Uma visão cristã do trabalho
Olá amigos trabalhadores! Venho por meio deste compartilhar com vocês um pouco do que a bíblia nos ensina sobre o trabalho. Apesar de eu não ser muito ativo aqui no LinkedIn, achei que este seria o lugar mais apropriado para falar do assunto. A data de publicação, logo no primeiro dia de um novo ano, é apenas uma boa coincidência, pois estou escrevendo já a não sei quantos meses, e fui concluir justamente neste dia propício para reflexão sobre o tema.
1. Definição e introdução
A que tipo de trabalho exatamente estou me referindo? A qualquer esforço honesto realizado para obtenção de bens. Aquela ocupação à qual a maioria dos adultos se dedica oito horas por dia, cinco ou seis dias por semana, aplicando sua força e sua inteligência em uma atividade que, assim esperam, resultará em algum bem adquirido, algum salário, que pode ser uma soma de dinheiro, ou animais, ou plantas, ou objetos, ou terras.
O trabalho, essa nobre atividade através da qual muito bem pode ser feito, quer ganhe-se muito, quer pouco; esse esforço muitas vezes entediante e cansativo, mas também gratificante e recompensador, é uma parte de nossas vidas que, na minha opinião, tem sido vista de modo mais distorcido pela nossa geração do que foi por gerações passadas, e essa distorção tem nos causado muitos problemas.
Mais especificamente, o aspecto do trabalho que me parece ser o mais deturpado é o seu potencial de nos satisfazer, que tem sido superestimado. Existem pessoas que trabalham esperando obter um retorno que vai muito além daquilo que é razoável de se esperar. Por algum motivo, além de um salário no fim do mês, também esperam receber, através do trabalho, ao longo do mês e em grande quantidade, bens adicionais, imateriais, tais como alegria, felicidade e paz. Quando percebem que essa expectativa não está sendo correspondida, tais pessoas são tentadas a mudar de emprego, tal como seriam se estivessem recebendo um salário abaixo daquilo que foi acordado com um empregador, com a diferença de que não podem culpar ninguém pela sua frustração, exceto a si mesmas, por cultivarem uma expectativa indevida em relação ao seu trabalho. Mas na verdade, a não ser que tomem consciência de que sua expectativa é irrazoada, elas não perceberão a culpa que têm na própria decepção. Pelo contrário, levarão a mesma esperança para o seu próximo passo profissional, apenas para se frustrarem mais uma vez.
Minha crítica aqui não é à busca por um trabalho que se goste, mas sim ao ato de fazer do trabalho o meio principal através do qual se busca a alegria, a felicidade, a paz e a satisfação pessoal que todos nós desejamos. Na minha opinião, seria melhor para todos se as pessoas tivessem expectativas mais modestas em relação ao seu trabalho, ao invés de romantizá-lo e buscar satisfazer nele e através dele todas as suas necessidades, não apenas as físicas de comida e abrigo, mas também as espirituais de paz e felicidade. Por isso escrevo o que escrevo, para propor uma visão alternativa do trabalho, menos idealizada e mais realista, radicalmente consciente de tudo o que há de odioso no trabalho, mas sem desprezar o seu imenso valor.
Se eu fosse dar um palpite para a razão pela qual chegamos no ponto em que chegamos, isto é, de expectativas excessivamente elevadas em relação ao nosso trabalho, diria que é porque cada vez mais as pessoas têm deixado de lado coisas que poderiam de fato suprir as suas carências, mas, por não acreditarem que seriam mais felizes se tais coisas fizessem parte de suas vidas, simplesmente as ignoram. Uma dessas coisas, a principal, é Deus, e a outra é construir família. Na ausência dessas enormes fontes de satisfação, que ocupavam posições mais significativas na vida das pessoas num passado não muito distante, busca-se a mesma alegria, paz e felicidade em outro lugar, e este lugar, para boa parte das pessoas hoje, é o trabalho.
Portanto, o resumo e conclusão de tudo o que vem a seguir é este: não é bom fazer do trabalho o seu deus, a quem você recorre para que ele supra todas as suas necessidades. Inevitavelmente, você acabará se decepcionando.
Mas minhas opiniões a esse respeito pouco importam. Quero me ater mesmo é ao que a bíblia nos ensina sobre o trabalho: sua origem, as mazelas a ele associadas e seu propósito. Isso será feito em três partes. A primeira, baseada nos capítulos iniciais de Gênesis, tratará da origem do trabalho e de como ele passou a ser penoso e cansativo. A segunda, baseada no livro de Eclesiastes, mostrará como é insignificante aquilo que conseguimos obter dessa atividade. A terceira, baseada principalmente nas cartas do apóstolo Paulo, apresentará os nobres e humildes motivos que temos para trabalhar.
2. Origem do trabalho e de tudo o que amamos e detestamos nele
O trabalho tem uma origem pouco apreciada que explica porque nossas atividades profissionais, sejam elas quais forem, são, ao mesmo tempo, fonte de alegria e satisfação, mas também de tristeza e decepção.
Geralmente pensamos no trabalho como uma questão de sobrevivência, e daí supomos que sua origem está nas nossas necessidades. Achamos que trabalhamos pela necessidade que temos de comer, beber, nos aquecer e nos proteger, e de prover as mesmas coisas aos nossos filhos infantes e pais idosos. Tais necessidades são reais, e é verdade que trabalhar é, também, uma questão de sobrevivência (Pv 16:26). Mas nem sempre foi assim.
No princípio, trabalhou Deus, criando os céus e a terra e tudo o que neles existem: mares, montanhas, florestas e animais. Esse trabalho, realizado em seis dias, não foi feito por causa de uma necessidade que Deus tinha de se alimentar ou de ter um lugar para se proteger das chuvas. Ele realizou essas obras, em primeiro lugar, pelo simples prazer de vê-las concluídas (Gn 1:4,10,12,18,21,25,31), e em segundo lugar, para que o homem, a sua obra-prima, também pudesse desfrutar de sua criação (Gn 1:28-30).
Concluído este trabalho, a Bíblia nos diz que Deus descansou no sétimo dia (Gn 2:2-3). Tal maneira de falar, é bom explicar, não significa que o Deus Todo-Poderoso ficou cansado e precisou de um dia para recuperar as energias. O descanso de Deus significa que, no sétimo dia, em contraste com os dias anteriores, ele não realizou trabalho algum. Ao invés disso, ocupou-se apenas de apreciar todas as coisas boas que obteve como resultado de seu trabalho nos dias anteriores. Com este modo de agir, trabalhando seis dias e descansando um, Deus estabelece o padrão e o ritmo que deveria ser imitado pelos homens (Êx 20:8-11).
