O efeito empobrecedor da sociedade da informação.
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O efeito empobrecedor da sociedade da informação.

A propósito do conceito de ficheiro eletrónico, Jaron Lanier afirma no seu manifesto “Você não é um Gadget” que «o ficheiro é um conjunto de ideias filosóficas transformadas em “corpo eterno”. As ideias expressas pelo ficheiro incluem a noção de que a expressão humana chega em blocos divisíveis que podem ser organizados como folhas de uma árvore abstracta – e que esses blocos têm versões e precisam de corresponder a aplicações compatíveis» [Lanier, Você não é um Gadget - Um Manifesto, p. 29].

De facto, a sociedade da informação é a Era do ficheiro eletrónico. E o ficheiro eletrónico persistirá condicionando a forma como registamos, conservamos e acedemos à informação por muitas décadas. Numa expressiva metáfora, o mesmo autor deixa escapar que consegue «imaginar que um dia os físicos possam dizer-nos que chegou a altura de deixar de acreditar em fotões, porque descobriram uma maneira melhor de pensar a luz, mas o ficheiro provavelmente sobreviverá» [idem, (pp. 28 e 29)].

Contrariando a generalizada rendição deslumbrada aos incontáveis benefícios da sociedade informação, pretendo advogar (no sentido diabólico do termo) que nem toda tecnologia associada ao ficheiro eletrónico representa uma evolução na liberdade de representação da informação, nem a sociedade da informação promove necessariamente a liberdade criativa.

Numa primeira aproximação ao conceito, a representação digital da informação pressupõe a conversão de valores analógicos em valores passíveis de serem representados por apenas dois dígitos (por isso digital). O que significa que na representação digital a informação não é necessariamente uma “cópia” fiel da realidade analógica ou física, mas uma mera representação “em código binário” desta realidade. Por muito precisa que possa ser a capacidade de representação digital, ela nunca é um “clone” da realidade analógica. Será sempre apenas uma “aproximação” em linguagem digital.

Em muitos aspetos a tecnologia de digitalização associada à representação eletrónica condiciona a informação, na medida em que a limita à capacidade de resolução, de formatação, de espectro de cores, etc., que essa mesma tecnologia for capaz de representar digitalmente.

Saliento que não faço aqui um manifesto contra a evolução tecnológica. Ressalta evidente de uma análise superficial da evolução das artes que o desenvolvimento de novos “instrumentos” de representação fez nascer novas formas de arte (da pintura à fotografia; do teatro ao cinema) e possibilitou evoluções marcantes na forma de “fazer” arte (pense-se a introdução de realidades virtuais na cinematografia; o impacto das aplicações de desenho digital no desenho industrial ou mesmo na arquitetura).

Na realidade toda a criação intelectual requer alguma forma de “exteriorização” para se tornar percetível ao outro. Não é por acaso que a propriedade intelectual (seja no direito de autor seja na propriedade industrial) apenas tutela as criações (obras, inventos ou sinais) por alguma forma exteriorizadas.

O que significa que, tudo o que eu não posso exteriorizar por alguma forma de representação percetível aos outros não constituí verdadeira “criação intelectual”. Não só para efeitos de tutela legal, como também enquanto manifestação cultural e/ou científica. Só constituem cultura e/ou conhecimento científico o que é suscetível de ser conhecido.

O que pretendo ressaltar é a essencialidade manter o sentido crítico sobre a natureza e limites da representação digital. A minha reflexão pretende suscitar a seguinte questão: em que medida o meio de representação digital limita o que pode ser representado?

A tecnologia MIDI é um exemplo clássico da capacidade redutora da realidade pelas tecnologias associadas aos ficheiros eletrónicos. A sigla MIDI - Musical Instrument Digital Interface (numa tradução literal, “interface digital com instrumentos musicais”) – constituí forma normalizada de comunicação de informação musical entre dispositivos eletrónicos, tais como computadores e sintetizadores de som. [DOWNING; COVINGTON; COVINGTON, Dicionário de Termos Informáticos e da Internet, (pp. 352 e 353)].

