Um mundo ignorante
No decorrer desse ano, em função de algumas leituras recomendadas no Grupo de Estudos da Teoria da Complexidade que eu participo, comecei dedicar parte do meu tempo ao estudo da agnotologia. O termos, foi cunhado pelo historiador americano Robert N. Proctor, da Universidade de Stanford, em diversas palestras que ministrou em 2005 e refere-se ao estudo das políticas de produção da ignorância.
Descobri que, em uma sociedade que alega cultuar o conhecimento, a produção massiva de ignorância caminha a passos larguíssimos e extremamente velozes, uma percepção que eu já tinha quando escrevi “O dragão da inteligência da artificial (contra o guerreiro da desinteligência natural)”, publicado no começo desse ano, mas essa minha percepção era apenas uma gota no oceano diante do que estou descobrindo.
No livro eu mencionava a tese de Kurzweil que teremos em um futuro próximo uma nova singularidade provocada pelo crescimento das, assim chamadas, inteligências artificiais, e pelo decrescimento da inteligência natural humana. O ponto onde as primeiras ultrapassam a segunda, segundo ele, se daria em 2023.
Talvez, por um certo otimismo que ainda me resta, eu duvidei desse prazo (mas não da tese em si mesma). Admito, no entanto, que as atuais discussões sobre o ChatGPT estão fazendo eu rever o meu conceito. Para completar, acabei de ler recentemente um ensaio de três professores espanhóis intitulado “La sociedad de la ignorancia” que reforça de maneira mais contundente nossa caminhada em direção à atrofia completa dos neurônios. Alguns dos sintomas são explícitos.
O primeiro é o desinteresse, cada vez mais generalizado, da busca do conhecimento como um fim em si mesmo, que se comoditizou (no sentindo mercantil do termo), e passou a ter apenas fins utilitários. Conhecimento que não passa de mais um dos fatores de produção.
A geração de saber deixou de ser uma tarefa individual para converter-se em coletiva e não se dedica a satisfazer as inquietações intelectuais, só se produz conhecimento vendável. Somos proletários do conhecimento cada vez mais desconectados das outras pessoas e do resto da sociedade.
A utopia, não realizada, de que o conhecimento nos tornaria pessoas mais informadas, mais independentes e mais capazes de entender o mundo que nos rodeia - e até de passarmos a ter opinião própria sobre esse mesmo mundo – se afogou o processo de entender, interpretar e tomar consciência das coisas.
Acumulamos informação, mas sabemos cada vez menos lidar com ela. Especialmente quando essa informação não tem uma aplicação prática instantânea.
A nossa incapacidade de lidar com toda a informação disponível não é algo novo, e faz parte do nosso contexto desde os tempos mais remotos. Infoxicação não é uma criação do século XXI. O problema real é a nossa dificuldade crescente de discriminar o importante do supérfluo e, claro, nossa incompetência para selecionar fontes de informação que sejam confiáveis. A falta de raciocínio crítico é, provavelmente, a outra face da nossa ignorância.
Na falta de crítica e afogados em novidades, nossa rota de fuga é nos tornarmos uma máquina de evasão, através do puro entretenimento passivo (o que explica, através dos tempos, o sucesso do rádio, do cinema, da televisão e, mais recentemente, do consumo de streaming), ou como diria Postman, “Amusing ourselves to death” (divertindo-nos até a morte, numa tradução livre).
O homo sapiens, que se caracterizava por gerar abstrações está se convertendo em uma criatura que olha mas não pensa, que vê, mas não entende, o homo videns.
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Atualmente as pessoas são incapazes de se concentrar em um texto que tenha mais do que três ou quatro páginas (o que não me impede de escrever esse texto que pouco será lido). Vivemos em um estado de dispersão em meio ao excesso de estímulos (sonoros, visuais, mensagens, notificações) que nos privam dos momentos saudáveis de solidão concentrada.