Esses que deveriam imitá-lo foram criados no sexto dia: Adão, o primeiro trabalhador, e Eva, a primeira trabalhadora. Sim, o primeiro propósito que a bíblia nos apresenta para Deus ter feito Adão é para que ele trabalhasse em seu jardim, cuidando dele e cultivando-o (Gn 2:15), e Eva para que o auxiliasse (Gn 2:20). Desde as páginas iniciais, a bíblia coloca o trabalho humano como uma atividade abençoada e desejada por Deus, e essa valorização do trabalho e do trabalhador se estende por todas as Escrituras.
Mas naqueles primeiros dias o trabalho humano era diferente do que é hoje. Assim como Deus não tinha nenhuma necessidade de sobrevivência, o homem, a quem Deus dera livre acesso à árvore da vida (Gn 2:9), também não tinha. A capacidade para trabalhar não foi dada por Deus aos homens como um meio de sobrevivência, e o ofício da jardinagem não foi um fardo que Deus impôs sobre Adão e Eva. Ao contrário, o trabalho foi um privilégio que Deus concedeu ao primeiro casal: o privilégio de empregar o seu fôlego de vida, sua força e sua inteligência na transformação de algo que já era bom em algo melhor ainda, mais belo, mais admirável, mais agradável, para seu próprio proveito e para alegrar a Deus, seu Criador.
Assim eram as coisas no princípio: Adão e Eva trabalhavam pelo simples prazer de realizar a vontade de Deus e de se obter resultados desejáveis dos seus trabalhos.
Essa situação, no entanto, não durou muito.
Maldições relacionadas ao trabalho
Tudo mudou quando Deus, em resposta ao primeiro ato de desobediência do casal, impôs sobre eles e sobre sua posteridade um pesado castigo que, somados à própria natureza pecaminosa do homem, alterou de modo definitivo todas as áreas de nossas vidas, inclusive nosso trabalho (Gn 3:14-19), que foi afetado de pelo menos três formas.
Em primeiro lugar, desde aquele fatídico dia da primeira desobediência humana (Gn 3:6), a natureza passou a trabalhar contra o homem, ora tornando o seu trabalho infrutífero, ora destruindo os frutos do seu trabalho (Gn 3:17-19). Junto com a videira plantada passa a crescer a erva daninha para sufocá-la. Nas áreas boas para se cultivar um jardim passam a crescer espinhos que não podem ser removidos sem dor e sofrimento. A ferrugem agora corrói nossas ferramentas, e as traças consomem nossas roupas, livros e móveis. O musgo toma o lugar da bela pintura, e os maremotos engolem as nossas mais imponentes obras arquitetônicas. Basta uma geada para tornar o plantio inútil, e um pouco de umidade para destruir todos os nossos arquivos armazenados digitalmente.
Em segundo lugar, o corpo do homem passa a perder seu vigor, pouco a pouco, ano após ano, até que um dia ele retorna ao pó, de onde foi tirado (Gn 3:19). Sem acesso à árvore da vida e proibido de entrar no jardim do qual foi expulso, o homem precisa estar sempre correndo atrás do seu sustento, um trabalho ingrato por meio do qual ele consegue, quando muito, sobreviver durante setenta ou oitenta anos (Sl 90:10), mas que, em última instância, é incapaz de livrá-lo do seu destino final, que é a sepultura. Não bastasse isso, desde então temos corrido atrás do pão de cada dia com corpos defeituosos. Nossos músculos, cada vez mais fracos com a idade, são cada vez menos úteis no campo; a febre nos atrapalha a fazer contas; a náusea nos distrai em reuniões importantes; a vista cansada provoca acidentes no trânsito; e os hormônios desregulados tiram todo o nosso ânimo para qualquer atividade.
Em terceiro lugar, assim como os demais relacionamentos humanos, as relações trabalhistas também foram e tem sido afetadas com a pecaminosa insubordinação a Deus. Desde que a humanidade optou pela inimizade com o Criador, nós somos pecadores trabalhando com pecadores para pecadores. Por essa razão, patrões não tratam seus empregados como deveriam, empregados não tratam seus patrões como deveriam e clientes não tratam prestadores de serviço como deveriam. Por um lado, empregados espalham fofoca sobre seus patrões, montam nas costas uns dos outros e se aproveitam da ingenuidade dos novatos. Por outro, empregadores abusam do fato de que seus empregados dependem dele para sustentarem suas famílias, são incompreensivos com as demandas deles, agem desonestamente e obrigam seus funcionários a fazerem o mesmo ao lidar com clientes. Seja qual for o ambiente de trabalho para o qual olhemos, ali se achará, em maior ou menor grau, desrespeito mútuo, ofensas gratuitas e ética desvirtuada.
3. Encarando a realidade como ela é
Na tentativa de escapar das desgraças acima, algumas pessoas vivem saltando de emprego em emprego, à procura do antigo jardim do Éden, onde não há dor, nem suor, nem ofensas, nem injustiças. Daí, depois de encontrarem o que acreditam ser o emprego dos sonhos, se entregam totalmente a ele, sacrificando todas as outras áreas de sua vida, na expectativa de obter do seu árduo trabalho, além de um bom salário, a muito desejada satisfação pessoal.
No entanto, as desastrosas consequências da insubmissão a Deus, bem como o justo castigo que Deus nos aplica por essa atitude, são inescapáveis, independente da época e lugar em que estivermos, razão pela qual toda busca pelo emprego perfeito, o trabalho ideal que só nos trará alegrias sem fim, está fadada ao fracasso, e para sempre estará, até o fim da era presente.
Os profetas e apóstolos, na contramão de todos aqueles que romantizam o trabalho, nos ensinam a encarar a realidade como ela é, reconhecendo que o trabalho é tanto um fardo muitas vezes difícil de suportar, quanto também uma potencial fonte de alegria para nós mesmos e para o nosso próximo, desde que ele seja realizado com contentamento e gratidão.
De todos os profetas, aquele que mais extensamente discorreu sobre as mazelas e benesses do trabalho foi Salomão no livro de Eclesiastes. O livro registra algumas de suas reflexões e ensinos sobre a "vida debaixo do sol" (Ec 1:3). Essa expressão, que se repete por diversas vezes vezes ao longo do livro, é usada pelo profeta em dois sentidos: um sentido mais amplo, referente a nossa vida como um todo — a tudo o que fazemos nos poucos dias de vida que temos nessa terra (Ec 2:3) — e outro mais específico, referente aos trabalhos feitos debaixo do sol. Em ambos os sentidos, a conclusão do mestre é a mesma: nada faz sentido, é tudo inútil e insignificante, é correr atrás do vento (Ec 1:2).
