Vale de unicórnios
Interessante testemunhar o fascínio despertado pelo Vale do Silício em pessoas tão diferentes nos mais longíquos e improváveis cantos do mundo.
Em uma manhã despretensiosa de quarta-feira, dezenas de ônibus circulam pelos quarteirões da fama digital ao longo de toda Baía de São Francisco no estado da Califórnia. Todos devidamente vestidos para a ocasião com seus tênis surrados, jeans despojados e camisetas básicas - alguns recentemente comprados especialmente para a ocasião. Selfies em frente às sedes do Google e Facebook superam fotos na icônica Golden Gate. Tours são programados para legiões de turistas e geeks fotografarem trabalhadores digitais em seu habitat natural. Garagens originais de fundadores míticos são admiradas por semblantes incrédulos daqueles que reverenciam momentos históricos ocorridos naquele pequeno espaço de terreno, idealizados como sagas heróicas e dignas. Playgrounds corporativos e coworks high techs expressam diferentes personalidades que desafiam o conceito tradicional de escritório e, no limite, o próprio conceito tradicional de trabalho, ainda que as jornadas de trabalho possam ser mais extensas e os gaps de remuneração possam ser muito maiores do que no início das revoluções industriais dos séculos XVIII e XIX.
Esse é o vale dos unicórnios - o lugar onde empreendedores sonham em alcançar valorização de mercado acima de USD 1 bilhão para suas start-ups, numa corrida alucinante por capital, talento e conexões. Os poucos unicórnios avistados convivem com milhares de empreendimentos medíocres em uma lógica impiedosa em torno do conceito “The Winner Takes It All”.
A aparente exuberância de capital é apenas mais um traço mítico desse vale - os retornos sobre investimento venture capital são extremamente concentrados em poucos capitalistas, que selecionam as melhores oportunidades antes dos demais. É fato que a região concentra o capital mundial disponível para essa modalidade de investimentos, mas a grande maioria dos investidores relaciona-se apenas com start-ups preteridas pelos titãs digitais do vale. Afinal, unicórnios são raros, e não permitem acesso democrático a todos, salvo na oferta pública inicial (IPO) onde massas populares oferecem justamente a liquidez necessária para saída bilionária triunfal dos investidores iniciais.
De maneira geral - tal como Google, Facebook e Uber - unicórnios são cultivados na convergência entre solução de problemas práticos e ausência de regulação governamental, onde existe uma falha (e, portanto, oportunidade) de mercado. A velocidade espantosa na criação de efeitos de rede decorrentes de uma imensa base de clientes - esse é o foco inicial dos anabolizantes injetados nas start-ups mais promissoras - eventualmente cria barreiras a entrada para novos competidores justamente pela baixa probabilidade de migração de milhões de usuários entre plataformas similares. Ao longo do tempo, o baixo custo marginal de processamento de grandes volumes de dados, os recursos quase infinitos para investimentos em marketing, a incapacidade dos governos em regularem o nicho que se torna mainstream, a gestão de volumes imensos de dados, a capacidade de compra de talentos e os bolsos fundos para aquisição de ameaças emergentes são todas forças de perpetuação de poder de mercado dos unicórnios dominantes do vale.
É justamente essa dinâmica de tempo acelerado que direciona velocidade em todas as dimensões das empresas desse lugar. Velocidade na captação de capital muito antes do modelo de negócios se provar factível (etapa usualmente denominada como product market fit), atalhos anabolisantes para acelerar crescimento de vendas (aqui denominados como growth hack), velocidade no lançamento de produtos muito similares a protótipos de laboratório (denominados como minimum value product), efemeridade das carreiras e ostracismo imediato de estrelas emergentes que demoram para aumentarem seu brilho. Tudo é muito rápido no vale dos unicórnios - aqui “Time is Money” é um dogma de fé.
Mesmo assim, um olhar menos passional e iconoclasta desse ambiente nos ofereceria perspectiva mais centrada acerca dos tradicionais fundamentos capitalistas que residem aqui também. Além do ofuscamento hype tech, a lógica essencial continua sendo a busca de maximização do retorno sobre investimento por meio de posições dominantes em mercados oligopolizados com elevadas barreiras a entrada e baixo nível de regulação. Os tempos mudaram nos últimos três séculos, e portanto, os direcionadores se deslocaram para novas alavancas de valor - capacidade produtiva e capilaridade comercial cederam espaço para efeitos de rede; capital produtivo cedeu espaço para capital intelectual; integração vertical cedeu espaço para ecossistemas em plataformas; volume de vendas cedeu espaço para algoritmos inteligentes capazes de modelagem de massas de dados. Não obstante, o foco continua sendo maximizar retorno sobre investimento. Simples assim - apenas a máquina a vapor e o motor a combustão cederam espaço para embriões sintéticos e computação quântica.
Transformar o Vale do Silício em Disneylândia interessa mais aos vendedores de sonhos e guias turísticos do que aos próprios agentes desse ecossistema pujante de inovação, conhecimento e capital. O aumento desenfreado de start-ups aumenta o ruído na seleção das boas oportunidades de investimento, o aumento irracional das dotações de capital distorce a dinâmica natural de mercado ao perpetuar a vida de empresas fadadas à morte, a competição vaidosa de investidores de capital cria bolhas de preços, o aumento de poder de mercado dos gigantes digitais desestrutura os incentivos de mercado, os orçamentos bilionários inflam os preços dos ativos e dos talentos, o aumento da casta de bilionários high tech desafia a diversidade cultural e intelectual necessária à inovação.
A provável extinção dos unicórnios estará diretamente relacionada ao distanciamento do vale da sua condição original em permanecer como marginal, destemido e inclusivo. Foi justamente essa intersecção que, décadas após a corrida do ouro em fins do século XIX, transformou essa região em pólo de atração de mentes brilhantes e empreendedoras. Atualmente, a despeito da aparente abundância, esse ecossistema encontra-se muito fragilizado à medida que gigantes digitais globais e fundos bilionários absorvem tudo que enxergam como ameaça ou oportunidade, transformando o revolucionário em doutrina.
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Daniel Augusto Motta é Sócio e CEO da BMI Blue Management Institute. É Doutor em Economia pela USP, Mestre em Economia pela FGV-EAESP e Bacharel em Economia pela USP. É Diretor Geral da WhiteFox Capital. É Sócio da Nexialistas Consultores. É também voluntário como Diretor de Planejamento Estratégico da UNIBES. É Membro-Fundador da Sociedade Brasileira de Finanças. É Membro do World’s Most Ethical Companies Advisory Panel. É membro da FNQ Fundação Nacional da Qualidade. Foi Professor de Pós-Graduação pela, Fundação Dom Cabral, Insper, FGV, ESPM e PUC-SP. É autor de diversos artigos publicados por Valor Econômico, EXAME, VocêSA e Folha de São Paulo, e também tem três artigos publicados pela Harvard Business Review Brasil. É autor do livro A Liderança Essencial.
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6 aPerfeito!
CEO & Board Member | Helping companies build relationships @Neoassist
6 a“Numa corrida desenfreada por capital”. É impressionante o número de startups com que conversei recentemente cujo objetivo chave é captar o “round A”.