Para piorar, como se isso fosse possível, fingimos criar sistemas para eliminação da ignorância através de um sistema educativo fundamentado na sociedade da ignorância. Um paradoxo irresolvível. Acabamos por acreditar que essa ignorância é o normal.
Ser intelectual tornou-se algo pejorativo. Poucos se arriscam a atribuir-se esse termo que virou sinônimo de pretensioso, improdutivo, chato.
Segundo Antoni Brey, a expectativa de uma sociedade do conhecimento, surgida do desconforto pós moderno e através do poder da tecnologia, resultou em uma sociedade da ignorância, composta por sábios impotentes, especialistas produtivos enclausurados em torres de marfim e massas fascinadas e desaparecidas no imediatismo compulsivo e no consumismo alienador.[1] Ele aponta três grandes riscos nesse contexto:
1. Risco social: a promessa de que o aumento de informação geraria uma redução das desigualdades sociais é uma falácia. Estamos criando castas de alienados, de especialistas utilitários e um grupo reduzido de pessoas reflexivas que controlam os anteriores;
2. Risco de inação: o perigo de sermos ignorantes diante de desafios cruciais que dependem de nossas ações, especialmente de escolhas de políticas sociais, econômicas, ambientais, etc.
3. Risco existencial: o desconhecimento, e a incapacidade de compreensão sobre que lugar ocupamos no mundo como indivíduos e sociedade, especialmente quando a autonomia pessoal e a disponibilidade de um espaço privado se converteram em um bem supremo. A emergência do solipsismo. E a pergunta que fica aqui é: é possível a liberdade de pensamento a partir da ignorância?
Como estou no limite das três páginas que permitem a concentração dos leitores, deixo para um outro momento a discussão sobre a gestão do conhecimento e da ignorância em um universo neo-malthusiano (onde a informação cresce em progressão geométrica e a inteligência progressão aritmética negativa.
[1] BREY, Antoni. La sociedade de la ignorancia y otros ensayos. Bacelona. 2009
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1 aFábio Adiron obrigado por esse texto. Interessante notar que há uma série de pesquisas apontando um declínio de inteligência ao longo das gerações. O psiquiatra Iain McGilchrist cita um estudo norueguês que aponta uma queda em torno de 7 pontos de QI a cada geração, a partir de pessoas nascidas há 40 anos. Me pergunto o quanto o hábito de consumir rápido e reagir rápido vai, aos poucos, atrofiando a nossa capacidade de atuar sobre o mundo de forma reflexiva.
Conselheiro Consultivo | Consultor & Mentor Empresarial | Diretor Comercial no ramo Imobiliário | Liderança | Maratonista 42Km | Especialista em Vendas, Riscos, Contratos | Produtor de Conteúdos | +177mil Seguidores
1 aInteressante, Fábio! Grato pela partilha Um abraço
Logística na veia! | Escritor, Professor, Palestrante | Ativista da causa da doação de órgãos e criador do canal "@BoraDoar"
2 aCaraca Fábio Adiron, essa reflexão foi bem profunda e perturbadora, mas certeira. Me remete à canção do Roger Waters, "Amused to Death" inspirada no mesmo Postman que você cita. Tenho uma visão muito semelhante, me parece que teremos um futuro muito pior do imaginaram Huxley e Orwell.
Regional Technical Manager for Personal Care at BASF
2 aObrigado Fábio por seus textos, curtidas (que me fazem descobrir outros conteúdos e profissionais) e pelas reflexões. Uma ótima descoberta ter encontrado você no LinkedIn
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2 aComo de costume, seu texto é brilhante e perturbador. Sobre a pergunta q vc nos deixa: "é possível a liberdade de pensamento a partir da ignorância?" Acredito que seja exatamente o maior mal que vivemos atualmente: sim, é possível essa liberdade. O problema está na qualidade do pensamento produzido, baseado na nossa imensa ignorância. O futuro é, no mínimo, preocupante, principalmente pra quem se preocupa com o tempo após seu próprio tempo. O caso de alguns de nós, que tem filhos pra deixar sobre o mundo. Obrigado Mestre!