Uma pílula para a Dor

Uma pílula para a Dor

Quem nunca teve uma dor de cabeça? Quem não teve uma dor de cabeça esses dias? Problema comum com solução simples: uma pílula para a dor.

É ótimo esse mundo em que vivemos. Febre, dores, males e infortúnios de toda sorte a uma aplicação de distância de sua resolução. A um tempo atrás tive uma febre pesada e muito mal-estar. Uma tarde de aplicação de remédios e soro fisiológico no ambulatório do hospital e pronto, um Marcelo novinho em folha. Estava mal, fui ao médico, recebi um medicamento e, em poucas horas, estava pronto para continuar. Eu não vou entrar aqui na questão do quanto é caro ter acesso a essa estrutura ou da dificuldade de acesso que a maioria da população tem, vou me concentrar na dor, que é uma questão universal.

Aliás, isso é exatamente o que não se faz. Se concentrar na dor. A Cultura da Velocidade e Eficiência (sem falar na do Descarte) já nos ensinou que todos os males têm fácil solução. Se não tiver ou não inventaram ou não é um problema grande o suficiente para ter uma cura rápida. Para cada dor a sua pílula.

Todo mundo tem uma lista de prioridades, coisas para fazer, lugares para chegar, metas a cumprir, objetivos a conquistar, clientes para atender, dinheiro para ganhar. A vida é acelerada e, quanto mais velhos ficamos, menos horas úteis o dia tem. Se antigamente o maior sonho da humanidade era o de viver para sempre, hoje é de que o dia tivesse, pelo menos, 32 horas.

Nessa luta frenética não há espaço para erros, não temos tempo para adoecer. A indústria farmacêutica, como bom servo obediente, nos atende com comprimidos cada vez mais eficazes e substâncias cada vez mais letais contra a improdutividade. Vitaminas, energéticos, cafeína, analgésicos, o que quer que seja para te manter no topo, para te manter na corrida, para te manter na ativa. O adoecimento é visto como uma fraqueza. Entregar um atestado médico no rh da empresa é sempre feito as escondidas, principalmente se for de uma consulta ao psiquiatra.

Ninguém quer adoecer, é verdade, mas será que alguém já se perguntou por que adoecemos?

Você já se perguntou qual é a função da dor? Ou pelo menos, qual a função da sua dor?

Fisiologicamente falando a dor é um alerta. O sistema nervoso produz a sensação de dor para avisar de perigos iminentes para que o corpo reaja a tempo e se lide com ameaças que podem à sua vida. Aquela experiência clássica de colocar o seu dedo (ou o dedo do seu irmão mais novo) em um fio desencapado, levar um choque e puxar a mão instintivamente para interromper a ameaça é a mais clara reação do sistema nervoso. Ele retrai seus músculos e puxa seu dedo para fugir do perigo. Um alarme para a preservação da vida. Essa é a função fisiológica da dor.

E a dor psicológica? Existe alguma função da dor psicológica?

A dor fisiológica é facilmente referenciável. A partir do sintoma você busca a órgão regulador daquela função e sua respectiva disfunção, aplica o tratamento cabível e elimina a ameaça. Já a dor psicológica é mais complicada. Não conseguimos sequer perceber quando está em vigor, vá dizer referenciá-la. A dor psicológica e a fisiológica são gêmeas siamesas (há quem diga que são iguais). Ela também é um alerta. É um chamado do seu inconsciente para que preste atenção em questões do seu mundo pessoal que demandam cuidado e, por vezes, investigação.

Um mal-estar estranho, uma sensação de não pertencimento, uma tristeza repentina, uma vontade de dormir incontrolável, uma apatia geral, um desinteresse em relação a vida de qualquer um, inclusive a própria. Um tédio enorme e sem nome, uma falta de ar em plena luz do dia, uma palpitação nervosa sem nenhuma ameaça iminente, um medo de andar na rua cheia de gente, uma necessidade de se limpar de uma sujeira que não se vê logo depois de fazer sexo, tremer de medo, literalmente, de uma bronca do seu chefe, não aceitar um único elogio sem refutar, olhar-se no espelho incansavelmente procurando um defeito no seu corpo, vomitar tudo o que come, nunca parar de comer, sentir que ninguém te percebe, tirar fotos sorrindo mas com vontade de chorar, pensar que todos no mundo tem uma vida mais interessante que a sua nas redes , um choro contido terça feira as duas e quarenta da manhã, beber xícaras e mais xícaras de café (a pinga do homem sóbrio), andar invisível na multidão.


