Uma carta aberta a minha mãe
Celina de Moura “Indaiá” Curado, minha mãe.
Controladora, centrada, inteligente, exigente, dedicada… essa era minha mãe
Desde que soubemos que o câncer havia voltado em fevereiro de 2020, eu sabia que tínhamos um prazo juntas.
Mas, nada nessa vida é simples, não é mesmo? Março de 2020, pandemia, covid 19, lockdown, palavras incorporadas ao nosso cotidiano que dificultaram ainda mais essa certeza de que nosso prazo estava acabando.
Fiquei 4 meses sem sair de casa e consequentemente sem ver minha mãe… contra sua vontade, passei a ficar alguns dias da semana na casa dela… e foi aí que comecei a ressignificar nossa relação.
Quando eu saí de casa aos 22 anos, não sabia nada da vida… e em meio a minha liberdade de deixar casacos na sala, descobri que se eu não fizesse as coisas, elas não se moveriam magicamente pro seu lugar certo…
Passei a cuidar de mim como gente grande, fazendo a cama, tirando o lixo, lavando roupa, guardando tudo em seu lugar imediatamente, sem procrastinar.
Minha mãe não acompanhou isso… então, na primeira semana que voltamos a morar juntas, ela se espantou ao ver que eu era capaz de descascar uma laranja… é mãe, eu cresci…
E nem só de serviços domésticos era feita essa relação… a forma controladora como ela aprendeu a viver, gerou em mim um grau interessante de insegurança… que passei a tratar em agosto de 2020, depois de um quase burnout…
Uma frase da psicóloga abriu uma caixa de Pandora que fez tudo mudar…
“Vc não precisa se sentir uma menina de 5 anos a cada ordem da sua mãe”. A mais pura verdade… era assim mesmo que eu me sentia.
Só que isso precisava mudar… agora eu tinha que assumir que era ela quem precisava de cuidados e de um braço forte onde ela se sentisse segura.
Como em um passe de mágica, incorporei uma segurança que não sei da onde veio e passei a ensinar a minha mãe sobre seus limites…
E assim, fomos seguindo, dia após dia, semana após semana… vendo recordações nas fotos, contando histórias de família, tirando fotos de pijamas e apenas vivendo… cada segundo…
Os dias foram passando e a minha mãe foi ficando mais debilitada… e assim passei a cozinhar as coisas que ela fazia e eu amo comer… aprendi a fazer caranguejos, molho de tomate a lá Celina, carnes, grão de bico e tudo que ela fazia de gostoso.
Fevereiro de 2021, como golpe, minha querida sogra faz sua passagem, assim sem avisar… sem dar tempo do todo dia ser um dia a menos…
Saímos do velório da sogra, direto para o HC, onde minha mãe faria exames para tentar conter o tumor do cérebro…
Depois de algumas sessões, 23 de março minha mãe fez radiocirurgia e tudo mudou…
Aos poucos foi perdendo a mobilidade, inchou por conta dos remédios, ficou frágil pela quimioterapia… e ainda assim seguiu firme e forte a frente de seu trabalho sem que quase ninguém soubesse.
Trabalhou até dia 30 de abril… quando, depois de 45 anos na Indaiá Logística, se aposentou…
E ainda não era o fim… seguiu trabalhando, mas o cordão que alimentava sua alma fora cortado e assim como Sansão ao perder os cabelos, a minha mãe também perdeu…
Em um mês ela encerrou as pendências do trabalho, organizou sua vida, destinando suas coisas a cada pessoa que queria, comprou presente pra todos, cortou o cabelo, e no dia 30 de maio, seu cérebro bugou.
Naquele domingo, ela já estava com muita dor, mas não se entregou. Levantou, fez almoço, e deitou na cama para descansar… fiz toda a faxina, como ela gostava e dormi ao seu lado com medo de não escutar seu pedido de socorro. Só me lembro de pensar: Deus, não permita que ela morra essa noite aqui comigo.
No fundo, eu sabia que aquele tempo estava chegando ao fim…
Acordei com um outra mulher ao meu lado. Ela estava gritando, sem falar coisa com coisa e tentando resolver as últimas pendências do trabalho.
Gritou: pega meus processos na sala e veja se tem uma procuração X. Não achamos o documento e enquanto ela falava com a Vívian, seu braço direito, eu corria atrás de socorro.
Liguei pros seus médicos, ninguém me atendeu, liguei para ambulâncias particulares e nenhuma veio ao meu socorro. Fui atendida pelo Samu… aí Graças a Deus!
Corremos para o hospital sem saber se eu estava fazendo a coisa certa, indo pro lugar certo… a partir dali todas as decisões se tornaram ainda mais difíceis.
Briguei muito pra que ela tivesse um atendimento descente… afinal, ela estava morrendo, logo não havia nada que eles pudessem fazer…
O médico que tratou dela por 4 anos não teve a dignidade de mandar uma mensagem pra saber como ela estava… ela não precisava mais dos seus serviços, já estava condenada mesmo.