Uma das principais razões para Salomão se expressar de forma tão amarga sobre o trabalho é a perda inevitável de tudo quanto nos esforçamos rotineiramente para conquistar.
A perda diária de nossas conquistas
Algumas perdas são diárias. Todo dia, ou pior, toda hora, perdemos a saciedade da comida e a alegria da bebida que, com o suor do nosso trabalho, foram conquistadas. Daí trabalhamos para "repor" o que perdemos. E depois perdemos o que foi reposto, e repomos novamente. E assim, de perda em perda, vamos vivendo. Nada do que conquistamos pela força de nosso braço — força esta que também perdemos diariamente — consegue nos satisfazer de modo permanente (Ec 1:8; 4:8).
O que Salomão observa, no entanto, é que essa fragilidade de nossas conquistas não impede os tolos de direcionar toda a sua força e energia na busca por coisas que tem vida breve. Aliás, boa parte daquilo que se almeja conquistar pelo trabalho duro se encaixa nessa categoria. Considere, por exemplo, a alegria da bebida e do entretenimento em geral. Não há dúvida de que estas coisas consistem no fim último pelo qual trabalham grande parte das pessoas (Ec 10:19) — e não há nada de novo nisso, pois tem sido assim desde a antiguidade. Tais pessoas trabalham para ajuntar dinheiro para comprar essas alegrias no final de semana e nas férias, o que não é necessariamente errado, mas continua sendo tolice fazer dessas coisas o bem maior pelo qual você trabalha. O vinho e a cerveja podem levantar o seu humor apenas durante algum tempo, e os jogos e filmes só são divertidos por algumas horas, depois das quais vem o tédio.
A fim de contornar essa realidade e aumentar a duração de sua felicidade, o homem busca, então, alternar entre prazeres, ora se divertindo de uma forma, ora de outra. A ideia é que, depois de enjoar do álcool, ele possa ir para a música, depois para o futebol, depois para o cigarro, depois para o teatro, depois para outra diversão qualquer, até que já tenha passado tempo o suficiente desde que bebeu para que possa recomeçar o ciclo. Então, a fim de aumentar o número de opções de entretenimento às quais ele tem acesso e assim multiplicar seus momentos de alegria, ele precisa de mais dinheiro, o que o faz trabalhar ainda mais arduamente, para poder ir a mais shows, fazer mais viagens e comprar cervejas de maior qualidade.
Aos poucos, mas sem perceber, tal pessoa vai se esgotando. Ela celebra cada aumento de salário como mais um passo dado em direção ao seu objetivo, sem nunca se dar conta de que não está nem um pouco mais próxima de alcançá-lo do que quando começou a persegui-lo. Tal esforço é insano, vão, inútil, sem sentido. Não é preciso ter a sabedoria de Salomão para notar como é grande o número de pessoas de poucas posses e com poucas opções de divertimento, mas que transbordam paz e alegria, ao mesmo tempo como é comum vermos ricos e super ricos, que tem acesso ilimitado a todo tipo de entretenimento, mas que são carregados de tristeza e amargura, o que nos mostra claramente que o acúmulo de riquezas por intermédio do trabalho não é o caminho para a felicidade.
Igualmente cegas estão outras pessoas, de gosto mais "refinado", cujo maior prazer maior não está nas coisas materiais que estimulam nossos sentidos, mas na ciência e filosofia impalpáveis que estimulam nossas mentes. Talvez conscientes de que as riquezas não lhes trarão felicidade, essas pessoas buscam satisfazer-se através do acúmulo de conhecimento. Se dedicam aos livros, às aulas, às palestras e aos simpósios. Seguem as grandes mentes da nossa época, ouvem atentamente todas as suas palavras, sempre desejando conhecer aquilo que há de mais avançado, mais sólido e mais verdadeiro em todas as áreas do conhecimento.
Mas, assim como a sede dos olhos pelos bens materiais é insaciável, a fome dos ouvidos pelo conhecimento também é (Ec 1:8). A alegria e satisfação de ter aprendido algo novo não é mais duradoura do que a de ter saboreado uma refeição deliciosa. Logo se terá fome de conhecimento de novo, o que levará a pessoa a estudar cada vez mais, e a cansar-se cada vez mais, em vão, inutilmente, sem nunca alcançar a paz, alegria e tranquilidade que têm pessoas muito menos estudadas. Ironicamente, o que acontece é justamente o contrário, pois quanto maior a sabedoria, maior o sofrimento, e quanto maior o conhecimento, maior o desgosto (Ec 1:18).
A perda final das nossas conquistas
Outras perdas são finais, no dia da nossa morte, quando deixamos tudo para trás. Todas as riquezas acumuladas, projetos concluídos, livros escritos, invenções criadas, enfim, perdemos absolutamente todas as nossas realizações, desde as menores até as maiores. Nenhuma delas nos acompanha na sepultura (Ec 5:15).
Algumas pessoas, ao ponderar sobre essa realidade trágica, encontram conforto no pensamento altruísta de que que pelo menos a geração seguinte poderá desfrutar do seu legado, e que portanto nem tudo foi em vão. Mas, nesse mundo de pecadores, não há muitos motivos para cultivar tal esperança. Um homem pode ser um excelente administrador de suas riquezas e ajudar muita gente com elas. Mas depois que ele morrer, todos os seus bens ficarão para seus filhos e netos. E quem pode dizer se eles farão bom uso dessa herança (Ec 2:18,19)? Talvez hajam como o filho da parábola, que desperdiçou irresponsavelmente toda a sua parte da herança (Lc 15:13). Ou pior, talvez usem as riquezas deixadas para financiar projetos malignos. Nesses casos, melhor seria se tais indivíduos não recebessem herança alguma.
Não apenas os bens materiais deixados podem ser desperdiçados e mal aproveitados pela posteridade como também outros tipos de legado. Por exemplo, um rei ou governante sábio pode, através de boas políticas, bem estruturadas e aplicadas, deixar para o seu sucessor uma nação próspera, segura e em ordem. Mas aquilo que é construído à duras penas ao longo de muitos anos pode ser facilmente desfeito em poucos anos de novo governo. Outro exemplo, os ensinamentos passados de uma geração para outra, por mais sólidos e verdadeiros que sejam e por maior que seja o empenho e dedicação na transmissão deles, também podem ser abandonados, esquecidos e até combatidos pelos jovens que os recebem.