O problema está na forma de “representação” de música adotada por esta tecnologia. «Os ficheiros MIDI são mais pautas musicais do que áudio digitalizado; representam notas e instrumentação e não sons, devendo o computador “tocá-los” como um músico» [Idem, (pp. 352 e 353).]. Daí resulta que sejam “ficheiros” bastante mais leves, ou seja, que ocupam menos espaço de memória do que tecnologias de representação digital de música que optem por uma representação dinâmica mais próxima do som áudio. Esta simplicidade e portabilidade dos ficheiros MIDI tornou-os bastante populares, generalizando-se a sua utilização. Sucede que esta representação “estática” da música torna-a mais “pobre” que a realidade física analógica que visa representar. E, face à generalização da sua utilização, muitas tecnologias ficaram “presas” a este formato empobrecido de informação.

Significa isto que as tecnologias adotadas no passado e no presente não são inócuas e interferem ativamente nos processos criativos e desenvolvimentos tecnológicos do presente e do futuro.

Pensemos agora no modelo “normalizado” da generalidade das redes sociais, que banalizamos na nossa conivência pessoal, familiar e profissional.

Nestes Edens do relacionamento digital somos presenteados com uma infinidade de mecanismos de escrita automatizados, ícones, “memes” e múltiplas hipóteses de ligação a outras aplicações e funcionalidades.

No entanto, a escrita automatizada vem limitada a dicionários de palavras conhecidas, as ícones padronizados (e até “censurados” para serem politicamente corretas), com critérios fixos de classificação das nossas “ligações”, limites às aplicações que nos podemos ligar,...

Tudo isto aumenta exponencialmente o número de pessoas que conseguimos contactar diariamente. Mas limita extraordinariamente a mensagem que conseguirmos transmitir. Comunicamos porventura mais vezes, mas transmitimos muito menos conteúdo. Temos acesso a mais aplicações, mas talvez menos liberdade para estrear uma folha em branco.

Há, nesta Era da globalizada sociedade da informação, um desprezado fator de “formatação” da criatividade intelectual. Ao que não é indiferente a possibilidade de sobre estas tecnologias de representação, comunicação e armazenamento da informação poderem (ou não) ser constituídos exclusivos, de facto ou de direito, que tendem a impor-nos uma única forma de representação e comunicação da informação!

Termino com uma nova pergunta para uma reflexão crítica sobre as tecnologias emergentes:

Um modelo tecnologicamente formatado de “criar”, compulsivamente coadjuvado por “inteligência artificial”, enriquece ou empobrece a criatividade intelectual Humana?

PDV

Nota do autor: os textos aqui publicados não pretendem seguir os parâmetros de um artigo científico, visando somente a expressão despretensiosa de uma opinião para debate. Por esse motivo escusamo-nos à inclusão de demasiadas fastidiosas citações e referências bibliografias (neste incluímos apenas as essenciais e que, em verdade, constituíram o ponto de partida da nossa reflexão).

Joao Albuquerque

Curious on algorithmic (artificial & natural) intelligence of Universe and Mankind

3y

Caro Professor, Tenho lido com todo o cuidado os seus escritos, com os quais concordo na generalidade. Gostaria de lhe perguntar se tem algum escrito sobre o outro lado: o lado individual e positivo (ou realista). É que, dizem-nos os cientistas, nós “somos informação”, basta pensar no DNA (no plano biogenético), na atividade mental (percepção, reflexão, imaginação) e social (linguagem e dialógica), que se baseia na informação. Se não tem nenhum artigo, tomaria a liberdade de lhe sugerir uma reflexão sua sobre esse tema, se assim achar por bem, claro. Muito obrigado.

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Brutal. Admitindo que a reprodução digital do analógico não é 'lossless', no que respeita à criação, o digital também não é estéril; ou é?🍝

Marisa Monteiro Borsboom🦋

President CCINP 🇳🇱🇵🇹 CEO & General Counsel of Verae Legal Founder of Humanity of things Agency 🎤Speaker & Advocate for Ethical AI & Quantum adoption, ESG policy, and empowering women’s leadership for good 🌍

3y

Não há massa crítica suficiente para equilibrar a balança e há tanto a fazer neste tópico !

Pedro Petiz Viana, LL.M. (Leiden)

Accredited Parliamentary Assistant at the European Parliament

3y

"The medium is the message" Bem haja Professor.

Lourenço Dias Silva

Profissional independente de Gestão educacional

3y

Excelente, Concordo, Caro Prof. Pedro Dias Venâncio, O Futuro é de Exclusão Socialmente Acentuada. A Problemática das Novas Tecnologias Deslocalização  é um Factor Determinante para a Proximidade e simultaneamente um Factor de Privação de Direitos, Liberdade e Garantias.

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