Mas, eu segui firme e forte lutando por um tratamento paliativo para que ela pudesse fazer sua passagem em paz…
No terceiro dia de internação, as dores aumentaram e a irritação tb… na tentativa de tirar o foco do problema, passei a resgatar memórias antigas, vimos álbuns de fotos, ela relembrou pessoas queridas, família e contou novamente coisas da minha infância.
Sempre tive problemas pra dormir… e a forma que minha mãe encontrou de resolver a questão foi inventando contos infantis… criou a história do gato sabido
E naquela noite, mesmo com toda dificuldade de um cérebro falhando, ela contou a história, com riqueza de detalhes tão grande que como mágica as imagens que eu criei cada vez que ela contou essa história, surgiram em minha mente… voltei 35 anos… chorei e eternizei esse momento com um vídeo…
Gostei tanto disso que no dia seguinte tentei fazer a mesma coisa… já não foi possível… o cérebro tinha desligado mais um pouco e aquela manhã foi a última vez que falei com a minha mãe…
Mais um dia de luta pra um atendimento digno e uma conversa sincera com Deus pedindo sabedoria, coragem e que ela não morresse enquanto eu estava ali, sozinha com ela no quarto…
Na primeira noite, dormi pra não ver se algo acontecesse… na noite seguinte, fiquei acordada velando seu sono devido as dores enlouquecedoras.
Sobrevivemos a mais uma noite… e na troca de plantão entre a cuidadora e meu irmão, a respiração de minha mãe começa a falhar… já sabíamos… será hj e agora?
Corremos pro hospital, pedimos pra subir os dois, afinal, tava acabando e quando cheguei lá encontrei a minha mãe, acordada, com muita dificuldade de respirar e angustiada… mas a gente estava ali, não íamos deixa ela sozinha.
Tudo que me veio à mente foi cantar pra ela… cantei músicas do padre Marcelo e cantei uma música da banda Cerimonya, que se chama Na Língua dos Anjos.
A música tocou três vezes e ao final da última estrofe, a respiração ficou mais fraca, mais fraca até que quando a música acabou ela parou de vez…
Como mágica, não fiquei com medo, senti muita paz, amor, e acima de tudo por ter transformado esse momento de dor em algo mais leve…
Foi como um filme de Hollywood… chorei muito, claro, mas muito em paz por ter ajudado minha mãe na sua passagem… por poder transmitir segurança que a gente estava firme para seguir sem ela… que a gente tinha aprendido a ser forte, decidido, corajoso.
Ao final dessa intensa jornada… me sinto a pessoa mais abençoada do mundo por ter conseguido realizar todos os desejos da minha mãe
- não ficar sozinha nunca
- Não dar trabalho pra ninguém
- E ser reconhecida no trabalho
Tudo isso aconteceu em vida! Viva!
Agora, eu tenho que seguir… será fácil? Tenho ctz que não… ela era o meu Porto Seguro, a minha fortaleza, quem tomava todas as decisões certas…
Mas, eu tive esse tempo pra aprender tudo que eu queria com ela…
Que Deus permita que meu coração siga em paz, que ela encontre o caminho da luz e que esse relato possa ajudar outras pessoas que vivem a mesma angústia que eu vivi nesse último ano e meio.
E eu? Sigo aqui tentando ser metade do exemplo do que ela foi para as pessoas.
Beijos de Luz
CS Export Documentation coordinator | Happag lloyd
3 aRogério Botelho Gomes mostra pra Regina
Especialista em Atendimento ao Cliente | Logística e Comércio Exterior
3 aQue homenagem emocionante, parabéns pela sua força, brilho e luz. E fico feliz que papai do céu te deu a oportunidade de uma lista despedida e momentos tão marcantes para lembrar dela sempre com muito amor, carinho e orgulho!
Consultoria de Comex, Logistica, Transportes Nacional e internacional
3 aSilvia, conhecia sua MÃE desde 1980. Ao longo destes anos fui conhecendo muito este SER ESPECIAL DE DEUS. Mulher, profissional , Mãe e amiga especial. Me ajudou muito com seus conhecimentos e apoio, sempre me tratando com respeito e carinho. Fiquei muito triste com sua partida. Deus a protege e cuida Dela agora. E vai cuidar bem dela. Que o conforto possa chegar e ficar no seu coração.
Inovação, Organização, Visibilidade, Projetos, Desenvolvimento de Negócios, Logística Nacional e Internacional e Administração de Operações
3 aQue Deus ampare vc e sua família, que cubra de luz a alma de sua mãe!
Pricing Coordinator | Key Account | Business Development
3 aNão a conheço, mas chorei horrores lendo sua carta. Espero ter a sua força quando for necessário. Parabéns por todo cuidado e amor intenso que teve. Recentemente, minha tia que foi uma inspiração de força , liderança, e de trabalho também foi forte e incrível lutando contra o câncer, e quando chegou ao cérebro também tomou um caminho parecido com o de sua mãe, isso me trouxe essas lembranças. Que Deus conforte seus corações. Um dia reencontramos nossos entes amados. Fica em ti toda a força que ela te ensinou a ter.