No final das contas, fato é que todos os frutos do nosso trabalho têm uma data de validade, uma morte certa, que pode ser daqui a algumas horas ou daqui a alguns séculos. Mais cedo ou mais tarde tudo será perdido, até a memória de quem fomos e do que fizemos se perderá no mar do esquecimento, pois nada nem ninguém é lembrado para sempre (Ec 1:11).
Alguns poderão dizer que as considerações acima subestimam o impacto que as nossas ações podem ter na humanidade, sendo inclusive incoerentes com a história, pois se chegamos até aqui é porque estamos, como se diz, "montados nos ombros de gigantes", cujas conquistas atravessaram séculos para que usufruíssemos delas hoje. A ciência e tecnologia modernas, por exemplo, são produto do duro trabalho de centenas de gerações. Os prédios e computadores atuais só existem graças ao trabalho dos antigos de desenvolver e ensinar a aritmética básica. As formas de governo descentralizado que muito valorizamos hoje devem sua existência às contribuições dos pensadores do passado. E aqueles mais simpáticos aos valores amplamente cultivados pela geração atual acrescentarão que também progredimos moralmente com o passar dos séculos, uma conquista de educadores e filósofos de diferentes épocas.
Tais observações, no entanto, são todas questionáveis. Elas fazem confusão entre quantidade de bens e qualidade de vida; entre governo democrático e bom governo; entre comportamento socialmente aceitável e comportamento objetivamente moral. Dizer que nossas tecnologias são melhores que as do passado, e que temos e produzimos mais bens atualmente do que antes, e que essas conquistas são resultado de séculos de estudo e trabalho é uma coisa com a qual qualquer um pode concordar, assim como concordamos que a tecnologia disponível nos tempos de Salomão era melhor do que a disponível nos tempos de Abraão. Mas e daí? O que a quantidade de bens tem a ver com qualidade de vida que temos? Apenas uma pessoa muito iludida pode cultivar a ideia absurda de que existe uma relação direta entre as riquezas e o conhecimento de uma geração e sua qualidade de vida, sua paz e sua alegria. Se essa relação não existe no nível individual, tampouco existirá em toda uma geração. Basta dar uma olhada ao seu redor. Por acaso há alguma razão para acreditar que a quantidade de pessoas deprimidas, ansiosas e amarguradas atualmente é menor do que no passado?
Assim como a quantidade de bens não faz uma época ou lugar mais desejável de se viver do que outro, também a forma de governo não o faz. É verdade que, atualmente, predominam as formas democráticas, enquanto que no passado tínhamos monarquias. Mas novamente cabe a pergunta: e daí? Os presidentes de agora são melhores que os reis de outrora? Findaram-se a incompetência, a corrupção e as guerras? Se não, por que alguém deveria achar que estamos melhor agora do que estávamos a quatrocentos anos atrás? Se tivéssemos, de fato, progredido moralmente, teríamos alguma razão para suspeitar que os governos atuais são melhores. Mas o suposto progresso moral, biblicamente falando, também é uma ilusão. O fato de nós do século XXI sermos libertinos como Sodoma e corruptos como alguns antigos papas não são coisas das quais devemos nos gabar.
Em suma, o legado científico, tecnológico, filosófico e moral que recebemos não nos rendeu nenhuma vantagem significativa, exceto que agora temos maior capacidade de produção de bens desnecessários e formas mais eficazes de matar uns aos outros. Que avanço!
No final das contas, o mundo continua a mesma coisa desde que Adão e Eva foram expulsos do jardim, com os mesmos problemas e pecados de sempre, mudando apenas a geração que nele habita (Ec 1:4). Tirando isso, não há nada de novo debaixo do céu (Ec 1:9), e isso não mudará, até que chegue o novo céu e a nova terra onde habita a Justiça (2Pe 3:13).
Evidências da insignificância de nosso trabalho e de seus frutos
Considerando o baixo alcance e a breve vida que têm as nossas conquistas, podemos dizer que, nesses aspectos, nosso trabalho e os frutos que dele obtemos são insignificantes. Isso não quer dizer que eles sejam completamente insignificantes em todos os sentidos — mais sobre isso abaixo. Mas quando se trata, principalmente, da duração dos benefícios conquistados com a força de nosso braço, essa duração é minúscula, ridícula, insignificante.
Veja o que restou do trabalho das dezenas de bilhões de pessoas que nos antecederam debaixo do sol. Homens e mulheres têm trabalhado por mais de cinco mil anos, mas, de tudo o que já se fez e se conquistou, a grande maioria já se perdeu, e se perdeu rapidamente. A maior parte daquilo que uma geração conquista através do trabalho precisa ser reconquistado pela geração seguinte. Em toda geração você verá os mesmos trabalhos de sempre sendo realizados: agricultura, segurança pública, administração, transporte, governo, entretenimento, etc, mas os problemas da fome, da violência, da doença, da desordem, da distância, da injustiça e da tristeza — problemas que estamos sempre trabalhando para combater — estão sempre presentes, sendo frequentemente agravados, o que mostra a insignificância das conquistas de uma geração para a geração seguinte (Ec 1:9).
No âmbito da justiça de uma nação, por exemplo, é possível que uma geração consiga grandes avanços no combate ao racismo, ou ao autoritarismo, ou a qualquer outro tipo de injustiça. Mas, infelizmente, a história se repete, recaímos sempre nos mesmos erros, e aquilo que se conquistou no passado precisa ser reconquistado no presente. E esse fenômeno cíclico não é apenas intergeracional. Um mesmo indivíduo, se viver tempo o suficiente, pode ver com seus próprios olhos ciclos de avanços e retrocessos da sociedade em diferentes áreas: na educação, na moral, na segurança, na economia, etc. Quando testemunhamos isso, é comum termos a sensação de que estamos sempre andando em círculos. Mas mais do que um sensação, é uma verdade. Somente alguém jovem ou ingênuo o suficiente pode dizer de algo: "Veja! Isso é novo!", mas os velhos e os sábios sabem que não há nada de novo debaixo do sol (Ec 1:10). Nenhum avanço ou retrocesso é tão novo que já não tenha acontecido no passado em algum lugar.