A dor psicológica só vem. Ela se faz presente, perceptível. Começa humilde, apenas tentando chamar sua atenção. À medida você não a percebe (ou voluntariamente ignora) se torna mais aguda. Um alarme tocando, gritando, aumentando seu volume, te obrigando a levantar da cama, pegar o celular e apertar o botão de soneca.

Botão de soneca?

Não é o ideal né? O ideal seria a dor te despertar da letargia e te fazer olhar para ela, olhar para si. Mas, infelizmente, nossa primeira reação é apertar o botão de soneca. Estão disponíveis incontáveis botões de soneca para a dor psicológica. Distrações infinitas a poucos toques de distância podem adiar imediatamente e indefinidamente qualquer necessidade iminente das dores da alma. Um bom filme, uma série de 7 temporadas com 12 episódios de quase uma hora de duração cada, jogos, drinques, festas, pornografia. Tudo abusivamente disponível para manter a sua atenção 24 horas distante de si mesmo.

E assim seguimos a vida, uma maratona após a outra, engolindo e nos distraindo de nossas questões pessoais mais íntimas, acumulando nossas dores em lugares ermos da psique. Por quanto tempo? Na verdade, a melhor pergunta seria, por quanto tempo mais você vai aguentar? Quanto tempo um bambu aguenta antes de arquear?

A dor não some, o sintoma se disfarça. A fonte do problema não se cala, suas manifestações sutilmente mudam seu figurino. O mundo não deixa de existir quando você fecha os olhos, ao invés disso ele segue existindo sem que você perceba. E, sem que perceba, a dor silenciosa faz casa e os problemas que originalmente estão tentando se comunicar agravam-se até que se fazem ouvir de uma forma mais aguda, e, dessa vez, ninguém as pode calar.

Adaptando uma frase de Freud, o pai da psicanálise, podemos considerar que o que não é dito pela boca é expresso pelos poros. Aquilo que pecamos em perceber e cuidar sobre o nosso mundo psicológico causa, no próprio corpo, efeitos diretos e males físicos..

Thonwald Dethlefsen e Rüdiger Dahlke em “A Doença como Caminho” falam de vários exemplos de como as questões da alma se manifestam no corpo quando descuidadas. Mais ainda, eles apresentam um paradigma onde, na verdade, não há qualquer diferenciação entre ‘alma’ e ‘corpo’. Acreditam que o corpo e todos os seus componentes (mente, alma, órgãos, etc) é um canal único em busca equilíbrio constante. As perturbações desse equilíbrio se manifestam através deste canal. Isso quer dizer que de uma dor de cabeça até um câncer nos pulmões, toda ‘doença’ é entendida como uma expressão do mundo interior (alma) no mundo exterior (corpo). Toda expressão objetiva (sintoma) tem relação simbólica com uma questão subjetiva.

E não é só isso. Eles enxergam a doença não como uma disfunção, mas um último e mais primitivo canal de comunicação do mundo interno no externo. Por isso o título do livro, “A Doença como Caminho”. O estudo das doenças nos auxilia a entender qual é a mensagem oculta que está tentando ser expressa pela alma através do corpo. Uma investigação dos sintomas de qualquer mal apresentaria pistas e seria uma forma de revelar as verdades interiores encobertas pela consciência na inconsciência. Nesse sentido Rüdiger Dahlke desenvolveu, através de seus estudos, um compêndio muito conhecido na psicossomática chamado “A Doença como Símbolo” onde apresenta várias aflições conhecidas e sua interpretação simbólica para desvendar essas verdades ocultas.

E aí, soa familiar?

Para mim sim. Minha avó morreu de câncer de pulmão, muito jovem. Foi casada desde muito cedo com meu avô, fumante inveterado, cujo pulmão nunca teve uma única mancha. Ela nunca colocou um único cigarro na boca. Segundo Dahlke as doenças relacionadas à respiração têm conexão com tristezas represadas. Minha avó era uma pessoa amável que sempre tinha um sorriso no rosto. Infelizmente ninguém (e possivelmente nem ela) percebia o que carregava por dentro. O câncer, inclusive, é terrivelmente recorrente na minha família. Câncer, resumidamente, [MT1] está relacionado à sentimentos negativos não expressos em conexão com o órgão de manifestação. No fígado tem ligação com rancor e ódio, na pele com dificuldades de contato entre o mundo interno e externo, no pulmão com tristezas profundas. Minha família sempre foi muito polida. Quase não existem desentendimentos e brigas explícitas, é meio que uma cultura onde a expressão de desavenças e sentimentos ‘negativos’ não tem vez. Não é muita surpresa que o câncer seja tão recorrente por aqui, infelizmente.

