A Vida é Obsoleta
photo. Graham Hughes/ The Canadian Press Images

A Vida é Obsoleta


A vida precisaria tomar consciência de algumas inversões importantes. Mas não tomou ainda. Não estamos olhando com atenção suficiente, e o resultado será ruim.

Há 4 anos publiquei na Exame o artigo "O Trabalho e a Última Alienação dos Homens", onde falei sobre a alienação que o trabalho vem sofrendo em relação à própria vida. Eu não estou falando da rotina da vida. Neste, o trabalho assume papel absolutamente central, sendo priorizado em relação à família, ao bem estar, à felicidade e à própria vida, uma vez que sacrifica-se comumente a saúde a fim de cumprir com as demandas do trabalho.  

Curiosamente, o trabalho só faz sentido quando estiver atuando à serviço do viver, garantindo que, através dele, possamos acessar os recursos para melhorar a vida. Em certa medida, isto também acontece. Mas se dermos um passo atrás veremos que muitas das necessidades às quais atendemos, são necessidades criadas apenas a serviço da manutenção de estruturas econômicas. Não à serviço efetivamente da vida. 

Grande parte dos bens e serviços que fazem girar a economia não fariam falta se deixassem de existir. Aliás, se desaparecem, seria um favor ao mundo. Vivemos em um mundo de excessos. O excesso atrapalha até mesmo a abundância. Mas este é tema para outro momento.

Algumas das incoerências que assistimos hoje podem ser facilmente pontuadas:

O mundo da gestão está coordenado para buscar constantemente produzir mais com menos. No entanto, o mundo tem um excesso de bens produzidos. A demanda real da vida neste mundo deveria ser para produzir menos. O problema é que não sabemos como fazer isso, e nem como encaixar isso na dinâmica que criamos. Tem mais gente pra trabalhar do que trabalho pra essa gente. Ainda assim, aqueles que trabalham, sentem que trabalham demais. São paradoxos que precisamos encarar para criar um futuro coerente, que nos aproxime da experiência de abundância.

Mas quero focar em um ponto aqui. Nossa perspectiva funcional sobre a vida. Embora gostemos de dizer que a vida existe para ser vivida, não é isto que a maioria das pessoas experimenta. A vida acaba deslocando-se para uma perspectiva essencialmente funcional, onde o que você faz determina sua sensação de pertença, utilidade e sucesso. Neste sentido, encontramos mais uma equação paradoxal com a qual acredito que convivermos em intensidade crescente.

A automatização tem sido uma busca intensa do universo do trabalho. A Revolução Industrial acelerou enormemente este processo e suas consequências. Ganhamos produtividade, eficiência e até qualidade. A energia elétrica, a eletrônica e os computadores foram trazendo novos saltos deste caminho. A tensão, no entanto, vem junto, aumentando em ciclos de angústia e escassez. Se o trabalho assume função central na vida, tanto em criar recursos para a sobrevivência quanto em incluir pessoas em contextos sociais, a cada passo de automação a obsolescência do ser humano aparece novamente como um fantasma.

Agora nos deparamos com a Inteligência Artificial, e este fantasma aparece com nova dimensão. Ainda mais ameaçador e mais forte. E, sim, ele deve ser levado a sério.

Numa perspectiva funcional, cada vez mais características e recursos humanos vão sendo substituídos. E o ser humano, cada vez mais se espreme peoe resultado do seu próprio fazer, Somos nós que criamos recursos que nos substituirão. No entanto, há uma parte fundamental desta transformação que não está sendo cuidada.

Se estamos criando estruturas para que as pessoas sejam desnecessárias, precisamos aprender a valorizar a vida em seu aspecto não funcional. Se a sobrevivência financeira, fisiológica e emocional seguem se baseando no trabalho, então cada vez mais gente sentirá que sua vida é obsoleta. Cada vez mais gente estará desencaixada de nossas dinâmicas econômicas e sociais. A angústia e o medo da falta, cada vez mais farão com que as pessoas sintam-se angustiadas, amedrontadas e desconectadas do fato de que estão vivas. A percepção da vida como um valor em si, hoje já muito reduzida, será cada vez menor. 

A sociedade resultante deste progresso, será uma sociedade embebida em escassez e excesso. Como já é. Mais uma vez, a abundância nos passará entre os dedos. 

Para criarmos um mundo de abundância precisamos começar a pensar coletivamente. Precisamos desconectar a vida de uma percepção exclusivamente funcional. E o trabalho precisa encontrar caminhos para que seja efetivamente valorizado na sua relação com a criação de futuros mais coerentes. Este salto ainda não demos como sociedade. Muito menos no universo do trabalho.

Os Estados tem também um papel central nisso. Através de estruturas tributárias e legislativas deveriam impulsionar o mercado para este sentido. Mas também a Política, cuja origem esteve associada ao cuidar da Polis, ou seja, cuidar das pessoas e da cidade, sucumbiu aos movimentos da escassez. Hoje, atuam pautadas em interesses de grupos que puxam a corda para um ou outro lado, e abriram mão completamente do cuidar. Sim; completamente.

Por fim, numa perspectiva funcional, se há excesso de gente, as pessoas são desnecessárias. Se cada vez mais, podemos substituí-las, além de desnecessárias, valem pouco. E se juntarmos o pouco valor que têm com o fato de que não são necessárias, precisamos assumir que, no mundo que estamos criando, cada vez mais a vida torna-se obsoleta. Um fetiche do passado que cada vez menos faz sentido no mundo de hoje.

E enquanto isso, as taxas de suicídio e assassinatos no mundo seguem crescendo. 

E digo novamente o que tenho repetido exaustivamente; precisamos sair da braveza e assumir a bravura de colocar estes desafios sobre a mesa.

Difícil? Sem dúvida. 

Mas sigo acreditando que a cada pequeno passo neste sentido, encontraremos nova energia e, logo, o mercado aprenderá a reconhecer esses valores. E serão eles que determinarão o sucesso no mundo emergente. Valores muito diferentes do que chamamos de sucesso hoje.

Vamos falar sobre isso?

#trabalho #futuro #coralliza #corall #consultoria #mundoemergente #cultura #culturaorganizacional #liderança #política #AI #IA #estratégia

Marcelo Policarpo

Sócio Fundador da Exponentia Consultoria | Estratégia Empresarial | Evolução Organizacional | Liderança, Vendas e Negócios

9 m

Fabio, concordo plenamente! A IA é fascinante, mas tá na hora de a gente pensar além do 'uau'. O que estamos sacrificando nessa corrida? Privacidade? Empregos? Já viu como sistemas de reconhecimento facial estão sendo usados sem muito questionamento ético? E isso só arranha a superfície. Precisamos falar mais sobre como tornar a IA inclusiva e justa pra todo mundo. Quem tá no controle dessas decisões e quem tá sendo deixado pra trás? Bora abrir esse debate!

Marcio Querido! Incrível esse texto, gratidão! Ele explica muito bem o que estamos vivendo e como será o futuro caso nossas atitudes, como sociedade, continuem desta forma…… 🙏🏽🌻

Philippe Minerbo

Partner at Manacá Partners | Performance em Processos, Sistemas e Gestão | Supply Chain | Economia Circular

9 m

Ótima reflexão Marcio. O capitalismo só continuará existindo enquanto ele estiver servindo aos propósitos básicos de vida. A partir do momento em que a vida começa a ficar descartável e portanto não contribuir mais para o capitalismo, o sistema terá que se adaptar. O risco para o trabalho é o próprio trabalho em altas dosagens.

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