As maiores conquistas já realizadas também são insignificantes
Talvez te pareça estranho dizer que tudo o que se conquista através do trabalho duro é insignificante, tendo em vista os muitos exemplos que temos de conquistas que, aparentemente, não são tão insignificantes assim. Estou pensando, por exemplo, nas várias obras clássicas da ciência e da filosofia, que nos serviram por séculos e nos guiaram até aqui. Será que podemos chamar as obras de Platão, Aristóteles, Agostinho ou Newton de insignificantes, ao mesmo tempo em que hoje, séculos depois, não apenas as estudamos como também as aplicamos na prática, seja em nosso modo de pensar ou de fazer as coisas?
A minha resposta é que, em primeiro lugar, sendo bem otimista, tais personagens e suas respectivas contribuições só podem ser considerados, no melhor dos casos, como raras exceções à regra geral. O número de trabalhos concluídos que não tem a mesma longevidade é muito maior. Mais impressionante do que a sobrevida das obras mencionadas acima é o fato de que, na multidão de realizações de bilhões de pessoas que já existiram, apenas algumas poucas sejam lembradas e utilizadas hoje. Essa constatação significa, entre outras coisas, que muito provavelmente nem eu nem você entraremos para essa lista de personagens notáveis.
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Em segundo lugar, o fato de que o mundo como o conhecemos só existe por causa do legado de gigantes que nos precederam não se deve à uma vitalidade intrínseca do trabalho deles, mas do empenho das gerações subsequentes em preservá-las e transmiti-las até hoje. O que foi ensinado por Platão não tem, por si só, uma durabilidade natural que o fez atravessar os séculos. Essa aparente perenidade não depende do trabalho do autor. Ela se deve, em grande medida, ao trabalho daqueles que se interessaram por esses ensinos e julgaram importante repassá-los à posteridade. Outras obras de outros autores não foram consideradas dignas dessa honra e se perderam. Ou seja, a longevidade das nossas conquistas não depende tanto do nosso suor quanto depende da vontade dos nossos herdeiros. Não fosse o interesse das gerações subsequentes, o Organon de Aristóteles também se perderia.
Em terceiro lugar, o fato de que as obras dos grandes mestres do passado ainda estão disponíveis para nossa instrução nos livros que escreveram não significa que nós temos, de fato, prestado atenção a eles, o que as torna tão insignificantes quanto se já as tivéssemos perdido.
Por essas razões, a minha opinião é que a insignificância não é uma característica exclusiva apenas da maioria das coisas conquistadas pelo trabalho humano, mas de todas elas. As únicas verdadeiras exceções a essa regra são aquelas de origem divina, como a palavra de Deus, e o trabalho da igreja de pescar homens, que resulta em almas eternamente salvas. O resto é resto. O belíssimo Taj Mahal está destinado a virar ruína, e quando ninguém mais quiser saber do entendimento de Agostinho sobre como conhecemos as coisas, sua obra De Magistro, por mais inteligente que seja, também seguirá o curso natural de todas as coisas, que é morrer e ser esquecida para sempre.
4. Motivações bíblicas para trabalhar
Visto, portanto, que temos tão poucos motivos para esperar grandes coisas de nosso trabalho, é necessário repensar as razões pelas quais trabalhamos, pois enquanto alimentarmos em nosso coração a vã expectativa de que por meio do trabalho vamos adquirir bens materiais e imateriais que nos farão cada vez mais felizes quanto mais os acumularmos, seremos constantemente frustrados pela realidade, que é muito mais dura do que queremos admitir. A superioridade da visão bíblica sobre o trabalho está no fato de que ela é capaz de reconhecer todas as mazelas relacionadas a ele ao mesmo tempo em que consegue nos apontar o caminho para vivermos contentes apesar de todos os pesares.
De fato, o contentamento com o nosso trabalho e com o salário que dele recebemos é uma constante ordenança dos profetas e apóstolos. Essa atitude faz com que sejamos capazes de nos alegrar com aquilo que recebemos, quer seja pouco, quer muito, e refreia nossos desejos pecaminosos de enriquecer desonestamente. João Batista, quando procurado por alguns soldados recém convertidos em busca de instrução, orientou-os: "Não pratiquem extorsão nem acusem ninguém falsamente; contentem-se com o seu salário" (Lc 3:14). Paulo, querendo recomendar a Timóteo um caminho diferente daquele seguido por falsos mestres que buscavam lucrar em cima da fé dos incautos, ensina que "a piedade com contentamento é grande fonte de lucro, pois nada trouxemos para este mundo e dele nada podemos levar; por isso, tendo o que comer e com que vestir-nos, estejamos com isso satisfeitos" (1Tm 6:6-8). A mesma orientação é dada pelo autor de Hebreus, que diz: "Conservem-se livres do amor ao dinheiro e contentem-se com o que vocês têm, porque Deus mesmo disse: 'Nunca o deixarei, nunca o abandonarei'" (Hb 13:5). Em suma, devemos estar dispostos a orar como orou o sábio: "Duas coisas peço que me dês antes que eu morra: [...] não me dês nem pobreza nem riqueza; dá-me apenas o alimento necessário" (Pv 30:7-9).
No entanto, é muito difícil enxergar como podemos viver contentes com o que temos se cultivarmos a ideia de que nossa felicidade depende dos bens que possuímos, da função que desempenhamos ou dos diplomas que obtemos. Muitos pensam que a verdadeira felicidade só é alcançada quando realizamos os nossos mais altos sonhos profissionais ou acadêmicos. Estes são aqueles que acham que seu descontentamento com a vida e consigo mesmos decorre do seu salário ou da sua ocupação atuais. Pensam isso por causa de uma visão nocivamente romântica do trabalho, como se ele fosse a chave para a satisfação pessoal. Logo, concluem que se não estão felizes, isso se deve ao emprego que possuem, ou o quanto ganham nesse emprego, o que é um absurdo. Abandonemos, então, de uma vez por todas, a miragem do trabalho perfeito por meio do qual alcançaremos tudo o que é necessário para vivermos felizes e satisfeitos. Abandonemos também toda ganância, ambição, cobiça, egoísmo e inveja, que nos fazem esperar do trabalho muito mais do que é razoável de se esperar. Uma vez feito isso, estaremos preparados para ouvir o que a bíblia tem a dizer para nos motivar a trabalhar.
a. Trabalhar para desfrutar do seu trabalho
Por mais contundentes que sejam as críticas de Salomão ao esforço exagerado que se faz por coisas efêmeras (ele mesmo reconhece ter sido culpado deste erro — Ec 1:12-2:22) e por maior que seja o seu desprezo pelos prazeres que nós que estamos debaixo do sol buscamos, não devemos concluir disso que há algo de ilegítimo em ter como uma das finalidades para se trabalhar a auto-satisfação, o benefício próprio, seja por meio do exercício do trabalho em si, seja por meio dos bens obtidos dele. É realmente lamentável que nosso trabalho tenha sido de tal maneira prejudicado pelo justo castigo de Deus que jamais alcançamos algo que não seja perecível. Mas há de se reconhecer que ainda que nossas conquistas não tenham nenhum valor permanente, elas são capazes de gerar em nós e nas pessoas ao nosso redor alguma pequena alegria que seja, assim como a rosa colhida, que logo logo vai murchar, perfuma a casa enquanto vive.
