A utopia da imparcialidade jornalística
Uma realidade imaginada nem sempre é uma mentira. Ao contrário das mentiras, uma realidade imaginada é algo em que a grande maioria acredita, e, enquanto essa crença compartilhada persiste, exerce influência por onde alcança. Desde a Revolução Cognitiva, há 70 mil anos, marcada pela criação da linguagem ficcional, as realidades imaginadas e os mitos foram importantes para o desenvolvimento da humanidade; o que está distante de significar alguma vertente do utilitarismo de John Stuart Mill. Mitos podem ser benéficos, mas também podem devastar. Importante é compreender que quase nada na evolução dos sapiens como líderes de um planeta de tamanha multiplicidade foi livre de mitos. Muito menos imparcial. O jornalismo não nasceu com estrela na testa para ser diferente. A imparcialidade é uma ilusão.
O não reconhecimento dessa parcialidade justamente por interessados em afirmar imparcialidade não é mera vicissitude. Na verdade, aquilo que o mundo chama de virtude não é, via de regra, senão um fantasma formado por nossas paixões, ao qual damos um nome honesto para impunemente fazer o que quisermos. Diria Nietzsche: a quem interessa?
Uma imparcialidade jornalística integral é tão inatingível quanto um judiciário isento. Um mito como os inventados pelos primeiros humanos a fim de persuadir indivíduos à cooperação em maior número, assim como promover inovações em seu comportamento social. Das religiões ao universo político, os mitos, estes sim, são certezas viventes e pulsantes. Seria necessário um martelo para desconstruir quem tem pés de barro tão evidentes?
Um jornalista antes de ser jornalista é um ser humano. Pelo menos é o que afirma a ciência, contrariando a crença de uma vasta gama de profissionais da área que após a evidência midiática acreditam terem sido promovidos para o âmbito celestial. Em termos científicos, o DNA de um jornalista (pasme) não difere do padrão biológico dos demais indivíduos da espécie humana, com direito a todas as naturais diferenças. São nestas distinções que pululam os protagonistas da parcialidade, como crenças, valores, convicções, regras, apetites, ideologias, traumas, temores e principalmente afetos, que sucessivamente influenciarão o padrão de análise e interpretação de um mesmo fato. Ao contrário das retóricas ilusionistas, este é um axioma indiscutível. A prova é que cada veículo de imprensa atua numa linha editorial específica em sistema de ideias, relações mercadológicas e política de classes, que compõem o enredo final.
Não resta dúvida de que quando um jornalista se afirma imparcial já demostra sua evidente parcialidade. Afinal, professar-se assim é declarar um posicionamento em favor de si mesmo. Tomar partido, ser parte. Um segundo exame ilumina e corrobora ainda mais com o ponto de vista ontológico do debate. Investigar, debulhar, entender, optar, formatar e entregar uma notícia já constitui um ato de total parcialidade, pois cada um utiliza sua maneira peculiar e individual de faze-lo.
Como qualquer jornalista é movido por uma série de elementos cognitivos e afetivos, estes o induzem na opção por fatores que, como uma impressão digital, individualizam e escravizam a construção ideológica da notícia como consequência desse conjunto. A fonte que acredita (ou não) ser a mais confiável, a perspectiva de imagem que considera melhor, a pauta mais interessante e inclusive o viés linguístico (tom, expressão e palavras) que por si só corrói toda a imparcialidade através de uma liberdade aprisionada, como um golfinho num aquário. Um dos mais respeitados filósofos do século XIX, minucioso em linguagem e comunicação, Mikhail Bakhtin, disse o seguinte:
“O sistema linguístico é produto de uma reflexão sobre a língua, reflexão que não procede da consciência do locutor nativo e que não serve aos propósitos imediatos da comunicação”.
A compreensão da palavra no seu sentido particular depende da orientação que lhe é conferida por um locutor num contexto e situação precisos. Se considerarmos ainda que os vocábulos, como mostrou Albert Mehrabian, pioneiro da pesquisa da linguagem corporal na década de 50, constituem apenas cerca de 7% da mensagem (somente palavras), pois 38% é vocal (incluindo tom de voz, inflexão e outros sons) e 55% é não-verbal, como afirmar imparcialidade em consequência de tantas decisões particulares subjetivas, conscientes e inconscientes, crenças, constituições biológicas, emocionais e ideologias? Se cada profissional imprime seu perfil único ao entalhar a arquitetura da notícia, como noticiar sem deixar sua digital?
Se cada veículo escolhe entre um universo de fatos aqueles que serão manchete, destaque, evidência ou não, e principalmente, o que sequer será citado, lembrado ou informado ao público, influenciando assim seu banco de dados referencial de avaliação, alegar qualquer exígua possibilidade de imparcialidade é confessar perfídia, limitação ou mergulhar no abismo do ridículo.
A imagem, por exemplo, será sempre vítima do ângulo escolhido pelo operador, podendo este criar a interpretação que deseja no espectador ao exercer sua preferência, opção. Um gostar unicamente seu, absoluto e parcial. A música, o título, conteúdo e o que considera mais relevante não são parte do fato, mas decisões do jornalista de como e até por quantas vezes usar... ou não. Construir uma matéria é criar, e quem cria é a parte criadora.
Como ser imparcial sendo humano? Como não ser parte naquilo que exige nosso compromisso como parte do processo? Como ser livre de nós mesmos numa liberdade irrealizável? Como ser leal ao público num sistema capitalista onde o cliente é ao mesmo tempo investigado e anunciante do veículo de imprensa? Como ser desleal às nossas próprias deduções, certezas, influências subliminares e razões inconscientes? Como ser fiel à democracia se o "kratos" (poder) do "demo" (povo) está concentrado nas mãos de governos parciais em favor de si próprios, responsáveis pela gestão de demasiadas necessidades e desejos diversos, mas que têm como prioridade interesses e políticas partidárias, desconstruindo assim o mito da democracia? Em suma: como afirmar que um pássaro é livre se este já nasce acorrentado à sua natureza de pássaro?
A imparcialidade jornalística tão afirmada pelos veículos de imprensa não passa de uma fraude conveniente, assim como defender a existência de uma democracia não passa de sofisma político e demagogia manipulatória. Afirmações tão pueris quanto aleijadas. Ao realizar uma reflexão acerca da democracia e seus elementos essenciais, notamos uma posição visivelmente contrária a ela ao identificar que em todas as ideologias democráticas há algo insustentável: a supervalorização da igualdade num universo humano de aprisionamentos, discrepantes diferenças e desigualdades em todos os aspectos biológicos, sociais, potenciais e culturais. Ponto chave em que a imparcialidade e a democracia dão-se as mãos, unidas pela impossibilidade de existir.
Rodrigo Batalha é escritor e consultor internacional em comportamento
www.rodrigobatalha.com