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"Tem havido discriminação"

Exclusivo: dentistas brasileiros vão à Justiça de Portugal por reconhecimento de diploma

A dentista paulista Kátia Heleno e a paciente Lara

Trinta anos depois da crise dos dentistas brasileiros em Portugal, um grupo de profissionais do Brasil voltará a entrar na Justiça em busca de reconhecimento do diploma para exercer a profissão no país.

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Representados por advogados brasileiros e portugueses, os dentistas denunciam as universidades públicas portuguesas, que teriam cometido discriminação, em nome da reserva de mercado, e irregularidades nas provas obrigatórias de reconhecimento do diploma nas faculdades de medicina dentária, aplicadas de maneira uniforme em novembro de 2020.

Os erros na formulação das questões dos exames escritos, reclamam os brasileiros, impediram a aprovação, condição para a inscrição na Ordem dos Médicos Dentistas (OMD), obtenção de autonomia e o exercício da odontologia em Portugal.

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Oito dentistas são representados em conjunto pelo escritório Group Liberty Assessoria Internacional, com sede no Brasil e atuante em Portugal com o advogado Mário Neto. Ele explica que a prova foi idêntica para todas as universidades. Porém, Neto conta que algumas faculdades reconheceram erros de formulação em mais de um quarto do exame e anularam 55 questões. Outras, mantiveram.

- É uma prova igual para todo o país. O problema é que a correção não foi igual para todos. Há uma correção feita pela Universidade de Coimbra (UC) que não é justa, porque um quarto da prova foi anulado, devido aos erros na formulação das questões. Algumas faculdades anularam as 55 questões, outras não. Então, houve ali uma diferença - explicou Neto ao Portugal Giro.

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O advogado diz que os seus oito clientes são uma amostra de um universo muito mais amplo de descontentes brasileiros, que neste momento não podem pagar um advogado. Os dentistas que representa fizeram provas nas Universidades de Lisboa (UL) e do Porto (UP). Questionada, a diretoria da UL não teria cumprido o prazo administrativo para a resposta. Também não respondeu ao e-mail do Portugal Giro, assim como a UP e a UC.

- Falamos com candidatos de outras faculdades, que disseram o mesmo. E o diretor da faculdade de Lisboa não respondeu. Ele tinha 30 dias para responder e deixou expirar o prazo em cerca de três semanas. Quando não é resolvido em tempo útil, eles, os candidatos, têm direito a passar administrativamente. Quando respondeu, fora do prazo, o despacho do diretor omitiu o dever de fundamentação da resposta - explicou Neto.

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Os brasileiros formam a maioria dos candidatos todos os anos. Em geral, são dentistas com carreira no Brasil, com objetivo de mudar de vida, estabelecer consultório em Portugal ou fazer do país um trampolim para a Europa. 

As oportunidades estão mais escassas e os advogados e candidatos denunciam discriminação durante o curso (contra aqueles que fazem mestrado integrado, por exemplo), no decorrer da prova e no dia a dia da profissão.

- Não tenho dúvidas que tem havido discriminação. Declarações de dirigentes de ordens, tanto de médicos quanto de dentistas, dão conta da saturação do mercado e excesso de brasileiros - declarou Neto, que é português.

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Diretora do Group Liberty, Patrícia Barbi enviou ao Portugal Giro um extenso relato por escrito. O texto fundamenta o processo coletivo que será apresentado ao Tribunal Administrativo, confrontando o colégio dos médicos dentistas e as universidades. Também serão enviadas denúncias à Provedoria de Justiça.

Para a advogada, não há dúvidas que há discriminação em nome da reserva de mercado:

“O brasileiro vem pagando de €470 a € 600 para se candidatar ao reconhecimento em uma universidade portuguesa, onde seus processos ficam parados nas reitorias e faculdades, sob alegação de falta de profissionais. (...)  O fato é que os estrangeiros representam um mercado atrativo para os cofres das universidades, porém uma ameaça à reserva de mercado, não só nas faculdades, mas principalmente nas ordens, onde travamos novo problema para exercer. Sem falar no preconceito que sofrem na pele por parte de administrativos das faculdades e ordens, inferiorizando a condição acadêmica dos estrangeiros, mais ainda os brasileiros, que em muitos casos possuem três vezes mais graduações do que o profissional português”.

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Na parte do documento sobre o exame, Barbi relatou, ressaltando que a correção é feita por uma máquina:

“Tudo já arquitetado na tentativa de prejudicar e tornar impossível a aprovação. Prova feita sobre a pressão de funcionários a todo tempo agitando e rindo dos candidatos. (...) Contava com irregularidades acadêmicas e administrativas, erros de organização e formatação, questões contendo mais que uma resposta, o que foi alegado por eles que todas estão corretas, quando o enunciado da prova deixa claro que deve apenas ser anotada uma única resposta, uma vez que a prova é corrigida por uma máquina e não há entendimento para mais de uma correta. Erro material na elaboração de questões que induziram o candidato ao erro”.

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A dentista brasileira Kátia Heleno tem 55 anos e quase 31 de profissão. Pós-graduada no Brasil, tem cidadania portuguesa e vive parte do ano com a família em Carcavelos, na região metropolitana de Lisboa. Precisa voltar ao Brasil para trabalhar, o que não pode fazer em Portugal. Ela escreveu uma carta para o presidente Marcelo Rebelo de Sousa relatando o drama. Heleno teve uma pontuação de 9.24 dos 9.5 necessários para aprovação, diz ela, que passaria caso as questões não fossem dúbias.

- Lógico que teria passado. Por exemplo: em uma questão, no gabarito de correção a opção foi letra C, mas a resposta correta seria B. Tiveram a coragem de dizer que levaram em conta a C porque, se reconhecessem o erro, teriam que dar o ponto aos candidatos que erraram e alguns seriam aprovados, atitude claramente discriminatória - contou Heleno.

A dentista paulista diz estar abalada financeira e psicologicamente por não poder trabalhar e permanecer com a família, que vive em Portugal há quase três anos:

- É muito grave, configura uma atitude de má fé e nos fará ingressar na Justiça, inclusive em órgãos internacionais. Foi para muitos de nós um grande investimento em inscrição, passagem e hospedagem. Além de um enorme desgaste emocional, que, no meu caso, é imenso, porque preciso trabalhar para sustentar minha família e não vou abrir mão da minha profissão. Já teria passado na prova se não fossem as irregularidades. Sendo assim, tenho que me manter no Brasil e vir a Lisboa só de vez em quando para matar a saudade. Estou pondo toda minha energia nisto. Temos o direito de aprovação por mérito e por incompetência dos organizadores da prova.

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Nos anos 1990, um acordo entre Portugal e Brasil estabelecia a equivalência direta dos diplomas, o que foi questionado por associações portuguesas. A pressão das entidades nacionais causou a alteração na lei e o fim da equivalência direta.

Em 2019, a Lei 66/18 determinou que cursos universitários com cinco anos de duração fossem reconhecidos como equivalentes, tendo direito ao título de mestre. Mas as universidades determinam a necessidade de prova e tese para a conclusão do processo.

Procurada, a Ordem dos Médicos Dentistas (OMD) respondeu: "As instituições de ensino superior de medicina dentária são entidades autônomas e independentes. Como tal, as provas que realizam são da sua inteira responsabilidade. A Ordem dos Médicos Dentistas regula o exercício da medicina dentária. Não cabe à OMD, nem tem competências para tal, emitir um posicionamento sobre matérias que não se enquadram na sua esfera de atuação".

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