O mesmo profeta que não poupa adjetivos negativos para caracterizar tudo o que se faz debaixo do sol — vaidade, inútil, absurdo, insignificante, sem valor, infrutífero — também reconhece, repetidas vezes, que para o homem não existe nada melhor do que comer, beber e encontrar prazer em seu trabalho, e que isso vem da mão de Deus (Ec 2:24; 3:13,22; 5:18-20; 6:6; 8:15; 9:7-10). Afinal de contas, uma vez que estamos todos destinados a passar a vida inteira trabalhando com muita dor, suor e sofrimento debaixo do sol, fadados a perder noites de sono por causa de tristezas e ansiedades relacionados ao trabalho (Ec 2:22,23), raramente recompensados com bens proporcionais aos esforços empreendidos para obtê-los, o melhor que o homem pode fazer é aproveitar bem as migalhas de alegria que ele, porventura, se Deus permitir, venha a colher do seu trabalho (Ec 5:11).
Portanto, se, por um lado, o reconhecimento de que vivemos em um mundo de perdas constantes diminui consideravelmente nossas expectativas de ganhos significativos por meio do trabalho, por outro, também nos faz ainda mais atentos e gratos pelas pequenas conquistas obtidas, pois isso é o máximo que poderíamos esperar no mundo em que vivemos. A visão contraposta, que eleva o trabalho à posição de um redentor que nos liberta das nossas aflições, é cega para o que é pequeno mas concreto, pois está focada demais no que é grande mas distante.
Salomão ilustra esse absurdo com a seguinte situação:
Havia um homem totalmente solitário; não tinha filho nem irmão. Trabalhava sem parar! Contudo, os seus olhos não se satisfaziam com a sua riqueza. Ele sequer perguntava: “Para quem estou trabalhando tanto, e por que razão deixo de me divertir?” Isso também é absurdo; é um trabalho por demais ingrato! (Ec 4:8)
Esse homem trabalhava visando... o quê? Ele não precisava sustentar ninguém, e claramente tinha o suficiente para se manter. Mas, ao invés de parar um pouco para olhar para o que já obteve e desfrutar de suas conquistas, com as quais estava sempre insatisfeito, seus olhos estavam constantemente fitos nas riquezas que ele não tinha.
Essa é uma das poucas passagens na bíblia que fala de modo favorável à diversão. Você, pecador como eu, pode imaginar o por quê. Raramente as pessoas precisam ser exortadas a divertir-se mais. Nesse quesito, normalmente somos culpados de excessos, e não de falta. Mas existem pessoas tão focadas em acumular riquezas que não param nem sequer para usufruir delas. Considerando a brevidade da vida e dos nossos bens, essa atitude é de fato insana e auto-destrutiva. É insana porque ninguém sabe quanto tempo de vida ainda lhe resta, ou mesmo por quanto tempo ela terá posse dos bens honestamente adquiridos. Por isso, adiar o usufruto desses bens não faz sentido. E é também auto-destrutiva porque tal pessoa está se privando justamente daquilo que torna o fardo do trabalho suportável. Uma hora ou outra ela será esmagada pelo peso de seu próprio trabalho, suas energias se esgotarão, seu combustível será totalmente queimado (burnout), seu espírito cairá em depressão, e as muitas riquezas acumuladas não poderão fazer nada para tirá-la dessa situação.
Disso aprendemos que aproveitar daquilo que recebemos como recompensa pelo nosso trabalho, mais do que uma atitude lícita permitida por Deus, é a atitude sábia a se tomar, contrastando-se com a loucura do homem da ilustração acima. Sendo assim, creio que aqui temos uma primeira motivação para trabalhar: para alegrar-se com os frutos dele obtidos. Apesar de não existir nenhuma garantia do tamanho da colheita, e ainda que na maior parte das vezes ela seja pequena, o trabalho ainda vale a pena, pois os poucos frutos que dele obtivermos poderão trazer um pouco de alegria ao nosso coração, se nos dermos o prazer de usufruir deles.
Mas, mais do que uma atividade que visa um benefício próprio (o que, ressalto, é perfeitamente lícito), o nosso trabalho deve ser visto como uma maneira de fazer o bem ao nosso próximo. Sobre isso, o apóstolo Paulo tem muito a nos ensinar.
b. Trabalhar para não depender de ninguém
A independência financeira é uma excelente maneira de ajudar o próximo. Ela faz com que deixemos de ser um peso para aqueles de quem dependemos, aliviando, assim, o fardo que carregam nesta vida debaixo do sol. Em um mundo de dores, cansaço e pobreza, o simples ato de evitar ser custoso para os outros já é de grande ajuda. Isso motivava o apóstolo Paulo de tal maneira que ele não se importava de trabalhar em dobro a fim de não ser pesado para ninguém (2Co 11:9). Seu exemplo merece ser observado de perto, e sua palavra sobre o assunto acatadas como verdadeiramente são: palavra de Deus (1Ts 2:13).
Paulo foi o último homem que o Senhor Jesus, já ressurreto, escolheu para ser seu apóstolo (At 9:1ss). Desde o momento do seu chamado até o seu martírio cerca de trinta anos depois, dedicou-se à missão recebida diligentemente, viajando por toda a região leste do Império Romano pregando o arrependimento e a fé em Jesus (At 20:21). Nas cidades por onde ele passava e sua mensagem era recebida com fé, fundava igrejas com as quais mantinha contato através de correspondências depois de sua partida.
Mas Paulo, embora tivesse assumido cem por cento a sua função apostólica, nunca deixou de ser um trabalhador comum. Quando lemos a narrativa de sua estadia em Corinto, por exemplo, aprendemos que ele era um fazedor de tendas (At 18:3), profissão que ele exercia em paralelo ao seu trabalho como apóstolo. Longe de ser um caso isolado, este também foi o seu procedimento nas cidades de Tessalônica (2Ts 3:7,8), Éfeso (At 20:33-35) e, ao que tudo indica, em toda cidade por onde passou, pelo menos em sua primeira visita ao local, não necessariamente sempre realizando o mesmo trabalho de fabricar tendas, mas sempre trabalhando de alguma forma para sustentar-se a si mesmo, rejeitando o salário do qual ele, como pastor das igrejas que fundou, era digno (Mt 10:10).
