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Por Douglas Ceconello

Jornalista, um dos fundadores do Impedimento.org, dedicado ao futebol sul-americano

ge.globo — Porto Alegre

Miguel Schincariol / AFP

Ainda não há condições emocionais minimamente razoáveis para o torcedor gaúcho acompanhar o retorno dos seus clubes ao calendário futebolístico. No caso dos colorados, que até viam na partida contra o Belgrano alguma faísca de possível volta à normalidade de semanas e séculos atrás, as camisas sujas de lama que o Inter usou para entrar em campo refletiram nas pupilas já castigadas todos os significados possíveis: a empatia com quem foi (e está sendo) vitimado pelas enchentes, o orgulho pelo Rio Grande do Sul, o afeto pelo seu clube. O retorno é uma exigência cruel com os funcionários do clube, incluindo os jogadores: todos desmoronamos, mas exigimos que eles logo se reergam como se imunes a emoções e circunstâncias nas quais todos se envolveram de alguma forma, estranhas ao campo de jogo.

Quando se tenta retirar o jogo do seu contexto (que trazia várias camadas de traumas) e do seu cenário (longe demais de uma Porto Alegre que não será como antes), se pode dizer que o Internacional fez o que muitas vezes tem feito: dominou o adversário e fazia por merecer a sua vitória parcial até que as falências individuais e coletivas, que muito já nos custaram, permitiram uma insólita virada do Belgrano nos últimos minutos do primeiro tempo. Pode-se dizer que Eduardo Coudet encontra dificuldades extremas quando enfrenta adversários muito retraídos e também que Renê é um dos melhores em campo em oitenta e nove por cento do tempo (e nos onze por cento restantes ele entrega jogos e campeonatos). Pode-se lamentar que os erros foram os mesmos, mas extremados pelo momento. Pode-se até repetir a sentença popular: o Inter não vale um centavo. ("E quem torce por ele vale menos ainda", retruca cabisbaixo o companheiro de bodega vestindo a 7 de Valdomiro). O jogo contra o Belgrano, na verdade, aconteceu em outra dimensão, como as imagens de uma TV ligada e sem volume em pleno apocalipse ou um adolescente de Kiev que nos últimos meses se tornou campeão mundial de xadrez.

Acontece que, ao contrario da corneta popular, o Inter vale tudo. A camisa embarrada era mais vermelha do que nunca: estampava memórias adjacentes das origens na Ilhota, de visitas duras ao Interior, em estádios que talvez nem existam mais, do barro que apenas parece o mesmo quando se cruza as fronteiras e, sobretudo, lembrava dos milhares que ainda estão desamparados, mas nunca podem se sentir sozinhos. Para os gaúchos, a catástrofe tem sido, por exemplo, muito mais violenta que a pandemia de Covid -- as perdas materiais e afetivas são brutais, o trauma é imediato e sobre o futuro ninguém quer pensar direito.

Exceto por alguma reação heroica, portanto extremamente improvável, a temporada está arruinada para os clubes gaúchos. A gente acredita apenas porque acreditar é o que resta -- no futebol e em tudo que o cerca. E, quando o Inter entrou em campo com o uniforme e o escudo trazendo as marcas das enchentes, pois a ele coube ser o primeiro neste doloroso regresso, jogando na condição de exilado, mas jamais desterrado, a mensagem era clara como uma flecha ancestral daquelas que derruba espanhol: mesmo longe, não saímos do Rio Grande do Sul. Vamos continuar carregando juntos a terra, a cor, o legado e a dor.

Footer blog Meia Encarnada Douglas Ceconello — Foto: Arte

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