Naturalmente não é uma receita de bolo. Cada sintoma precisa ser investigado dentro do contexto da vida e da família de cada um. Ainda assim, muita coisa para se pensar.

Só que pensar é um luxo que não dispomos mais. Pensar sobre os sentimentos menos ainda. Não temos tempo para isso, não há vagas. Estamos ocupados demais para adoecer. A questão é que a doença é, em última análise, um movimento da vida. Quando o sentimento fracassa completamente em se expressar e é represado, descartado e escondido então ele se expressa através do corpo. É o pior e a mais primitiva forma de expressão porque ele causa lesões.

Faz parte da pulsão de vida adoecer para nos colocar em contato com aquilo que temos fugido e fingido não ver, fingido não ser. Não estou dizendo que devem ser ignorados os sintomas e tratamentos físicos e sim dizendo que além disso existe toda uma dinâmica oculta sobre o adoecimento que é ignorada e, no mundo moderno, severamente piorado.

O corpo é a verdade absoluta que cada um carrega. Ele não mente jamais. As suas reações podem ser investigadas e, através de reflexões profundas sobre a manifestação dos sintomas, nos levar a encontrar verdades algumas vezes bem inconvenientes. Inconvenientes, porém, absolutas. Os complexos mal resolvidos, sentimentos velados ou experiências traumáticas com as quais não conseguimos (ou não queremos) lidar manifestam-se no corpo. Ele manda mensagens o tempo inteiro dando notícia da verdadeira saúde ou doença de cada um. Quanto mais ignoramos mais forte a mensagem se torna e maior é o dano causado ao corpo. E, com o tempo e a prática da repressão, mais grave se tornam as questões até que elas se manifestam de forma que não podemos mais ignorar, geralmente como doenças graves que vão nos obrigar a percebê-la, gostando ou não.

A boa notícia é que essa manifestação é, na verdade, uma comunicação, um recado. Os poros estão conversando conosco sobre aqueles assuntos que não queremos falar. O adoecimento é uma conversa sincera que precisamos ter conosco. Desagradável, difícil e assustadoramente necessária. Esse diálogo vem através dos sintomas do corpo. Segundo a psicossomática o órgão onde a doença se manifesta tem correlação simbólica com o estado psicológico de sua origem. Uma das funções fisiológica do fígado, por exemplo, é de ‘filtrar’ o sangue. Ele trabalha para retirar impurezas da corrente sanguínea. Um quadro comum no fígado é a esteatose hepática, que é acúmulo de gordura no fígado. Segundo a psicossomática a esteatose hepática está ligada ao acúmulo de rancor, raiva que virou e ódio que virou rancor, tudo não expresso. Simbolicamente falando a sua corrente sanguínea (vida) está cheia de impureza (ódio) e por isso seu fígado se sobrecarrega. Por ser de natureza simbólica os sintomas precisam ser interpretados, contextualizados e investigados, dando insights para o portador de qual é a verdade escondida por detrás das somatizações.

Esse estratagema seria totalmente desnecessário caso tivéssemos uma abordagem saudável perante a vida. O adoecimento seria muito mais brando fôssemos nós atentos ao nosso mundo interno. Se, desde o começo, tivéssemos nossa atenção centrada em nossas verdades internas, principalmente aquelas inconvenientes, seria desnecessário todo esse caminho da doença até a sua origem psicológica. Só que temos repúdio à doença, temos ódio da fraqueza e da franqueza. Queremos corpos saudáveis, beleza durável, prazeres escaláveis. Qualquer desvio dessa conduta perfeita gera poucas visualizações e quase não dá like. Ninguém compartilha. Tantas vezes esquecemos sermos humanos.

