SOBRE A DISTRIBUIÇÃO DE LUCROS NA EXISTÊNCIA DE DÉBITO FISCAL NÃO GARANTIDO

Em 2014, no aniversário de 50 anos do golpe militar que jogou o país em anos de ditadura, é de se imaginar que os desrespeitos aos direitos individuais fossem apenas lembrados como um episódio negro de nossa história. Contudo, ainda existem resquícios deste passado bem próximos ao dia-a-dia do empresário brasileiro; mesmo que pouco se fale no assunto fora da mídia especializada.

Um bom exemplo desta herança é o art. 32 da Lei nº 4.357/64[1]. Com base neste artigo, a Secretaria da Receita Federal do Brasil hoje fundamenta a cobrança de multa de exorbitantes 50% (cinquenta por cento) sobre os valores distribuídos como lucros pelas empresas que possuírem débitos fiscais não garantidos.

Legado de um período de opressão estatal, o dispositivo acima, na época em que proposto, tinha claro propósito: de maneira indireta, fomentar a pressão para que os particulares realizassem o pagamento antecipado dos tributos que julgassem controversos. Isso porque criava um impecilho na distribuição das bonificações:apenas assim seria possível a distribuição de bonificações, lucros e dividendos se a empresa não tivesse nenhum débito em aberto sem garantia. Contudo, mesmo durante o período da ditadura, o intento do diploma foi tolhido: o presidente à época vetou parte do projeto de lei inicialmente proposto, excluindo as expressões “lucros e dividendos” do âmbito do dispositivo..

Apesar de insuspeita, a exigência da garantia para a distribuição das bonificações era, de fato, uma medida bastante tirana. Com seu advento, o Fisco condicionava o acesso ao Judiciário a aqueles que dispusessem do caixa necessário para a garantia do débito, qualquer que fosse o meio escolhido.

Como esperado, após a edição da Constituição Federal de 1988, com o advento de cláusulas pétreas garantindo direitos inalienáveis aos cidadãos, a questão ficou durante algum tempo esquecida. Até que em 2004 foi editada a lei nº 11.051, que incluiu o parágrafo 1º, inciso I, ao caput do artigo 32, trazendo o termo “remunerações” ao lado da antiga vedação[2]. E com base nesta nova redação, sobreveio a cobrança da multa mencionada, reavivando a centelha da coerção como forma de recolhimento da exação tributária.

Aos que, de forma otimista, contavam com o bom senso do julgador para moderar o âmbito de aplicação da nova redação do art. 32 da lei nº 4.357/64, sobreveio a surpresa: o dispositivo foi bem recebido pelos Tribunais Regionais Federais da 3ª Região (AMS 200561000064906, 3ª Turma), da 4ª Região (AC 200270000088145, 1ª Turma) e, por fim, 5ª Região (AMS 200683000067297, 3ª Turma), que entendeu não haver cobrança em duplicidade na sobreposição de multas cobradas pelo Fisco (a multa cobrada na autuação fiscal, somada à multa de 50% pela distribuição de lucros na existência de valores controversos não garantidos). No Superior Tribunal de Justiça o contribuinte também não teve melhor sorte: no julgamento do REsp 1.115.136 SC, pela 2ª Turma, com relatoria do Min. Castro Meira, foi afastada a multa cobrada pela distribuição de lucros, mas apenas e tão somente porque o débito em aberto perante o Fisco havia sido objeto de parcelamento anterior à distribuição. Na ausência do parcelamento, a multa teria sido mantida.

Ou seja: a jurisprudência vem demonstrando certo pendor fiscalista – o que não coaduna com decisões anteriores, inclusive sumuladas[3], que vedam a prática de expedientes que visem à cobrança indireta de tributos.

Visando afastar este cenário de incongruência jurídica, a Subseção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil impetrou Mandado de Segurança no qual discute diretamente a inconstitucionalidade do art. 32 da Lei nº 4.357/64, e encontra-se desde abril do presente ano aguardando julgamento pelo Órgão Especial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. O resultado deste julgamento é aguardado com bastante antecipação, dada a postura de proteção à atividade empresarial e aos direitos individuais anteriormente adotada pelo STF, bem como pela prolação de voto favorável aos contribuintes pelo Des. Márcio Moraes.

Contudo, enquanto não exista definição sobre o tema, permanece a insegurança do contribuinte que deseje fazer valer seus direitos constitucionalmente garantidos – o que, infelizmente, nos remete mais ao período ditatorial do que a uma República verdadeiramente democrática.



[1] Art 32. As pessoas jurídicas, enquanto estiverem em débito, não garantido, para com a União e suas autarquias de Previdência e Assistência Social, por falta de recolhimento de imposto, taxa ou contribuição, no prazo legal, não poderão:

a) distribuir quaisquer bonificações a seus acionistas (...).”

[2] “Art 32. As pessoas jurídicas, enquanto estiverem em débito, não garantido, para com a União e suas autarquias de Previdência e Assistência Social, por falta de recolhimento de imposto, taxa ou contribuição, no prazo legal, não poderão:

a) distribuir… (VETADO) …quaisquer bonificações a seus acionistas;

b) dar ou atribuir participação de lucros a seus sócios ou quotistas, bem como a seus diretores e demais membros de órgãos dirigentes, fiscais ou consultivos;

§ 1º A inobservância do disposto neste artigo importa em multa que será imposta:

I - às pessoas jurídicas que distribuírem ou pagarem bonificações ou remunerações, em montante igual a 50% (cinquenta por cento) das quantias distribuídas ou pagas indevidamente;(...).”

[3] Súmula nº 70/STF: “É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para pagamento de imposto.”

Súmula nº 323/STF: “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.”

Súmula nº 527/STF: “Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.”

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