A variação da renda nas classes CDE

Quando se pensa em renda familiar, grande parte das pessoas da elite econômica brasileira imaginam aquela dinâmica de salário mensal regular, carteira de trabalho e 13º no fim do ano. Após mais de 12 anos de pesquisas com a população da base da pirâmide, colecionamos histórias e dados que ilustram uma realidade bastante diferente.

A grande maioria das famílias das classes CDE tem uma renda muito variável. Para ser mais preciso, segundo dados da POF (pesquisa de orçamento familiar do IBGE - 2019) 2/3 da renda destas famílias advém de fontes variáveis. Consideramos classe CDE as famílias com renda de até R$ 6.000,00 por mês para 4 pessoas (ou até R$ 1.500,00 per capita) o que forma um enorme contingente de mais de 130 milhões de pessoas.

Esta população não é homogênea, mas é possível apontar alguns padrões. Quanto menor a renda, menos regular e formal ela costuma ser. Sendo um pouco generalista, podemos afirmar que uma família “padrão” das classes CDE é composta por uma renda regular e muitas rendas variáveis. É o caso do porteiro de prédio que faz bicos no final de semana de entregas. Sua esposa vende cosméticos e trabalha como manicure em casa atendendo as vizinhas em alguns dias da semana. Já o filho jovem vende bolos e salgados na escola para complementar a renda da família. Este é um exemplo real que encontramos em nossas pesquisas, mas ele ilustra formas como 60% das rendas dessas famílias são compostas.

Ao olhar para outros dados do IBGE, esta disparidade entre o mundo do trabalho com carteira e a realidade brasileira fica mais clara. O Brasil tem hoje 156 milhões de pessoas em idade para trabalhar (PIA – considera população total de 15 a 65 anos). Destes, cerca de 90 milhões formam a população economicamente ativa. Porém, apenas 44 milhões tem empregos formais: na iniciativa privada, governo ou trabalho doméstico. Ou seja, há um contingente de 112 milhões de pessoas em idade para trabalhar – 71% da população em idade ativa – que podem ser trabalhadores informais, desempregados, conta-própria, empregadores, donas de casa, estudantes, mas que estão fora do universo do emprego formal. Isso faz com que ocorra uma enorme variação da renda no dia a dia desse segmento da população, trazendo incertezas e desorganização para sua vida financeira.    

Não estou aqui fazendo uma apologia ao emprego como única solução adequada de geração de renda. Empregadores e conta-própria podem gerar muita renda e mesmo terem um perfil com mais adequação a este formato de trabalho. Sua renda tende, inclusive, a responder mais rapidamente às dinâmicas da economia. No entanto, é importante ressaltar a incerteza que essa variação traz para as famílias que, assim como no caso dos empregados informais, ganham em média menos que os formalizados e tem também maior rotatividade.

Meu objetivo é apenas jogar luz aos desafios da realidade financeira destas famílias. Entender a dinâmica da renda para esta população, que representa duas em cada três famílias brasileiras, poderá ajudar no desenvolvimento de melhores políticas públicas, produtos, serviços e projetos sociais. A baixa poupança, a dificuldade de planejamento financeiro, o alto uso de crediário, o baixo acesso a crédito para aquisição de ativos como a casa própria, tudo isso é de certa forma explicado por esta variação da renda. Não é à toa que o Brasil é o país do pré-pago: planos de celular, serviços de streaming, acesso a jogos eletrônicos e muitos outros serviços que costumam ser vendidos em planos anuais em outros países, aqui precisaram adaptar seus modelos de negócio ao sistema pré-pago devido à incerteza da renda recorrente. Não basta entender as faixas de renda da população, é preciso entender o quanto estas rendas são variáveis e as inúmeras consequências desta falta de previsibilidade.

(*) - Sócio e diretor executivo da Plano CDE, empresa de pesquisa e consultoria de avaliação de impacto focada no público das classes CDE. Formado em Administração de Empresas pela FGV com Mestrado em Antropologia pela UCL - University College London, escreve para o AENews e Empresas às primeiras quintas-feiras do mês.

Cristiane Barbieri

Repórter Especial @ Agência Estado | Business Journalism, Economic Journalism

3 a

Ótimo artigo! O conteúdo evidencia a importância de aproximar-se das classes CDE quando se pensa em políticas públicas ou produtos e serviços voltados para eles. Não é suficiente depreender algo, é preciso mergulhar na realidade e convidar o público alvo para desenhar as soluções.

Muito boa sua análise!

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