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Justiça

Xenofobia, demissão e greve de fome: médico brasileiro vive saga de 26 anos para ser indenizado pelo governo de Portugal

O médico brasileiro Barros Brito diante da Universidade do Porto

Foi com lágrimas nos olhos que o médico brasileiro José Barros de Brito olhou para a Universidade do Porto. Ali, onde se formou e iniciou a carreira nos hospitais de Portugal, ele relatou a angústia da espera pelo desfecho de um litígio de 26 anos. Segundo ele, a sua saga de duas décadas e meia envolve xenofobia, greve de fome, ameaças à família, divórcio, processos judiciais e humilhações profissionais.

— Fui rotulado. Destruíram minha carreira médica da maneira mais cruel: com atos racistas e xenófobos — disse Barros Brito ao Portugal Giro.

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Apesar de o estopim do conflito ter ocorrido no século passado, a decisão judicial mais recente é deste ano. Em janeiro, o Tribunal Central Administrativo do Norte confirmou uma sentença do Tribunal Administrativo de Braga que condena a Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte a indenizar o brasileiro por demissão ilegal. Ele pretende pedir cerca de € 3,5 milhões (R$ 20 milhões) quando a sentença for executada.

Após a dupla decisão favorável, um novo recurso da ARS só poderia ser solicitado de maneira extraordinária. O prazo para recorrer terminou na última segunda-feira sem que houvesse notícia de apelo. Barros Brito foi informado que há uma tolerância de três dias, que acaba amanhã. Procurada, a ARS não respondeu.

— Minha mãe morreu enquanto o processo corria. Mas eu, que perdi muito ao longo do caminho, não vou morrer sem ver isto resolvido — disse ele, com a fala embargada.

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Natural do Piauí, ele se viu envolvido no imbróglio com as autoridades de Saúde de Portugal a partir de 1996, quando trabalhava como profissional terceirizado no antigo Hospital de São Marcos, em Braga. Na época, um decreto regularizou a situação dos chamados médicos precários, sem vínculos empregatícios. Mas Barros Brito não quis fazer o concurso para clínico geral por ser especialista em pediatria.

A partir daquele momento, segundo Brito, a administração do hospital passou a ameaçá-lo de demissão. Diz ele que acabou cedendo e fez o concurso para não perder o trabalho, mas nunca foi admitido como pediatra.

— Violaram a Constituição quando me obrigaram a fazer um concurso para uma categoria abolida em 1990. Depois, me integraram nos serviços de emergência, mas pagando metade do que eu ganhava como especialista em pediatria. Detalhe: apenas eu e um cirurgião plástico, também brasileiro, passamos por isso na época — contou Brito.

O que até então poderia ser apenas uma suspeita de xenofobia foi confirmada com todas as letras, de acordo com Barros Brito, quando o então diretor do hospital afirmou claramente.

— Ele disse para mim que, enquanto ele mandasse no hospital, nenhum médico especialista brasileiro tomaria o lugar de um profissional português — assegurou Barros Brito.

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A partir daquele dia, sua vida profissional e pessoal em Portugal mudou. Diz ele que para pior. A perseguição, de acordo com ele, começou logo com um processo disciplinar devido às denúncias de xenofobia e racismo feitas pelo brasileiro.

Entre idas e vindas nos tribunais, foram mais de dez processos. Nenhum perdido. A cada vitória na Justiça, uma derrota profissional era imposta. Nessa proporção, ele contou que ficou cerca de sete anos impedido de exercer a função.

— Eu chegava às 8h, saía às 18h e não me deixavam fazer nada. Ficava lá 10 horas impedido de atender, enquanto faltavam médicos no país. Negaram minhas férias, cortaram salários. Foi muita humilhação — disse Barros Brito.

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Houve pelo menos duas decisões judiciais de reintegração de funções, uma antes e outra após a sua demissão, em 2013. Ambas não foram cumpridas pela ARS, advertiu Barros Brito, que recorreu ao sistema privado para poder trabalhar antes de se aposentar com salário de cerca de € 600 (R$ 3,4 mil), porque as contribuições previdenciárias não teriam sido feitas.

Na vida pessoal, a luta contra o sistema custou o casamento e causou o exílio voluntário da filha, também médica, para a Suíça. No acórdão judicial ao qual o Portugal Giro teve acesso, está relatado.

“Esposa e filha deixaram de frequentar locais públicos acompanhando o autor porque não aguentavam constantes abordagens sobre a situação. Acabando por se divorciar da esposa. (...) A filha do autor realizou estágio no Hospital São Marcos. A testemunha XXXXX esboçou tentativa de apresentar a jovem como filha do autor, que se opôs manifestando receio de represálias”.

— Minha mulher não suportou, tinha até medo que me matassem. Mas eu não podia desistir de levar isto adiante tendo passado por tudo que passei. Hoje, ela está na Suíça com minha filha, que teve que sair de Portugal para poder exercer a medicina — afirmou Barros Brito.

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No auge do desespero, fez greve de fome no local de trabalho e também diante da Embaixada do Brasil em Lisboa, em 2003. Queria chamar a atenção dos jornalistas que acompanhavam a comitiva do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em visita oficial a Portugal. 

A exposição pública transformou a sua personalidade, antes “alegre e bem disposta”, em “angustiada, deprimida e nervosa”. “Ficou bastante debilitado e fechou-se socialmente”, relata o acórdão.

— Nem ao enterro da minha mãe no Brasil eu pude ir devido ao que eu vivia aqui em Portugal. Logo ela, que tinha o maior orgulho de ver o filho pobre virar médico — diz ele, enxugando as lágrimas.

Antes de se despedir, Barros Brito mostra um protocolo de recebimento da carta enviada ao primeiro-ministro António Costa. No texto, pediu ao premier que interceda para que o Estado não recorra e cumpra o determinado. A resposta foi que o texto seguiu para o Ministério da Saúde.

 

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