Uma Noite no Farol

Uma Noite no Farol

Uma Noite no Farol

 

       Não sabia de onde eu vinha, mas...

       Quando dei por mim, estava no Caminho de Bambu. Era uma pequena estrada de terra com bambu dos dois lados que formavam uma espécie de túnel verde por onde se infiltravam os raios do sol nascente. Caminhava prazerosamente quando ouvi uma música, uma canção. Era Shirley Bassey entoando I will wait for you – gozado, eu não sabia que essa maravilhosa cantora tinha gravado a composição de Michel Legrand.

Não, eu não sabia de onde eu vinha. Apenas caminhava. E de repente notei que me elevara no ar. Não como santa Teresa de Ávila, mas como Nijinsky. E comecei a evoluir ao som da música. Sim, eu dançava a letra, a melodia e o ritmo românticos compostos para Os Guarda-chuvas do Amor, filme de Jacques Demy, sem tocar o chão. Eu simplesmente flutuava com uma profunda sensação de bem-estar físico e mental.

No fim do Caminho de Bambu, desci, toquei o chão. E vi na minha frente uma trilha que levava a um farol. O silêncio era total. O sol já estava alto. Dirigindo-me ao farol, perguntei-me quem seria que eu estava esperando como na canção.

A base da edificação era uma moradia, ao que tudo indicava. Bati na porta. Ninguém respondeu. Abri a porta. Entrei. Sim, a parte inferior do farol era uma moradia. A mobília lembrava um pouco o ambiente rural do século XIX. Havia uma mesa de madeira e duas cadeiras, uma despensa, uma arca e uma cama. Todos os móveis eram feitos de madeira maciça. Havia também uma pia, um fogão a lenha e uma tina à guisa de banheira. E, num vão da parede do cômodo, encontrava-se uma privada turca, discretamente separada do resto da sala-cozinha-dormitório por uma cortina.

Percebi que sobre a mesa encontrava-se um castiçal, com uma vela acesa, e uma jarra de vinho branco. E, sob a jarra, uma nota escrita a mão: “Seja bem-vindo. Há mantimentos na despensa. Sirva-se. Tenha um bom dia e uma boa noite. Foi um prazer recebê-lo”. Quem escrevera essa nota? A quem era dirigida? O morador(a) do farol esperava alguém? Um amigo? Uma amiga? Um amor?

Abri a despensa onde achei morcela, chorizo (salame espanhol), queijo de cabra, lichias, fruta seca (tâmaras e figos) e sementes (amêndoas, avelãs e nozes). Senti fome. Decidi comer. E almocei com um bom copo de vinho. Senti sono e me estiquei na cama para um cochilo.

Acordei assustado com uma espécie de uivo. Como se o vento penetrasse por alguma abertura do cômodo. Percebi que o uivo provinha da tina, que era enorme. Estranho, pensei. Puxei a tina e descobri que ela vedava um alçapão. Abri-o. E o ruído ululante se fez mais intenso. Parecia tratar-se de um poço, de onde senti emergir um som de abismo. Surpreso e um tanto assustado, fechei o alçapão e coloquei a tina em cima.     

Notei que o sol declinava. Procurei a lâmpada. Não a encontrei. Procurei o interruptor. Não o achei. Não havia luz elétrica no farol? Estranho. Ou pelo menos aqui no térreo eu não via nenhuma lâmpada. Saí fora. Olhei para cima. O farol estava apagado. Que esquisito, um farol apagado. Seria um farol abandonado? Não, não estava abandonado. Alguém morava aqui. Percebi então, no crepúsculo, que um temporal estava se armando. Voltei para dentro, fechei a porta e coloquei mais uma vela na mesa, para quando a acesa se consumisse.

E então o temporal desabou desencadeando sua fúria. E minha excitação. Sim, pois à medida em que o vento, a chuva e as ondas fustigavam o farol, a minha excitação aumentava. Excitação? Sim, era algo próximo da excitação sexual. Eu, incompreensivelmente, associava o furor da tempestade ao desejo sexual. Por quê? Não sei. Era algo intenso. Irracional. Como se o espírito da borrasca tivesse se apossado do meu corpo. Senti vontade de me masturbar. Porém, optei por tirar toda a roupa e sair fora para que o vento e a chuva açoitassem meu corpo sedento de prazer.

E o vento e a chuva fustigaram meu corpo. E deixei-me fustigar pela violência da Natureza. O sangue em chamas. Até sentir frio. Aí voltei para casa. Abri a arca. Peguei uma toalha. Sequei-me. Acendi o fogão a lenha. Embrulhei-me numa coberta e me sentei na frente do fogão para me esquentar. Senti sono e me deitei. Adormeci. E sonhei que estava voando.

Acordei de manhã excitado. Com o membro em posição astral. A necessidade de me satisfazer foi crescendo. Era algo irreprimível. Tinha que me aliviar. Nu, comecei a subir a escada. Uma vez no topo do farol, senti o sol acariciar minha pele. E compreendi que só atingiria o orgasmo voando. Não tive dúvida – o prazer, primitivo e urgente, em primeiro lugar – e pulei. Ouvi a voz esplêndida de Jessye Norman cantando o Concerto Para Uma Voz, de Saint-Preux – nunca anteriormente ouvira esse canto angelical interpretado por ela. Fui caindo em câmara lenta. E gozei... E céus! Antes de atingir o chão, um anjo negro muito forte me recolheu em seus braços, como se eu fosse criança, e me depositou placidamente sobre a terra, no início do Caminho de Bambu. E comecei a caminhar, nu, pelo túnel de bambu que já filtrava os raios do sol.

Não sabia aonde eu ia...

29-04-23     

J. Campos

Biólogo /Licenciado em Letras/Mestre em Letras/Doutorando em Letras

1 a

O mundo onírico de R. Roldan-Roldan. Um conto muito bonito.

Zahmoul El Mays

Attorney At Law at CIVIL COURT CASES

1 a

Great

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