contra a minha vontade!”, afirma em seu livro, em tom de bravata. “Vejo com orgulho, mas também com uma pontinha de tristeza, que a Rafa e o Miguel já descem pistas mais difíceis mais rápidos do que eu. Mas isso é a vida — e são poucas as limitações”. Resignado, não esconde que é para eles que quer se manter jovem uma vez que os filhos mais velhos — Ana Maria Diniz, a primogênita, e João Paulo, Adriana e Pedro Paulo — “já não ligam mais”. Agora, os filhos pequenos… “Se eu for buscar eles na escola e um coleguinha disser ‘putz, aquele velhinho lá é o pai da Rafa e do Miguel’, aí complica”, brinca. “Daqui a pouco eles vão estar com 18, 20 anos e eu já não vou mais buscá-los na escola. Se eu já não estiver enganando tão bem, não terá mais importância.” Ex-executiva e conselheira do Pão de Açúcar, Geize também tem papel importante no alívio das aflições imediatas. “Porque pode parecer que não, mas fazer 80 anos é um negócio meio chocante…”, admite. “Mas Geize sempre me diz: ‘Escuta, qual a diferença de você ter 80 ou 60 anos? Qual é a diferença no nosso relacionamento? O que você tem de diferente hoje do Abilio que eu conheci [em 2000, 16 anos atrás]?’ Então, quando ela fala assim, realmente me dá um conforto muito grande.”

O conforto vem também do papel mediador que Geize, Rafaela e Miguel estabeleceram entre o Abilio de hoje e o Abilio do passado. Durante seu primeiro casamento, com Auri, de quem se separou em 1986 depois de mais de 20 anos de relacionamento, as prioridades eram outras. “Naquele tempo, todos os meus amigos, as pessoas da minha idade, estavam tendo filhos”, lembra. “O que era então, vamos dizer assim, admirável? Era você ter sucesso no trabalho, naquilo que você fazia. Claro, o amor pelos meus filhos sempre foi grande, mas a dedicação, a excitação vinha de vencer nos negócios, vencer nos esportes” — Abílio foi tricampeão brasileiro de motonáutica em 1968, 1969 e 1970, entre outras modalidades. E agora, em seu momento de realização plena, “o que seria realmente extraordinário, aos 69 anos? Ter filhos.” Ele se mostra tranquilo em relação à questão do tempo dedicado à família em momentos tão diferentes de sua longa trajetória. “Deus me protege muito, sou muito abençoado. Meus filhos adultos receberam os irmãos muito bem”, afirma. As eventuais manifestações de ciúme, demonstradas sempre de maneira razoável, são dissolvidas por um argumento para ele irrefutável. “‘Pô, pai, você fica muito mais tempo com a Rafa e com o Miguel do que você ficava conosco’. E o que eu digo para eles nessas horas?” — e seus olhos, aqui, se tornam mais úmidos, ligeiramente mais apertados. “Eu digo: ‘Olha, é justo eu ficar com os pequenos muito mais tempo do que eu fiquei com vocês porque, quando os dois tiverem a idade de vocês, certamente eu não vou ter a oportunidade de estar com eles’. Quando os mais velhos botam o sentimento para fora, numa boa, eles entendem e dizem ‘não, você tem toda a razão’.”

Ao final da entrevista em uma sala decorada com apenas uma pintura — a dificílima defesa de Rogério Ceni em falta cobrada por Gerrard, do Liverpool, na final que deu ao São Paulo o campeonato mundial de clubes em 2005 (Abílio era o chefe daquela delegação e assistiu ao jogo do campo, ao lado do treinador Paulo Autuori) –, empilho as fotografias que levei para organizar a conversa e tentar recrutar áreas de seu cérebro pouco acionadas em momentos como esse. Uma delas, em especial, faz os olhos de Abílio brilhar de um jeito diferente — ele secando o cabelo de Rafaela (“isso aqui é até mais simples do que vestir”), pouco depois do banho. “O que esse casamento com a Geize me rejuvenesceu…”, e aqui ele suspiraria se fosse dado a suspiros. “Doze anos atrás eu já tinha 68. E aos 68 você já precisa se reinventar. ‘Ah, as reinvenções do Abílio!’ A BRF é muito bacana. Carrefour? É sensacional. A Península? Um espetáculo. Mas e isso aqui?”, ele aponta a fotografia sobre a mesa. “Essa é a verdadeira energia da vida.”


Reportagem publicada originalmente na revista VIP, edição de março de 2017.




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