GUERRA FISCAL: Atipicidade da conduta do contribuinte que se credita
Os estados brasileiros vêm travando entre si uma disputa acirrada pela recepção de novos empreendimentos - a famosa guerra fiscal. Essa disputa é travada, dentre outras formas, por meio da concessão de incentivos fiscais relacionados ao ICMS, frequentemente acarretando grande renúncia fiscal, o que impacta as finanças do Estado que concede o incentivo e do Estado do destinatário da mercadoria objeto do incentivo.
A guerra fiscal se trava à revelia da Lei Complementar nº 24/75. Esta veda as concessões de isenções e outros incentivos relacionados ao ICMS, salvo quando previstas em convênios celebrados em reuniões do Conselho de Política Fazendária, que congrega todos os estados e o Distrito Federal. A lei determina que a aprovação da concessão de um benefício depende de decisão unânime dos estados representados e prevê penalidades em caso de inobservância de seus dispositivos. Bastaria o cumprimento dessa lei — devidamente recepcionada pela Constituição Federal de 1988 - para que a guerra fiscal definhasse. Não obstante, o que se observa é a total desconsideração aos dispositivos aplicáveis aos Estados; e a aplicação de penalização ao contribuinte. Veja-se o texto:
“Art. 8º - A inobservância dos dispositivos desta Lei acarretará, cumulativamente:
I - a nulidade do ato e a ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria;
Il - a exigibilidade do imposto não pago ou devolvido e a ineficácia da lei ou ato que conceda remissão do débito correspondente.
Parágrafo único - As sanções previstas neste artigo poder-se-ão acrescer a presunção de irregularidade das contas correspondentes ao exercício, a juízo do Tribunal de Contas da União, e a suspensão do pagamento das quotas referentes ao Fundo de Participação, ao Fundo Especial e aos impostos referidos nos itens VIII e IX do art. 21 da Constituição federal.
Na impossibilidade de punir diretamente o Estado concessor do benefício fiscal, o Estado do destinatário da mercadoria beneficiada opta por punir o contribuinte que utiliza o benefício indiretamente, mesmo que ignore sua existência. Por exemplo, o Estado de São Paulo editou em 2004 o comunicado CAT nº 36, que lista diversos benefícios fiscais concedidos por outros estados e antecipadamente “esclarece” aos contribuintes paulistas sobre a impossibilidade de aproveitamento dos créditos provenientes de operações sujeitas a tais benefícios.
A inconstitucionalidade de dispositivos com o mencionado já, por si só, discutível; uma vez que a CF/88 reconhece a não cumulatividade como característica essencial do ICMS. Dessa maneira, qualquer tentativa do estado de destino de impedir que o contribuinte adquirente da mercadoria credite-se do tributo destacado na nota fiscal regularmente emitida já seria, no mínimo, questionável.
Contudo, alguns estados, como Minas Gerais, entendem que a desconsideração reiterada a este tipo de regramento (no caso deste estado, a Resolução 31.666/2001), constitui prática de sonegação por parte do contribuinte adquirente, incorrendo este em crime contra a ordem tributária consoante previsto no art. 2º, inc. II da lei nº 8.137/1990. Este é o caso que originou a ação penal nº 478.08.34925-0, cujo habeas corpus é objeto do presente comentário.
A medida não logrou êxito no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, sendo necessário levar o caso à apreciação do Superior Tribunal de Justiça. E é então que chegamos à excelente decisão, relatada pelo Ministro Gurgel de Faria e acolhida por unanimidade pela quinta turma no julgamento dos Embargos de Declaração no Habeas Corpus nº 196.262, proferida em 19/12/2014 e recentemente publicada. Veja-se.
É assente no STJ o entendimento de que: “o trancamento de ação penal, em habeas corpus, constitui medida excepcional que só deve ser adotada quando se apresenta indiscutível a ausência de justa causa e em face de inequívoca ilegalidade da prova pré constituída.”[1]
Pois bem. A impossibilidade de imputar responsabilidade ao contribuinte é tão patente no caso que a Quinta Turma não teve dúvidas ao dar provimento ao pedido dos sócios e trancar a ação penal, nos seguintes termos:
“Essa guerra fiscal entre os estados federados não pode ensejar uma persecução penal sem justa causa se os contribuintes, em face do benefício fiscal, recolhem o ICMS segundo o princípio da não-cumulatividade e não se valem de artifícios fraudulentos com o fim de reduzir ou suprimir o pagamento dos tributos. (...)
Com efeito, mesmo que se indague acerca da regularidade do crédito concedido pelo Estado de Pernambuco, a questão pode ser alvo de ação direta de inconstitucionalidade ou contenda (fiscal) direta com o contribuinte. O que não se pode é imputar a prática de crime tributário ao contribuinte que recolhe o tributo em obediência ao princípio constitucional da não-cumulatividade, bem como mantém a fidelidade escritural, dentro das normas (em princípio) válidas no âmbito dos respectivos entes da Federação.” (grifos nossos)
Mais adiante, o d. Min. Gurgel de Faria reconhece inclusive a impossibilidade da aplicação de multa e juros na cobrança de tributo advindo da glosa de créditos. Citando trecho de acórdão[2] de relatoria da Min. Eliana Calmon, a questão é tratada com a clareza necessária:
“Se outro Estado da Federação concede benefícios fiscais de ICMS sem a observância das regras da LC 24/75 e sem autorização do CONFAZ, cabe ao Estado lesado obter junto ao Supremo, por meio de ADIn, a declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo do Estado de onde de originam as mercadorias - como aliás foi feito pelos Estados de São Paulo e Amazonas nos precedentes citados pela Ministra Eliana Calmon - e não simplesmente autuar os contribuintes sediados em seu território.
(...) o único caminho a ser percorrido pelos Estados que se sintam prejudicados pela chamada "Guerra Fiscal" é a propositura de ação direta de inconstitucionalidade contra as normas locais de outra unidade federada que não respeitem as disposições constitucionais e legais relativas à concessão de benefícios fiscais no âmbito do ICMS.
(...)
Em sua decisão, a nobre Ministra assevera que a glosa "pura e simples" dos créditos apropriados pelos contribuintes situados no Estado de Minas Gerais é ilegítima, pois não é aceitável que um erro seja compensado com outro. Em outras palavras, afirmou que "não se compensam as inconstitucionalidades", devendo o "equívoco" cometido pelo Estado de origem - ao conceder benefícios de ICMS ao arrepio das normas constitucionais que exigem autorização do CONFAZ - ser solucionado no Judiciário por meio da propositura da ação direta de inconstitucionalidade.” (grifos nossos)
Decisões como esta não resolvem o problema dos contribuintes diretamente afetados pela guerra fiscal; mas trazem alento, já que sinalizam que mesmo não havendo boa vontade política para contornar a questão, o contribuinte ainda poderá amparar-se no Judiciário.
De fato, a guerra fiscal como está tornou-se um grande “empurra-empurra”: ganha o Estado que concede o benefício, atraindo investimentos para o seu território, briga o Estado destinatário, que glosa o crédito e cobra o tributo derivado com multa e juros. Mas o único a perder é o contribuinte, obrigado a desconsiderar a não cumulatividade do ICMS e absorver o prejuízo.
[1] Neste sentido, vide: HC 281.588, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, DJ 05/02/2014; HC 107.948, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJ 14/05*, DJ 14/05/2012
[2] RMS 31.714/MT, 2ª Turma, DJe 19/09/2011