VÃ A RESSURREIÇÃO SEM UMA VIDA VAZIA DE IDEOLOGIA

VÃ A RESSURREIÇÃO SEM UMA VIDA VAZIA DE IDEOLOGIA

Os outros disseram sempre de si.

Dele, escrito, gravado, registado nada temos, até hoje.

Há um relato de um dia ter escrito algo no chão,

Mas o quê,

nunca se soube,

nunca ninguém o testemunhou e passou palavra.

Nada.

Não possuía casa, terras, negócio, uma escola,

uma sepultura onde poder ser depositado depois da sua morte.

E até o trabalho de juventude, o de carpinteiro, parece ter deixado.

Nada.

Não escreveu sobre o universo, a origem das coisas,

geometria ou matemática, física,

por que são hoje conhecidos pensadores famosos.

Literatura, livros de história do tempo não lhe dedicaram espaço algum.

E são sempre os "desacatos", de seguidores seus,

que tornam necessário falar de um tal “Chrestus”.

Não fosse pelos seus discípulos, Jesus teria ainda sido menos de Nada.

Less than nothing”! (Slavoj Zizek)

O Nada, ou o “less” que talvez ele mesmo tenha sempre desejado ser.

Sem Igreja Una, Santa, Apostólica!

Passar e não deixar rasto, Nada!

E por certo, não é aquele que mais tenha padecido sofrimento, tortura e morte violenta.

O mundo, a sua história de cruéis lutas pelo poder,

está cheia de mulheres e homens brutalmente massacrados.

E não fosse pela ideia de que teria ressuscitado após a sua morte,

talvez não tivesse tido o efeito que teve e tem tido na vida de incontáveis gerações cheias de medo e de seguros de vida.

Vã a fé, a sequela, se não fosse verdadeira a sua ressurreição. (São Paulo)


Num domingo de ramos é impossível a alguém que tenha percorrido um caminho de fé,

não revisitar reflexivamente esta história.

No horizonte uma impossibilidade,

que tanto pode ser boa como má notícia (John D. Caputo),

mas hoje eu diria que vã é toda a ressurreição sem uma história vazia de capitalismo, fascismo, comunismo, democracia, populismo, nacionalismo, teocracia, meritocracia, oligarquia, aristocracia, proletariado…,

vazia do que se foi tornando fundamental ao “ser alguém”, ao longo dos séculos.

Se Jesus é filho de algum deus, deusa…, deixou há muito de me interessar;

Aliás, não só não é problema meu, como não é do meu conhecimento sabê-lo. (Jacques Derrida)

Eu mesmo não sei de quem sou filho de verdade.

Lurdes e Henrique foram-me apresentados como pais,

numa pequena vila do concelho de Seia, distrito da Guarda: Loriga.

Vivemos por histórias, de ilusões,

e o que me interessou e interessa sempre sobre Jesus de Nazaré,

é a sua "história",

ainda que saiba que esta esteve sempre presa ao relato dos chamados “cristãos”,

à sua fé, à crença na sua ressurreição.

É por isso uma narrativa construída, também ela tocada por relações de poder.

Hoje não preciso de acreditar a sua ressurreição para me viver em conflito consigo.


Paixão. Semana Santa!

A de Moçambique, Burundi, Líbia, Ruanda, Congo, Síria, Iraque, Venezuela… A lista é interminável.

Milhares e milhares de pessoas têm hoje mortes atrozes. Nem Jesus as teria sonhado, imaginado.

Irrisórios possuem o mundo; a maioria é escrava destes.

Os "Comuns" são apenas de alguns.

A terra está hoje dividida em parcelas.

Nascer sem parcela, significa habitar a atmosfera.

E mesmo essa é proibida aos migrantes, refugiados, aos sem abrigo...

Os ares são de quem os policia, com caças apetrechados de mísseis.

Até os buracos negros já terão dono, assim como os pólos degelados.


Um deus não nos pode salvar.

Que "vale de lágrimas", esta terra, à espera de um deus que a possa libertar da violência dos seres que a habitam e da natureza cada vez mais imprevisível.

Nada para salvar.

Contar histórias, umas já longínquas, outras mais recentes;

Viver histórias, viver intensamente;

Responder às dores, ao que temos de mais comum:

a fragilidade, a finitude, a contingência;

Entender que é precisamente a vida que é Nada, “Less than Nothing”, e nele desagua,

o que nos pode (talvez) levar ao comum direito e uso da Terra,

à contemplação amordaçada pelo castigo do trabalho.

Essa a Ressurreição que o Nada é, e sabe reconhecer.


 

 

Faranaz Keshavjee

Psychologist, Writer, Member OBSERVATÓRIO DO TRAUMA - University of Coimbra & EUROPEAN SOCIETY FOR TRAUMATIC STRESS STUDIES (ESTSS), Expert on trauma and mental health, deradicalisation, adolescence, racisms and GBV.

5 a

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