Uma semana assim

Uma semana assim

Encerro agora uma semana sui generis, agridoce, com algumas frustrações, mas também com coisas fantásticas. Aproveitando alguma “solteirice”, resolvi dedicar mais estes dias que passaram mais à leitura e menos à escrita. Precisava de descansar o punho e a caneta, os dedos e o teclado. Consegui acalmar um pouco a ansiedade provocada pela senda do doutoramento, árduo percurso, algo solitário, mas tão gratificante, assim não o desdignifiquem alguns Moutinhos deste mundo.

Há que ser persistente em tudo o que fazemos e acreditamos. Certamente, uma frase que muitos maduros e maduras ouviram dos seus pais e avós. Lembrei-me até, especialmente no início da semana, das palavras de Gary Hamel: "Não desistas: os inovadores são persistentes”. Na verdade, não sou pessoa de desistir do que quero. Por vezes deixo é de querer. Hannah Arendt refletiu num dos seus livros sobre a questão de sermos confrontados com dois males, afirmando o dever de se optar pelo menor, já que recusar escolher completamente é ser irresponsável. Uma coisa é certa: entre falácias morais e moralismos baratos, é preciso não esquecer que se escolhe um mal, em qualquer das situações. Infelizmente, são muitas as vezes em que as opções são apenas essas.

Entretanto, na TV, foi aparecendo a novela em torno do Ronaldo, sobre a qual pouco posso aprofundar, mas que me fez pensar nas questões do esforço, da dedicação e do reconhecimento. Eis-nos perante aquela habilidade humana, tão nacional também, de transformar bestiais em bestas e bestas em bestiais. Admiro o craque, pronto! E não me surpreende nada este ‘fait divers’, tão característico desta pós-modernidade, onde uma horda de gente, da qual não me excluo em tantas situações, insiste em comiserar-se por permanecer medíocre, ignorando a triste sina de ter sido já educada por uma modernidade que nos convenceu que somos todos iguais e podemos alcançar, por direito próprio, qualquer coisa. Ou seja, possibilidades ilimitadas aguardam-nos; para quê esforçarmo-nos. Esta foi, na verdade, uma semana onde mais uma vez percebi isso mesmo. Faças o que fizeres, nos tempos que correm, o reconhecimento raramente virá pela competência ou pelo esforço.

Aprendi com os meus pais alguns valores que considero relevantes. O valor da palavra, de honra, e que “homens não metem medo a homens”. Talvez por isso, uma das coisas que me tira do sério é obrigarem-me a fazer “da cara cú” (expressão que ouvi do meu sogro e que tem exatamente a haver com os mesmos valores). Até me daria algum gozo imergir pela teoria de Kohlberg, ou pelo “dilema de Heinz”, ou pelas racionalizações post hoc… mas, sinceramente, hoje não me apetece. Apenas dizer que admiro gente que ainda consegue ser isenta, coerente e capaz de agir em conformidade. Noutros tempos, antes do novo politicamente correto, dir-se-ia “com [fruto vermelho ou verde, começado por T, no plural]”.

“Quero lá saber”. Eis o que costumo chamar de desporto nacional de há uns anos para cá. Incitar para uma apologia da indiferença tem sido a solução para o desnorte a que fomos votados nos últimos anos, até por questões de sanidade mental. Esta espécie de “tanto faz" esconde o facto de que praticar a indiferença é, quase sempre, praticar a desumanidade. Numa semana em que celebramos José Saramago, lembremo-nos daquilo a que chamou doença do espírito, afirmando que “estamos todos moralmente doentes” quando vivemos uma vida centrada apenas no triunfo pessoal. Resistir à indiferença é um sinal de coragem, e faz-nos sentir inteiros, mesmo que por vezes isso seja confundido com ingenuidade. É o que permite alimentar a indignação espontânea, aquela que é a boa, a verdadeira indignação, como lhe chamou o nosso nobel. Esta semana foi para mim, nesse sentido, uma lição de vida. Sermos confrontados com situações em que o nosso trabalho foi em tempos desvalorizado, no pressuposto de que alguém faria melhor, e agora, na ausência dos fazedores de milagres e de alternativas, afinal já é fantástico, faz-nos pensar o quão naïf’s estamos dispostos a parecer. Lembro-me das palavras de um amigo que dizia: “Atrás de ti virá quem de ti bom fará”.

De volta à modernidade, àquela que nos despojou do direito primordial de nos sentirmos melancólicos, improdutivos, rabugentos, desesperados ou confusos, lá vamos sendo solicitados a sorrir continuamente, a esperar contra a esperança e a ter uns bons dias. É como se estivéssemos condenados à injustiça de insistir que a felicidade deve ser norma. Adorno certamente explicaria melhor. Mas o que interessa é que chegas ao fim da semana a congratular-te com boas novas, com notícias que te fazem sentir grato por não teres sorrido de forma inautêntica e por teres superado aqueles escassos momentos em que te sentiste inquieto e enraivecido.

Termino com a insustentável leveza de Milan Kundera. O que vivemos são tempos de perturbação extraordinariamente intensa, gerada por uma sociedade que nos aliena, gera inveja, aumenta a vergonha, separa-nos uns dos outros e nos confunde. O fundamental é percebermos que, ainda que sejamos materialmente abundantes, temos quase todos um pesado tributo emocional que não se supera sem os outros. Isso ajuda-nos a aceitar que não somos tão dementes individualmente. O génio checo, escritor, exilado na França, diz-nos que todos precisamos de alguém que olhe para nós. Chama sonhadores àqueles que vivem aos olhos imaginários de quem não está presente, diferenciando-os dos demais, dos que querem ser olhados pelo público, ou por olhos conhecidos, ou apenas pelas pessoas que amam.

Por isso, esta semana termina com uma enorme satisfação, com aquele significado fabuloso de quem percebe que o tempo corre para a frente, sem regresso, e que o facto de cada movimento nosso ser sempre totalmente desconhecido para nós, não tem que ser necessariamente uma catástrofe. A eterna questão Nietzschiana do eterno retorno (ou eterna recorrência). “Não existe perfeição, apenas vida”, escreveu Kundera. E talvez nem seja aqui.

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