O que motivava Paulo a agir desse modo? Certamente não era ficar rico, do contrário não abriria mão do seu direito ao salário de pregador e apóstolo. Também não era proporcionar uma vida confortável para si mesmo, pois deliberadamente colocou sobre si um fardo acima do que normalmente as pessoas carregam. Mas, apesar de todos os pesares, ao colocar na balança, de um lado, todo o desgaste ao qual ele se submeteria trabalhando em jornada dupla, e de outro, o benefício usufruído por aqueles que não teriam que providenciar-lhe um salário (ainda que o custo deste salário fosse diluído entre vários irmãos), o apóstolo julgou que o sacrifício valeria a pena. Ele sabia que poder arcar com os próprios custos significava que outros não teriam que fazê-lo, e isso era para ele motivação o suficiente para trabalhar.
Essa era uma das formas que Paulo tinha para expressar o seu amor por aqueles irmãos. Conforme o apóstolo nos ensina, amar o próximo é tratá-lo como Deus quer que ele seja tratado, o que pode ser aprendido conhecendo os seus mandamentos (Rm 13:8-10), e vários dos mandamentos mostram, de uma maneira ou de outra, o desejo de Deus de que nós trabalhemos para não sermos pesados para as pessoas ao nosso redor.
Para citar apenas um exemplo, considere as muitas palavras que Salomão e outros profetas inspirados por Deus escreveram contra a preguiça. O preguiçoso passa fome (Pv 19:15), o seu telhado se enverga, a sua casa tem goteiras (Ec 10:18). Ele desperdiça seus bens (Pv 12:27), seu caminho é espinhoso (Pv 15:19), ele não se prepara para o futuro (Pv 20:4) e vive insatisfeito porque não trabalha para obter as coisas que deseja (Pv 21:15). Ele passa o dia revirando-se na cama, inventando desculpas para não trabalhar (Pv 22:13), sua casa é mal cuidada (Pv 24:30-34), bem como sua plantação. Mais cedo ou mais tarde, o preguiçoso é surpreendido pela pobreza, pela miséria e pela fome (Pv 24:34).
A preguiça não seria algo tão ruim se o único prejudicado por ela fosse o próprio preguiçoso. Mas não é isso o que acontece. Sua família sofre com ele, compartilhando de sua fome e sua miséria, morando na mesma casa mal cuidada, com conforto aquém do que poderia ser. Se for solteiro, o prejuízo recai sobre aqueles que o sustentam, que geralmente são seus pais. Se for casado e tiver filhos, estes são obrigados a começar a trabalhar cedo, pois não podem contar com a providência do pai. Pelo contrário, muito provavelmente recairá sobre eles o sustento daquele que deveria sustentá-los. Portanto, a pessoa que não evita colocar-se numa situação de necessidade não apenas age imprudentemente contra si mesma mas também revela uma falta de consideração para com as pessoas ao seu redor: sua família, sua vizinhança, sua igreja, entre outras.
No seu tempo, Paulo teve que lidar com pessoas ociosas que se aproveitavam da boa vontade dos irmãos. Na igreja de Tessalônica em particular, alguns irmãos estavam intrometendo-se na vida alheia de modo interesseiro, aproximando-se de irmãos para parasitar os seus bens, a fim de não terem que trabalhar para se sustentar, uma atitude diametralmente oposta ao exemplo que receberam do apóstolo. Quando esteve presente na cidade, Paulo já os havia repreendido por causa disso (2Ts 3:10), mas parece que pouca coisa mudou depois de sua partida, o que o levou a tratar do assunto mais duas vezes por correspondência.
Na primeira de suas cartas, ele os admoesta com as seguintes palavras:
Esforcem-se para ter uma vida tranquila, cuidar dos seus próprios negócios e trabalhar com as próprias mãos, como nós os instruímos; a fim de que andem decentemente aos olhos dos que são de fora e não dependam de ninguém. (1Ts 4:11,12)
De modo sucinto, o recado foi dado: "Trabalhem com suas próprias mãos e não dependam de ninguém". Mas ao que tudo indica, os que estavam vivendo ociosamente não lhe deram ouvidos, fazendo-se necessário mais uma exortação do apóstolo em sua segunda carta, desta vez num tom muito mais duro e incisivo, dirigindo-se não apenas aos ociosos, mas alertando a igreja como um todo:
Irmãos, em nome do nosso Senhor Jesus Cristo nós ordenamos que se afastem de todo irmão que vive ociosamente e não conforme a tradição que vocês receberam de nós. Pois vocês mesmos sabem como devem seguir o nosso exemplo, porque não vivemos ociosamente quando estivemos entre vocês, nem comemos coisa alguma à custa de ninguém. Ao contrário, trabalhamos arduamente e com fadiga, dia e noite, para não sermos pesados a nenhum de vocês, não porque não tivéssemos tal direito, mas para que nos tornássemos um modelo para ser imitado por vocês. Quando ainda estávamos com vocês, nós ordenamos isto: Se alguém não quiser trabalhar, também não coma.
Pois ouvimos que alguns de vocês estão ociosos; não trabalham, mas andam se intrometendo na vida alheia. A tais pessoas ordenamos e exortamos no Senhor Jesus Cristo que trabalhem tranquilamente e comam o seu próprio pão. Quanto a vocês, irmãos, nunca se cansem de fazer o bem.