Por isso queremos uma pílula para a dor, para qualquer dor. Para todas as dores. Só que os comprimidos falham miseravelmente quando se trata da dor psicológica. A medicina não foi feita para isso. naturalmente eu não me refiro aos remédios dos tratamentos psiquiátricos, muito úteis por sinal, mas a analgésicos da aflição. A dor é um convite à vida. É uma comunicação da verdade interna querendo ser descoberta, mas que já foi tão reprimida que começa, literalmente, a ‘cavar’ o seu caminho para fora da prisão, causando dano aos tecidos corporais.

Mas porque os segredos procuram incessantemente revelar-se?

Nossa verdade precisa ser descoberta. É importante conhecer quem somos e o que sentimos em relação as pessoas e as experiências importantes de nossa vida. Não, não é importante, é imprescindível.

Afinal é por isso é que nosso segredo está enterrado 7 palmos no chão. Ele precisa mandar uma mensagem através dos poros, comunicar-se, fazer-se existente. É necessário saber que não ama seu pai ou sua mãe, que o abuso sexual que ninguém conheceu ainda te atrapalha a estabelecer relações no seu dia a dia, que não é o filho mais amado, que não é homem, que não é mulher, que se excita com coisas consideradas estranhas pelo senso comum, que tem medo de viver sozinho, que prefere ser agredido à agredir alguém, que deseja tanto agradas as pessoas que muitas vezes sacrifica a si mesmo, que deseja, profundamente, matar uma pessoa, que se veste de mulher, que se veste de homem, que sorri sem vontade, que sente culpa por crimes que não cometeu, que bebe porque não é possível viver sóbrio, que, até hoje, tenta agradar o pai que te violentou.

Os aspectos mais sombrios da nossa historia e personalidade costumam ser os que guardamos com mais afinco. No inconsciente ou na sombra, segundo Freud e Jung respectivamente, tantos e tantos segredos, formas de agir, experiências obscuras, desejos inconfessáveis. Verdades internas que são absolutas e, por serem tão únicas, difíceis de aceitar. Mas elas são o que são e quanto mais rápido nos encontrarmos com elas, tão mais cedo conseguiremos nos libertar dos seus efeitos nocivos. Elas foram formadas à partir da sua história de vida e a forma com que essas experiências e seus sentimentos construíram a sua rica realidade psíquica. Boa parte desses segredos são desconhecidos até para nós. Escondemos e nos escondemos com tanta força que nossos segredos precisam nos causar dano para serem ouvidos.

E como o adoecimento é um movimento de vida?

Enquanto nossos traumas e sentimentos represados são secretos para nós seus efeitos nocivos trabalham na inconsciência e com reflexos diretos no cotidiano. A partir do momento que chegamos até a origem da dor, a experiência traumática ou sentimento profundo, conseguimos nos conectar com aquela realidade e, aos poucos, tomar consciência do que aconteceu, como aconteceu e de que forma essa experiência continua determinando algumas questões da nossa vida e contribuindo negativamente para o fracasso.

A única forma de se libertar é encontrá-los. Conhecê-los e reconhecê-los. Chamar sua sombra para uma conversa e um café. Quem é você, como chegou até aqui? Uma frase célebre da bíblia que se aplica perfeitamente: “Conheça a verdade e a verdade vos libertará”.

Quando olhamos sem julgamento para a verdade interna conseguimos entender muito dos determinantes ocultos de alguns dos nossos comportamentos auto destrutivos e sabotadores. Podemos, com tempo e honestidade emocional, aprender a lidar com quem somos de verdade. Conseguimos, cada vez mais, nos aproximar de nossa realidade interna e viver de acordo com ela. Assim nos tornamos pessoas mais íntegras e congruentes, conseguindo viver uma vida de significado e de valor.

Portanto quando estiver na presença da dor, ouça, busque, olhe para ela, procure seu sentido, entenda. Entender a sua dor é entender a si mesmo. Aproximar-se da dor, ao invés do que o senso comum diz, não o deixa mais triste ou mais doente, ao contrário, é um caminho inevitável que todos faremos por bem ou por mal. Vivenciar luto, tristeza, solidão, todos esses sentimentos difíceis de lidar, é uma forma de manter a sua saúde e de se conhecer intimamente. O autoconhecimento é mais do que um luxo, é uma necessidade e uma garantia de um futuro saudável.

Chega de analgésicos, chega de pílulas para dor. É hora de trilhar o caminho de volta ao coração.

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