Se alguém desobedecer ao que dizemos nesta carta, marquem-no e não se associem com ele, para que se sinta envergonhado; contudo, não o considerem como inimigo, mas chamem a atenção dele como irmão. (2Ts 3:6-15)
A severidade com que Paulo trata do assunto revela a importância que devemos dar ao trabalho como meio de alcançar a independência financeira. Adultos saudáveis, aptos para trabalhar, mas que se recusam a fazê-lo, estão em pecado e devem ser repreendidos e disciplinados por isso. Trabalhar visando ganhar um salário decente não é coisa de gente gananciosa, é coisa de gente que se preocupa com o bem-estar das pessoas que se ama, o que nos leva a uma terceira motivação bíblica para trabalhar.
c. Trabalhar para ter com o que ajudar aos necessitados
Mais do que um meio através do qual conseguimos evitar sermos pesados para os outros, o trabalho nos possibilita ajudar aqueles que (verdadeiramente) precisam de ajuda, uma lição que também aprendemos com Paulo. Dirigindo-se pela última vez aos líderes da igreja de Éfeso antes de ser preso, o apóstolo trás à memória deles o exemplo que ele lhes havia deixado:
Não cobicei a prata, nem o ouro, nem as roupas de ninguém. Vocês mesmos sabem que estas minhas mãos supriram minhas necessidades e as de meus companheiros. Em tudo o que fiz, mostrei a vocês que mediante trabalho árduo devemos ajudar os fracos, lembrando as palavras do próprio Senhor Jesus, que disse: ‘Há maior felicidade em dar do que em receber’”. (At 20:33-35)
A ênfase aqui é dada ao trabalho árduo como meio de ajudar os fracos, isto é, pessoas que, por uma ou outra razão, não podem trabalhar, ou não ganham o suficiente para se sustentar. Nessa categoria, poderíamos mencionar órfãos, viúvas, idosos, doentes, pessoas surpreendidas por alguma tragédia súbta, entre outras, excluindo-se os ociosos, preguiçosos e aproveitadores, conforme observado na seção anterior.
Isso significa que Paulo não se contentava em apenas "não ser um peso" para os outros, mas trabalhava arduamente para ganhar mais do que o suficiente para si, a fim de poder aliviar o peso dos outros. Em conformidade com o ensinamento do Senhor Jesus, Paulo tinha prazer em doar o que podia aos pobres, ainda que ele mesmo não fosse rico. Tal felicidade, é claro, não é imediatamente experimentada por qualquer pessoa, mas certamente será pelos seguidores de Cristo que, tendo alcançado a maturidade, já estão suficientemente desapegados dos bens materiais, quando então são capazes de alegrar-se em satisfazer as necessidades dos outros.
Esse mesmo modo de vida é recomendado pelo apóstolo aos Efésios por carta, especialmente àqueles que antes viviam de maneira desonesta:
O que furtava não furte mais; antes trabalhe, fazendo algo de útil com as mãos, para que tenha o que repartir com quem estiver em necessidade. (Efésios 4:28)
Uma das coisas que nos chama a atenção nessa ordem de Paulo é a mudança de vida que ele espera ser observada pelos ladrões convertidos: eles deveriam deixar de tomar para si o que era do outro e passar a repartir o que era seu com o outro, o que poderia ser feito por intermédio do trabalho. Esse contraste nos ajuda a enxergar com ainda maior clareza a importância do trabalho em conferir dignidade a uma pessoa, sendo ele o fator que separa os ladrões e vadios das pessoas honestas e de bem.
Tanto esse propósito para o trabalho apontado por Paulo, de trabalhar para ter com o que ajudar os necessitados, quanto o propósito visto na seção anterior, de trabalhar para não depender de ninguém, nos apontam para uma mesma verdade: não devemos usar o trabalho, a força e inteligência que Deus nos dá apenas para o nosso o próprio benefício, mas também para o benefício dos outros, especialmente dos mais pobres.
Aflição, altruísmo e contentamento no trabalho
Eu poderia citar mais motivações que a bíblia nos dá para trabalhar, tais como para possibilitar que bons pastores se dediquem ao seu trabalho em tempo integral, seguindo o exemplo de Silas e Timóteo em Atos 18:5 (algo que só fará sentido para aqueles que compreendem o valor do ofício desempenhado pelos pastores), ou para ser capaz de cumprir da melhor maneira possível outras de nossas responsabilidades, como educação e cuidado de filhos. Mas os pontos acima já são suficientes para que sejam estabelecidos alguns contrastes entre a visão bíblica do trabalho e a visão mundana contemporânea do mesmo tema.
Em primeiro lugar, as expectativas do cristão em relação ao trabalho como meio de auto-satisfação são bem mais modestas e equilibradas, pois são temperadas com a real noção da gravidade do pecado, bem como da extensão de suas consequências. Não podemos esperar colher muitos frutos de uma terra amaldiçoada, nem almejar ambientes de trabalho perfeitos quando todos ao nosso redor são pecadores como nós. Se somos agraciados com uma sorte melhor, graças a Deus por isso, mas também não devemos nos apegar a nada que tenhamos conquistado, pois tudo é vaidade.
Em segundo lugar, claramente segundo a bíblia não devemos trabalhar visando apenas nossos próprios interesses, mas também os interesses dos outros (Fp 2:4). Quando trata do assunto, as razões que Paulo dá para ele ter trabalhado tanto e para que seus irmãos façam o mesmo são sempre razões altruístas, visando o bem das pessoas a quem se ama e dos necessitados. Biblicamente falando, o trabalho como meio de abençoar outras pessoas não é apenas algo opcional e desejável, mas um propósito divinamente estabelecido que deve ser perseguido intencionalmente por todo trabalhador.
Em terceiro lugar, quando vemos as coisas da perspectiva bíblica, viver contentes com o trabalho que realizamos e com os frutos que dele colhemos se torna mais fácil. Nossa satisfação não depende de cargos elevados, altos salários ou muitos diplomas. Ela depende apenas do reconhecimento do favor de Deus para conosco ao nos dar força e inteligência para nosso próprio bem e das pessoas ao nosso redor, e da gratidão a ele por esta graça imerecida.
5. Convite à sabedoria bíblica
Muito mais poderia ser dito em relação ao que a bíblia nos ensina sobre o trabalho, mas não é minha intenção esgotar o assunto. Quis apenas fornecer uma visão geral do ensino bíblico a fim de lançar alguma luz sobre os que estão em trevas, trabalhando no escuro, sem saber o por quê de toda essa canseira e sem motivação para suportá-la.
Minha oração é que Deus te dê olhos capazes de ver as coisas como elas realmente são, e que você aprenda a apreciar o ensino dos profetas e apóstolos do Senhor Jesus Cristo, a Verdade encarnada, fonte de toda verdadeira sabedoria e conhecimento. Pois
as palavras dos sábios são como aguilhões, a coleção dos seus ditos como pregos bem fixados, provenientes do único Pastor. Cuidado, meu filho; nada acrescente a eles. Não há limite para a produção de livros, e estudar demais deixa exausto o corpo. Agora que já se ouviu tudo, aqui está a conclusão: Tema a Deus e obedeça aos seus mandamentos, porque isso é o essencial para o homem. Pois Deus trará a julgamento tudo o que foi feito, inclusive tudo o que está escondido, seja bom, seja mau. (Ec 12:11-14)
Deus abençoe!